SOLENIDADE DE S. PEDRO E S. PAULO- ANO B
Quem é Jesus? O que é que “os homens” dizem de Jesus?
Na Solenidade dos apóstolos S. Pedro e S. Paulo, a liturgia convida-nos
a refletir sobre estas duas figuras e a considerar o seu exemplo de fidelidade
a Jesus Cristo e de testemunho do projeto libertador de Deus.
O Evangelho convida os discípulos a aderirem a Jesus e a
acolherem-n’O como “o Messias, Filho de Deus”. Dessa adesão, nasce a Igreja – a
comunidade dos discípulos de Jesus, convocada e organizada à volta de Pedro. A
missão da Igreja é dar testemunho da proposta de salvação que Jesus veio trazer.
À Igreja e a Pedro é confiado o poder das chaves – isto é, de interpretar as
palavras de Jesus, de adaptar os ensinamentos de Jesus aos desafios do mundo e
de acolher na comunidade todos aqueles que aderem à proposta de salvação que
Jesus oferece.
A primeira leitura mostra como Deus cauciona o testemunho dos
discípulos e como cuida deles quando o mundo os rejeita. Na ação de Deus em
favor de Pedro – o apóstolo que é protagonista, na história que este texto dos Atos
hoje nos apresenta – Lucas mostra a solicitude de Deus pela sua Igreja e pelos
discípulos que testemunham no mundo a Boa Nova da salvação.
A segunda leitura apresenta-se como o “testamento” de Paulo. Numa
espécie de “balanço final” da vida do apóstolo, o autor deste texto recorda a
resposta generosa de Paulo ao chamamento que Jesus lhe fez e o seu compromisso
total com o Evangelho. É um texto comovente e questionante, que convida os
crentes de todas as épocas e lugares a percorrer o caminho cristão com
entusiasmo, com entrega, com ânimo – a exemplo de Paulo.
LEITURA I – At 12,1-11
O texto que nos é hoje proposto
encerra praticamente a primeira parte do Livro dos Atos dos Apóstolos (a
história da expansão do cristianismo dentro das fronteiras palestinas – cf. At
1-12). Lucas narra, neste texto, uma nova perseguição à Igreja de Jesus.
Esta perseguição é obra de
Herodes Agripa I, neto do famoso Herodes, o Grande. O imperador Calígula
deu-lhe, por volta do ano 37, os antigos territórios de Filipe (Itureia, Traconítide,
Bataneia, Gaulanítide e Auranítide); mais tarde (ano 40), confiou-lhe ainda os
antigos territórios de Herodes Antipas (Galileia e Pereia). Depois do
assassínio de Calígula, Herodes Agripa prestou vários serviços ao imperador
Cláudio, o qual lhe ofereceu o governo da Samaria e da Judeia (ano 41). Assim,
Herodes Agripa I reinou praticamente sobre toda a Palestina entre os anos 41 e
44. Morreu subitamente no ano 44, durante uma cerimônia pública.
Herodes Agripa I preocupou-se
bastante em não se incompatibilizar com os líderes judaicos. Por isso, foi
muito cuidadoso em observar as prescrições da Lei de Moisés (embora essa
preocupação tenha sido mais por política do que por convicção: fora do
território judaico, Herodes Agripa I vivia à maneira helênica). Foi,
provavelmente, com o mesmo objetivo que ele tentou suprimir a “seita cristã”,
mandando executar Tiago e prendendo Pedro.
Este Tiago de que se fala no
nosso texto é o filho de Zebedeu, irmão de João. Tiago era, com toda a certeza,
um pregador ativo do Evangelho de Jesus e um membro importante da comunidade
cristã de Jerusalém. Com esta morte violenta, Tiago “bebeu do mesmo cálice”,
conforme lhe foi anunciado pelo próprio Jesus (cf. Mc 10,38). Estamos no ano
42.
Esta perseguição atingiu também
outros membros da comunidade cristã de Jerusalém. O próprio Pedro foi preso,
neste contexto, embora tenha sido, posteriormente, libertado. Os dados
avançados por Lucas – no texto que nos é hoje proposto – sobre a prodigiosa libertação
de Pedro não devem ser rigorosamente históricos; mas devem ser, sobretudo, uma
catequese sobre a forma como Deus cuida da sua Igreja e dos discípulos que dão
testemunho da salvação.
No Livro dos Atos dos Apóstolos,
Lucas procura mostrar como o plano salvador de Deus para os homens continua a
cumprir-se, mesmo depois da partida de Jesus para junto do Pai. Os discípulos
de Jesus são agora, no meio do mundo, as testemunhas desse projeto de
libertação que Deus ofereceu aos homens através de Jesus Cristo.
Como é que o mundo acolhe o
testemunho dos discípulos? Deus deixa as testemunhas do seu projeto de salvação
entregues à sua sorte, à mercê da perseguição e da incompreensão do mundo? O
texto que nos é proposto como primeira leitura procura responder a estas
questões.
1. Os elementos históricos
avançados por Lucas sobre a morte de Tiago e a prisão de Pedro, no contexto da
perseguição contra a Igreja durante o reinado de Herodes Agripa I (vers. 1-4),
mostram como o testemunho do projeto libertador de Deus no mundo gera sempre
confronto com as forças da opressão e da morte. Trata-se de uma realidade que
não deve deixar os discípulos surpreendidos, pois o próprio Jesus teve que
percorrer o caminho da cruz (a indicação de que Pedro foi preso no dia dos
Ázimos e, portanto, muito próximo do dia de Páscoa, pode sugerir uma
correspondência com a Páscoa de Jesus: o caminho que Pedro está a seguir é o
mesmo caminho do Mestre). Por outro lado, a oposição do mundo não pode nem deve
calar o testemunho que os discípulos são chamados a dar.
2. Enquanto Pedro estava na
prisão, a Igreja orava por ele (vers. 5). A indicação mostra uma comunidade
cristã unida, em que os crentes estão próximos e solidários, apesar da
distância e das grades da prisão. Por outro lado, o fato de a libertação de
Pedro acontecer enquanto a Igreja “orava instantemente a Deus por ele” mostra
como Deus escuta a oração da comunidade.
3. A maravilhosa história da
libertação de Pedro (vers. 6-11) mostra a presença efetiva de Deus na caminhada
da sua Igreja e a solicitude com que Deus cuida daqueles que dão testemunho do
seu projeto de salvação no meio dos homens. O relato está construído com
elementos maravilhosos e prodigiosos que não são, certamente, de caráter
histórico (o aparecimento do “anjo do Senhor”, a luz que iluminou a cela da
cadeia, a passagem pelos guardas sem que nenhum deles se tivesse apercebido da
fuga do prisioneiro, a abertura milagrosa da porta da prisão); mas pretendem
sublinhar a presença de Deus e apor no testemunho dos apóstolos o “selo de
garantia” de Deus. Não há dúvida: Deus está com os apóstolos e, diante da
oposição do mundo, garante a autenticidade da proposta apresentada por eles.
ATUALIZAÇÃO
• Como cenário de fundo da nossa
primeira leitura, está o fato de a comunidade cristã (aqui representada por
Pedro) ser uma comunidade que tem como missão dar testemunho do projeto
libertador de Deus no meio dos homens. A Igreja que nasce de Jesus não é uma
comunidade fechada em si própria, ou que vive apenas de olhos postos no céu à
espera que Deus, de forma mágica, renove o mundo; mas é uma comunidade
comprometida com a transformação do mundo, que testemunha – com palavras e com
gestos concretos – os valores de Jesus, do Evangelho e do mundo novo.
• O nosso texto mostra que o
anúncio da proposta de salvação que Deus faz aos homens gera sempre oposição.
Essa oposição vem, especialmente, daqueles que querem perpetuar os mecanismos
de exploração, de injustiça, de morte; mas também pode vir de quem está
comodamente instalado na escravidão e não tem a coragem de questionar as
cadeias que o prendem… Em qualquer caso, a oposição traduz-se sempre em
atitudes de incompreensão, de desrespeito, ou mesmo de perseguição declarada.
Uma Igreja que procura ser fiel ao mandato de Jesus e testemunhar a libertação
de Deus ver-se-á sempre confrontada com esta realidade. Todos nós, discípulos
de Jesus, chamados a testemunhar a vida de Deus na sociedade, no nosso local de
trabalho, na nossa família, conhecemos a oposição, as calúnias, os sarcasmos, a
dificuldade em que levem a sério o nosso testemunho... Tal fato não deve
preocupar-nos demasiado: é a reação lógica do mundo quando se sente questionado
pelos valores de Jesus. Para nós, o que é importante é afirmar, com sinceridade
e verticalidade, os valores em que acreditamos.
• A história de Pedro que hoje
nos é proposta garante-nos que, nos momentos de perseguição e de oposição, o
nosso Deus não nos abandona. Ele será sempre uma presença reconfortante e
libertadora ao nosso lado, dando-nos a coragem para continuarmos a nossa missão
e para darmos testemunho dos valores do Reino. O cristão não tem medo porque
sabe que Deus está com ele e que, por isso, nenhum mal lhe acontecerá.
• A nossa história sugere também
a importância da união e da solidariedade da comunidade, sobretudo para com os
irmãos que estão longe ou que estão em situações dramáticas de sofrimento. A
oração é uma forma de manifestar essa solidariedade e a comunhão que deve unir
todos os irmãos, membros da mesma família de fé.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 33
(34)
Refrão: O Senhor libertou-me de
todos os meus temores.
A toda a hora bendirei o Senhor,
o Seu louvor está sempre na minha
boca.
A minha alma gloria-se no Senhor;
ouçam e alegrem-se os humildes.
Enaltecei comigo ao Senhor,
e exaltemos juntos o Seu nome.
Procurei o Senhor, e Ele
atendeu-me;
libertou-me de todos os meus
temores.
Voltai-vos para Ele e ficareis
radiantes:
vossos rostos não se hão-de
cobrir de vergonha.
Este pobre clamou, o Senhor o ouviu,
salvou-o de todas as angústias.
O anjo do Senhor protege os que O
temem
e defende-os dos perigos.
Provai e vede como o Senhor é
bom;
feliz o homem que n’Ele se
refugia.
LEITURA II – 2 Timóteo 4,6-8.17-18
O Timóteo destinatário desta
carta é um cristão nascido em Listra (Ásia Menor), de pai grego e de mãe
judeo-cristã. A partir de certa altura, tornou-se um companheiro inseparável de
Paulo; foi a ele que Paulo confiou importantes missões e a quem encarregou da
responsabilidade pastoral das Igrejas da Ásia Menor. Segundo a tradição, foi o
primeiro bispo da comunidade cristã de Éfeso.
É muito duvidoso que seja Paulo o
autor desta carta: a linguagem, o estilo e mesmo a doutrina apresentam
diferenças consideráveis em relação a outras cartas paulinas; além disso, o
contexto eclesial em que esta carta nos situa é mais do final do séc. I ou
princípios do séc. II do que da época de Paulo (o grande problema destas cartas
já não é o anunciar o Evangelho, mas o “conservar a fé”, frente aos falsos
mestres que se infiltram nas comunidades e que ensinam falsas doutrinas).
De qualquer forma, quem escreve a
carta refere-se à vida de Paulo como uma vida integralmente preenchida pelo
amor a Jesus Cristo e ao seu Evangelho. Estamos numa época em que as
comunidades cristãs se debatiam com as perseguições organizadas, a falta de
entusiasmo dos crentes e as falsas doutrinas… Ao recordar, desta forma, o
exemplo de Paulo, o autor desta carta pretende convidar os crentes em geral (e
os animadores das comunidades, em particular) a redescobrirem o entusiasmo por
Jesus e pelo testemunho da Boa Nova libertadora que Jesus veio propor aos
homens.
O autor da carta apresenta-se na
pele de Paulo, prisioneiro em Roma; e, nessa pele, faz um balanço final da sua
vida e da sua entrega ao serviço do Evangelho.
A vida de Paulo foi, desde o seu
encontro com Cristo ressuscitado na estrada de Damasco, uma resposta generosa
ao chamamento e um compromisso total com o Evangelho. Por Cristo e pelo
Evangelho, Paulo lutou, sofreu, gastou e desgastou a sua vida num dom total,
para que a salvação de Deus chegasse a todos os povos da terra. No final, ele
sente-se como um atleta que lutou até ao fim para vencer e está satisfeito com
a sua prestação. Resta-lhe receber essa coroa de glória, reservada aos atletas
vencedores (e que Paulo sabe não estar reservada apenas a ele, mas também a
todos aqueles que lutam com o mesmo denodo e o mesmo entusiasmo pela causa do
“Reino”).
Para definir a sua vida como dom
total a Deus e aos irmãos, Paulo utiliza aqui uma imagem bem sugestiva: a
imagem da vítima imolada em sacrifício. Paulo fez da sua vida um dom total,
ao serviço do Evangelho; a sua entrega foi um sacrifício cultual a Deus. Agora,
para que o sacrifício seja total, só resta coroar a sua entrega com o dom do
seu sangue… A referência à oferta “em libação” faz referência aos sacrifícios
em que se vertia o vinho sobre o altar, imediatamente antes de ser imolada a
vítima sacrifical.
Há duas maneiras de dar a vida
por Cristo: uma é gastá-la dia a dia na tarefa de levar a libertação que Cristo
veio propor a todos os povos da terra; outra é derramar, de uma vez, o sangue
por causa da fé e do testemunho de Cristo… Paulo conheceu as duas modalidades;
imitar Paulo é um desafio que o autor da carta a Timóteo faz aos discípulos do
seu tempo e de todos os tempos.
Na segunda parte do nosso texto
(vers. 16-18), o autor desta carta põe na boca de Paulo o lamento desiludido de
um homem cansado que, apesar de ter oferecido a sua vida como dom aos irmãos se
sente, no final, votado ao abandono e à solidão… Mas, apesar de tudo, Paulo tem
consciência de que Deus esteve a seu lado ao longo da sua caminhada, lhe deu a
força de enfrentar as dificuldades, o livrou de todo o mal e lhe dará, no final
da caminhada, a vida definitiva. Daí o louvor com que Paulo termina: “glória a
Ele por todo o sempre. Amém”. É esta a atitude que o autor da carta pede aos
seus irmãos: apesar do desânimo, do sofrimento, da tribulação, descubram a
presença de Deus, confiem na sua força, mantenham-se fiéis ao Evangelho: assim
recebereis, sem dúvida, a salvação definitiva que Deus reserva a quem combateu
o bom combate da fé.
ATUALIZAÇÃO
• Paulo foi uma das figuras que
marcou, de forma decisiva, a história do cristianismo. Ao olharmos para o seu
exemplo, impressiona-nos como o encontro com Cristo marcou a sua vida de forma
tão decisiva; espanta-nos como ele se identificou totalmente com Cristo;
interpela-nos a forma entusiasmada e convicta como ele anunciou o Evangelho em
todo o mundo antigo, sem nunca vacilar perante as dificuldades, os perigos, a
tortura, a prisão, a morte; questiona-nos a forma como ele quis viver ao jeito
de Cristo, num dom total aos irmãos, ao serviço da libertação de todos os
homens. Paulo é, verdadeiramente, um modelo e um testemunho que deve
interpelar, desafiar e inspirar cada crente.
• O caminho que Paulo percorreu
continua a não ser um caminho fácil. Hoje, como ontem, descobrir Jesus e viver
de forma coerente o compromisso cristão implica percorrer um caminho de
renúncia a valores a que os homens dos nossos dias dão uma importância
fundamental; implica ser incompreendido e, algumas vezes, maltratado; implica
ser olhado com desconfiança e, algumas vezes, com comiseração… Contudo, à luz
do testemunho de Paulo, o caminho cristão vivido com radicalidade é um caminho
que vale a pena, pois conduz à vida plena. Concordo? É este o caminho que eu me
esforço por percorrer?
• Convém ter sempre presente esse
dado fundamental que deu sentido às apostas de Paulo: aquele que escolhe Cristo
não está só, ainda que tenha sido abandonado e traído por amigos e conhecidos;
o Senhor está a seu lado, dá-lhe força, anima-o e livra-o de todo o mal.
Animados por esta certeza, temos medo de quê?
ALELUIA – Mt 16,18
Aleluia. Aleluia.
Tu és Pedro e sobre esta pedra
edificarei a minha Igreja
a as portas do inferno não
prevalecerão contra ela.
EVANGELHO – Mateus 16,13-19
O Evangelho deste domingo
situa-nos no Norte da Galileia, perto das nascentes do rio Jordão, em Cesareia
de Filipe (na zona da atual Bânias). A cidade tinha sido construída por Herodes
Filipe (filho de Herodes o Grande) no ano 2 ou 3 a.C., em honra do imperador
Augusto.
O episódio que nos é proposto
ocupa um lugar central no Evangelho de Mateus. Aparece num momento de viragem,
quando começa a perfilar-se no horizonte de Jesus um destino de cruz. Depois do
êxito inicial do seu ministério, Jesus experimenta a oposição dos líderes e um
certo desinteresse por parte do Povo. A sua proposta do Reino não é acolhida
senão por um pequeno grupo – o grupo dos discípulos.
É, então, que Jesus dirige aos
discípulos uma série de perguntas sobre Si próprio. Não se trata, tanto, de
medir a sua quota de popularidade; trata-se, sobretudo, de tornar as coisas
mais claras para os discípulos e confirmá-los na sua opção de seguir Jesus e de
apostar no Reino.
O relato de Mateus é um pouco
diferente do relato do mesmo episódio feito por outros evangelistas
(nomeadamente Marcos – cf. Mc 8,27-30). Mateus remodelou e ampliou o texto de
Marcos, acrescentando a afirmação de que Jesus é o Filho de Deus e a missão
confiada a Pedro.
O nosso texto pode dividir-se em
duas partes. A primeira, de caráter mais cristológico, centra-se em Jesus e na
definição da sua identidade. A segunda, de caráter mais eclesiológico,
centra-se na Igreja, que Jesus convoca à volta de Pedro.
Na primeira parte (vers. 13-16),
Jesus interroga duplamente os discípulos: acerca do que as pessoas dizem d’Ele
e acerca do que os próprios discípulos pensam.
A opinião dos “homens” vê Jesus
em continuidade com o passado (“João Baptista”, “Elias”, “Jeremias” ou “algum
dos profetas”). Não captam a condição única de Jesus, a sua novidade, a sua
originalidade. Reconhecem, apenas, que Jesus é um homem convocado por Deus e
enviado ao mundo com uma missão – como os profetas do Antigo Testamento… Mas
não vão além disso. Na perspectiva dos “homens”, Jesus é, apenas, um homem bom,
justo, generoso, que escutou os apelos de Deus e que Se esforçou por ser um
sinal vivo de Deus, como tantos outros homens antes d’Ele (vers. 13-14). É
muito, mas não é o suficiente: significa que os “homens” não entenderam a
novidade do Messias, nem a profundidade do mistério de Jesus.
A opinião dos discípulos acerca
de Jesus vai muito além da opinião comum. Pedro, porta-voz da comunidade dos
discípulos, resume o sentir da comunidade do Reino na expressão: “Tu és o
Cristo, o Filho de Deus vivo” (vers. 16). Nestes dois títulos, resume-se a fé
da Igreja de Mateus e a catequese aí feita sobre Jesus. Dizer que Jesus é “o Cristo”
(Messias) significa dizer que Ele é esse libertador que Israel esperava,
enviado por Deus para libertar o seu Povo e para lhe oferecer a salvação
definitiva. No entanto, para os membros da comunidade do Reino, Jesus não é
apenas o Messias: é também o “Filho de Deus”. No Antigo Testamento, a expressão
“Filho de Deus” é aplicada aos anjos (cf. Dt 32,8; Sal 29,1; 89,7; Job 1,6), ao
Povo eleito (cf. Ex 4,22; Os 11,1; Jer 3,19), aos vários membros do Povo de
Deus (cf. Dt 14,1-2; Is 1,2; 30,1.9; Jer 3,14), ao rei (cf. 2 Sm 7,14) e ao
Messias/rei da linhagem de David (cf. Sal 2,7; 89,27). Designa a condição de
alguém que tem uma relação particular com Deus, a quem Deus elegeu e a quem
Deus confiou uma missão. Definir Jesus como o “Filho de Deus” significa, não só
que Ele recebe vida de Deus, mas que vive em total comunhão com Deus, que
desenvolve com Deus uma relação de profunda intimidade e que Deus Lhe confiou
uma missão única para a salvação dos homens; significa reconhecer a profunda
unidade e intimidade entre Jesus e o Pai e que Jesus conhece e realiza os projetos
do Pai no meio dos homens. Os discípulos são convidados a entender dessa forma
o mistério de Jesus.
Na segunda parte (vers. 17-19),
temos a resposta de Jesus à confissão de fé da comunidade dos discípulos,
apresentada pela voz de Pedro. Jesus começa por felicitar Pedro (isto é, a
comunidade) pela clareza da fé que o anima. No entanto, essa fé não é mérito de
Pedro, mas um dom de Deus (“não foram a carne e o sangue que to revelaram, mas
sim o meu Pai que está nos céus” – vers. 17). Pedro (os discípulos) pertence a
essa categoria dos “pobres”, dos “simples”, abertos à novidade de Deus, que têm
um coração disponível para acolher os dons e as propostas de Deus (esses
“pobres” e “simples” estão em contraposição com os líderes – fariseus, doutores
da Lei, escribas – instalados nas suas certezas, seguranças e preconceitos,
incapazes de abrir o coração aos desafios de Deus).
O que é que significa Jesus dizer
a Pedro que ele é “a rocha” (o nome “Pedro” é a tradução grega do hebraico
“Kephâ” – “rocha”) sobre a qual a Igreja de Jesus vai ser construída? As
palavras de Jesus têm de ser vistas no contexto da confissão de fé precedente.
Mateus está, portanto, a afirmar que a base firme e inamovível, sobre a qual
vai assentar a Ekklesia de Jesus é a fé que Pedro e a comunidade dos discípulos
professam: a fé em Jesus como o Messias, Filho de Deus vivo.
Para que seja possível a Pedro
testemunhar que Jesus é o Messias Filho de Deus e edificar a comunidade do
Reino, Jesus promete-lhe “as chaves do Reino dos céus” e o poder de “ligar e
desligar”. Aquele que detém as chaves, no mundo bíblico, é o “administrador do
palácio”… Ora o “administrador do palácio”, entre outras coisas, administrava
os bens do soberano, fixava o horário da abertura e do fechamento das portas do
palácio e definia quais os visitantes a introduzir junto do soberano… Por outro
lado, a expressão “atar e desatar” designava, entre os judeus da época, o poder
para interpretar a Lei com autoridade, para declarar o que era ou não
permitido, para excluir ou reintroduzir alguém na comunidade do Povo de Deus.
Assim, Jesus nomeia Pedro para “administrador” e supervisor da Igreja, com
autoridade para interpretar as palavras de Jesus, para adaptar os ensinamentos de
Jesus a novas necessidades e situações, e para acolher ou não novos membros na
comunidade dos discípulos do Reino (atenção: todos são chamados por Deus a
integrar a comunidade do Reino; mas aqueles que não estão dispostos a aderir às
propostas de Jesus não podem aí ser admitidos).
Trata-se, aqui, de confiar a um
homem (Pedro) um primado, um papel de liderança absoluta (o poder das chaves, o
poder de ligar e desligar) da comunidade dos discípulos? Ou Pedro é, aqui, um
discípulo que dá voz a todos aqueles que acreditam em Jesus e que representa a
comunidade dos discípulos? É difícil, a partir deste texto, fazer afirmações
concludentes e definitivas. O poder de “ligar e desligar”, por exemplo, aparece
noutro contexto, confiado à totalidade da comunidade e não a Pedro em exclusivo
(cf. Mt 18,18). Provavelmente, o mais correcto é ver em Pedro o protótipo do
discípulo; nele, está representada essa comunidade que se reúne em volta de
Jesus e que proclama a sua fé em Jesus como o “Messias” e o “Filho de Deus”. É
a essa comunidade, representada por Pedro, que Jesus confia as chaves do Reino
e o poder de acolher ou excluir. Isso não invalida que Pedro fosse uma figura
de referência para os primeiros cristãos e que desempenhasse um papel de
primeiro plano na animação da Igreja nascente, sobretudo nas comunidades da
Síria (as comunidades a que o Evangelho de Mateus se destina).
ATUALIZAÇÃO
• Quem é Jesus? O que é que “os
homens” dizem de Jesus? Muitos dos nossos conterrâneos vêem em Jesus um homem
bom, generoso, atento aos sofrimentos dos outros, que sonhou com um mundo
diferente; outros vêem em Jesus um admirável “mestre” de moral, que tinha uma
proposta de vida “interessante”, mas que não conseguiu impor os seus valores;
alguns vêem em Jesus um admirável condutor de massas, que acendeu a esperança
nos corações das multidões carentes e órfãs, mas que passou de moda quando as
multidões deixaram de se interessar pelo fenômeno; outros, ainda, vêem em Jesus
um revolucionário, ingênuo e inconsequente, preocupado em construir uma
sociedade mais justa e mais livre, que procurou promover os pobres e os
marginais e que foi eliminado pelos poderosos, preocupados em manter o “statu
quo”. Estas visões apresentam Jesus como “um homem” – embora “um homem”
excepcional, que marcou a história e deixou uma recordação imorredoura. Jesus
foi, apenas, um “homem” que deixou a sua pegada na história, como tantos outros
que a história absorveu e digeriu?
• Para os discípulos, Jesus foi
bem mais do que “um homem”. Ele foi e é “o Messias, o Filho de Deus vivo”.
Definir Jesus dessa forma significa reconhecer em Jesus o Deus que o Pai enviou
ao mundo com uma proposta de salvação e de vida plena, destinada a todos os
homens. A proposta que Ele apresentou não é, apenas, uma proposta de “um homem”
bom, generoso, clarividente, que podemos admirar de longe e aceitar ou não; mas
é uma proposta de Deus, destinada a tornar cada homem ou cada mulher uma pessoa
nova, capaz de caminhar ao encontro de Deus e de chegar à vida plena da
felicidade sem fim. A diferença entre o “homem bom” e o “Messias, Filho de
Deus”, é a diferença entre alguém a quem admiramos e que é igual a nós, e alguém
que nos transforma, que nos renova e que nos encaminha para a vida eterna e
verdadeira.
• “E vós, quem dizeis que Eu
sou?” É uma pergunta que deve, de forma constante, ecoar nos nossos ouvidos e
no nosso coração. Responder a esta questão não significa papaguear lições de
catequese ou tratados de teologia, mas sim interrogar o nosso coração e tentar
perceber qual é o lugar que Cristo ocupa na nossa existência… Responder a esta
questão obriga-nos a pensar no significado que Cristo tem na nossa vida, na atenção
que damos às suas propostas, na importância que os seus valores assumem nas
nossas opções, no esforço que fazemos ou que não fazemos para O seguir… Quem é
Cristo para mim?
• É sobre a fé dos discípulos
(isto é, sobre a sua adesão ao Cristo libertador e salvador, que veio do Pai ao
encontro dos homens com uma proposta de vida eterna e verdadeira) que se
constrói a Igreja de Jesus. O que é a Igreja? O nosso texto responde de forma
clara: é a comunidade dos discípulos que reconhecem Jesus como “o Messias, o
Filho de Deus”. Que lugar ocupa Jesus na nossa experiência de caminhada em
Igreja? Porque é que estamos na Igreja: é por causa de Jesus Cristo, ou é por
outras causas (tradição, inércia, promoção pessoal…)?
• A Igreja de Jesus não existe,
no entanto, para ficar a olhar para o céu, numa contemplação estéril e
inconsequente do “Messias, Filho de Deus”; mas existe para O testemunhar e para
levar a cada homem e a cada mulher a proposta de salvação que Cristo veio
oferecer. Temos consciência desta dimensão “profética” e missionária da Igreja?
Os homens e as mulheres com quem contatamos no dia a dia – em casa, no emprego,
na escola, na rua, no prédio, nos acontecimentos sociais – recebem de nós este
anúncio e este convite a integrar a comunidade da salvação?
• A comunidade dos discípulos é
uma comunidade organizada e estruturada, onde existem pessoas que presidem e
que desempenham o serviço da autoridade. Essa autoridade não é, no entanto,
absoluta; mas é uma autoridade que deve, constantemente, ser amor e serviço.
Sobretudo, é uma autoridade que deve procurar discernir, em cada momento, as
propostas de Cristo e a interpelação que Ele lança aos discípulos e a todos os
homens.
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