O Reino é
como um tesouro...
Em suas
pregações, Jesus privilegia o Reino dos Céus como a realização daquela utopia
regeneradora do ser humano e do cosmos. O que vai anunciando por toda a terra
da Palestina é a
novidade do Reino,
onde essa
boa notícia reproduz àquele
povo sofrido e oprimido, perspectivas de justiça, de verdade e libertação. Por
causa do Reino Jesus veio, e o Reino foi sua palavra, sua vida, sua morte e sua
ressurreição.
O Reino é a vontade do Pai. Quem tiver olhos para enxergar apenas
o pequenino grão de mostarda, um punhado de fermento imerso na massa, ou algumas
sementes de trigo sufocadas no meio do joio e da erva daninha, talvez desvalorize
e não tenha condições de ver a implantação do Reino dos céus no meio da sociedade
humana.
Embora muitos façam
confusão, o Reino, por ser eminentemente escatológico, não deve ser identificado
com a Igreja. A Igreja, por sua condição de res
viator, se realiza no tempo, com ênfase à sua característica temporal. A
Igreja não é o Reino, mas aponta para ele e caminha em sua direção. O teólogo
Alfred Loisy († 1940), um modernista francês foi excomungado em 1908 por Pio X,
por haver estabelecido uma divisão que hoje é aceita pela maioria dos teólogos:
“Jesus pregou o Reino e em seu lugar veio a Igreja”.
Nessa
característica, o Reino dos Céus se mostra dinâmico em duas fases: uma atual,
escondida e humilde, e outra futura, gloriosa e cheia de esplendor. A dinâmica
do Reino aponta para o valor transcendente das coisas que vem do Alto. Por
conta disto ele eclode no meio de nós, a partir da irrupção do dom de Deus nos
corações da humanidade que crê, espera e ama. A fé na ressurreição é o centro
axial do cristianismo. Fé não é somente a adesão a um conjunto de verdades
tidas como irrefutáveis, mas subentende vigorosamente um processo de conversão
do ser humano ao abraço amoroso do Pai e à oferta generosa da sua graça. Assim
como não existe fé sem partilha, igualmente não existe amor sem solidariedade.
A vocação do
homem é o céu e não a terra; é Deus e não o paraíso terrestre. Isto não
significa que ele seja convidado a se omitir das tarefas históricas da solidariedade.
Antes, pelo contrário, deve levar a terra e a história juntas para o supremo
ideal em Deus. Na
chamada economia da graça, Jesus
compara seu Reino com um tesouro escondido no campo, onde um homem vende tudo o
que possui para comprar o campo e assim se apossar do tesouro. O ato de vender
tudo aponta para um despojamento de riquezas, para uma renúncia às paixões e –
sobretudo – para o ato de assumir um compromisso com o valor maior. Ninguém
poderá comprar o campo se não se desfizer das coisas inúteis e inferiores que
possui, trocando-as por valores verdadeiros. Só toma posse do Reino quem se
dispõe a renunciar o que passa, em troca do que não passa.
O Reino do Céu é como um
tesouro escondido no campo. Um homem o encontra, e o mantém escondido. Cheio de
alegria, ele vai, vende todos os seus bens, e compra esse campo. O Reino do Céu
é também como um comprador que procura pérolas preciosas. Quando encontra uma
pérola de grande valor, ele vai, vende todos os seus bens, e compra essa pérola
(Mt 13,44ss).
A parábola do
tesouro escondido retrata o valor do Reino e seu mistério. Como um bem de
valor, seu preço vale mais do que tudo o que se possui. Por isso vale a pena se
desfazer de tudo para adquiri-lo. Este tesouro é o dom de Deus presente no meio
dos homens (a vida da graça), proporcionando-lhe felicidades e agrupando-os em
uma grande família, chamada de comunidade.
A comparação
do Reino com um tesouro revela que há uma tensão permanente entre Reino e
mundo. É hora de uma de-cisão entre
graça e pecado. É preciso saber escolher entre as realidades de Deus e as
ilusões do mundo. Igualmente no tocante à descoberta da pérola, é imperioso ter
ciência da necessidade de troca entre essa jóia e as demais riquezas que o
mundo oferece. Apegar-se aos valores humanos é como pretender ficar com
bijuterias falsas em detrimento de pedras preciosas. Tanto a parábola do
tesouro escondido como a da pérola de grande valor exprimem a riqueza da vida
da graça.
A graça é dom
gratuito, é a amizade com Deus que diviniza o homem, outorgando-lhe filiação
divina, irmandade com Jesus Cristo, pertença à Igreja, tornando-o templo do
Espírito Santo, destinatário das promessas e herdeiro do Reino. Dentro dessa
perspectiva salvífica, o Reino acontece a quem tem a coragem de buscar a conversão
individual, como sinal da libertação coletiva há tantos séculos esperada. Por
isso, como ensinam com muita propriedade, os antigos Pais da Igreja, a vida da
fé não é um problema para ser resolvido, mas um mistério para ser vivido,
vivido na comunhão trinitária, na oração e no amor.
A entrada de
Jesus em cena, no evangelho de Marcos, reflete o caráter proclamativo e
escatológico do anúncio. Na verdade, não se trata de ensinar uma doutrina nova,
mas lançar um kérygma (anúncio) com
exigências de conversão e adesão à boa
notícia (cf. Mc 1,15). O importante é deixar claro que o Reino está próximo,
tudo confirmado com curas e outros sinais prodigiosos. É nessa perspectiva que
se manifesta a verdade de tudo que foi anteriormente revelado. O Reino assume
um caráter mistagógico na medida em que mescla realidades humanas com espirituais.
É, como na figura de um arco-íris, o céu em união com a terra. Os antigos
pregadores não cansavam de ensinar que o Reino não é deste mundo, mas começa a
se realizar a partir daqui.
Jesus contou-lhes ainda
outra parábola: “O Reino do Céu é como o fermento que uma mulher pega e mistura
com três porções de farinha, até que tudo fique fermentado (Mt 13,33).
Aqui Jesus diz
que o Reino, como o fermento imerso na massa, não é percebido no primeiro
momento. Em seguida cresce a ponto de fermentar e transformar toda a massa,
conforme seu objetivo anteriormente traçado. Tanto esta parábola como a
anterior (do tesouro no campo) se referem à propagação no evangelho do
Reino, como uma boa noticia, em todo
o mundo. A ressurreição de Jesus, o ponto mais alto de nossa fé, mostra que a
vida continua e que as promessas messiânicas vão acontecer, porque o Reino chegou,
e ele é o centro da mensagem de Jesus. Trata-se da utopia mobilizadora da história
humana, onde a justiça se articula com a ordem do dom e do que é gratuito. Se
na pessoa de Jesus Cristo, Deus nos há de ressuscitar e nos dar assento no seu
Reino (cf. Ef 2,6), nossa fé nos revela então que crer passa a ser uma
experiência vital e essencialmente comunitária, onde o mistério precisa ser
acolhido com ternura no coração e transformado com vigor no compromisso com a
instauração desse Reino de amor. Nesse terreno, fé e reflexão sobre Deus se
alimentam reciprocamente. O cristão precisa acolher em seu coração a certeza de
que Deus pervaga a história humana para, através de um novo caminho, promover a
libertação, dando vida a todos, aliando-se aos injustiçados e marginalizados.
Uma
experiência de Deus que não nos desinstale, que não crie em nós uma ponderável
inquietação social, não é verdadeira. Alguns se contentam com uma religião
costumeira, de rotina. O seguimento de Jesus não pode ser vivido desta forma. O
evangelho está sempre a exigir de nós respostas e atitudes com relação aos
problemas do mundo. Existem ainda nos evangelhos, outras comparações estabelecidas
pela pedagogia de Jesus para que os crentes consigam entender o real sentido do
dom de Deus. Assim, o Reino dos céus é semelhante: a) a uma semente de mostarda
jogada à terra (cf. Mt 13,31s); b) a uma rede lançada ao mar (cf. Mt 13,47-50);
c) a um rei que resolveu acertar contas com seus devedores (cf. Mt 6,12); d) a
um pai de família que saiu para contratar trabalhadores (cf. Mt 20,1-6); e) a
um rei que preparou as bodas do filho (cf. Mt 22,1-14); f) a dez virgens (cf. Mt 25,1-13); g) a um homem
que partiu em viagem (cf. Mt 25,14-30).
Ao ensinar as semelhanças do
Reino, em paralelo
Jesus pede atenção para que nossos erros, falhas e pecados não
se tornem a causa da perda da vida eterna, tão custosamente adquirida por ele,
ao preço de seu próprio sangue (A. M. Galvão. O Reino dos céus, Ed.
Ave-Maria, 1994).
Com a
instauração do Reino o abjeto mundo de pecado revela o fim do domínio da morte,
da transgressão e do ódio sobre todo o gênero humano. Para que se processe essa
dinâmica, se impõe uma ruptura, sem a qual a conversão não ocorre: é preciso
mudar de vida, mudar sentimentos, mudar as convicções de nosso coração. Na
explanação dos valores do Reino, Jesus se faz presente no homem, tornando-o
reduto de dignidade.
O que aqui na terra
construímos será guardado para o futuro (GS 39). Que o advento do Reino não nos
torne demissionários de nossas indelegáveis tarefas daqui da terra (cf. 2Ts
3,11s). A esperança do futuro irá desdramatizar as tribulações do presente (L.
Boff. A vida para além da morte. Ed. Vozes, 1973).
É irrecusável
a exigência de abraçar a causa do evangelho e assim tornar-se servidor e amigo
de Jesus Cristo. Só desta forma nos inserimos definitivamente no processo
daquela salvação que Jesus veio inaugurar. Ele constrói, assim, em nossos
corações, um modelo de sociedade humana segundo o projeto divino, numa
proporção ao Reino dos céus. O povo de Deus adota em sua caminhada humana retalhos
da vida do céu, substituindo a violência pelo Amor, a mentira pela Verdade e as
trevas pela Luz.
Quando
clamamos o nome do Pai do céu, pedindo que “venha o Reino”, estamos abrindo a
expectativa da irrupção de um tempo de graça e fartura de dons, onde amor de
Deus transborda em nossos corações. Esta é a realidade do Reino que deixa de
ser uma possibilidade abstrata para se tornar uma realidade palpável e
concreta. Na dialética das trevas e da luz, Jesus nos mostra o vigor da sua pedagogia
libertadora. Libertar-se é renunciar à escuridão para abrir-se à claridade que
brota da mensagem de Jesus. O Reino vem acompanhado de muitos sinais para
demonstrar que sua realidade aponta para o céu, embora se saiba que ele começa
a ser edificado a partir desta vida.
É salutar que se descubra os sinais do Reino nas pequenas coisas da nossa vida.
Ao aceitar sua
morte (e morte de cruz!), Jesus não responde com sentimentos humanos, mas
retribui ao ódio com amor divino, rompendo a escalada da violência que nasce do
uso do ódio pelo ódio. Jesus mostra como se pode, na terra, pensar como no céu,
ensinando que é assim que se consolida o caminho para o Reino do Pai. Depois de
tudo que foi dito aqui, é salutar a gente prestar atenção para as palavras de
Jesus:
Se a justiça de vocês não
exceder a dos escribas e a dos fariseus, vocês não entrarão no Reino dos céus
(Mt 5,29).
Antonio Mesquita Galvão
Teólogo.
O autor é Filósofo, Escritor, Biblista e Doutor em Teologia Moral
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