21º Domingo do Tempo Comum - Ano
C
O caminho do amor e do dom da
vida.
A liturgia deste domingo
propõe-nos o tema da “salvação”. Diz-nos que o acesso ao “Reino” – à
vida plena, à felicidade total (“salvação”) – é um dom que Deus oferece a todos
os homens e mulheres, sem exceção; mas, para lá chegar, é preciso renunciar a
uma vida baseada nesses valores que nos tornam orgulhosos, egoístas,
prepotentes, autosuficientes, e seguir Jesus no seu caminho de amor, de
entrega, de dom da vida.
Na primeira leitura, um
profeta não identificado propõe-nos a visão da comunidade escatológica: será
uma comunidade universal, à qual terão acesso todos os povos da terra, sem
exceção. Os próprios pagãos serão chamados a testemunhar a Boa Nova de Deus e
serão convidados para o serviço de Deus, sem qualquer discriminação baseada na
raça, na etnia ou na origem.
No Evangelho, Jesus –
confrontado com uma pergunta acerca do número dos que se salvam – sugere que o
banquete do “Reino” é para todos; no entanto, não há entradas garantidas, nem
bilhetes reservados: é preciso fazer uma opção pela “porta estreita” e aceitar
seguir Jesus no dom da vida e no amor total aos irmãos.
A segunda leitura parece,
à primeira vista, apresentar um tema um tanto deslocado e marginal, em relação
ao que nos é proposto pelas outras duas leituras; no entanto, as ideias
propostas são uma outra forma de abordar a questão da “porta estreita”: o
verdadeiro crente enfrenta com coragem os sofrimentos e provações, vê neles
sinais do amor de Deus que, dessa forma, educa, corrige, mostra o sem sentido
de certas opções e nos prepara para a vida nova do “Reino”.
LEITURA I – Is 66,18-21
Os capítulos 56-66 do livro de
Isaías (conhecidos genericamente como “Trito-Isaías”) são atribuídos pela maior
parte dos estudiosos atuais a diversos autores, vinculados espiritualmente ao
Deutero-Isaías. Sobre estes autores não sabemos rigorosamente nada, a não ser
que apresentaram a sua mensagem nos últimos anos do séc. VI e princípios do
séc. V a.C. (as temáticas abordadas situam-nos, claramente, num contexto
pós-exílico).
Dentro das fronteiras do antigo
reino de Judá temos, por esta época, uma comunidade heterodoxa, que agrupa
judeus regressados do Exílio, judeus que ficaram no país após a catástrofe de 586 a.C., estrangeiros que se
estabeleceram em Jerusalém durante o Exílio e outros que, após o regresso dos
exilados, vieram oferecer a sua mão-de-obra. Em relação aos estrangeiros, o
problema põe-se da seguinte forma: em que medida esses estrangeiros, cada vez
mais numerosos, podem ser integrados no Povo de Deus? A questão não é fácil,
pois a comunidade regressada do Exílio, ameaçada por inimigos internos (as
gentes que ficaram no país e que não entendem o zelo religioso dos retornados)
e por inimigos externos (sobretudo os samaritanos), tem tendência a fechar-se.
Esdras e Neemias – os grandes líderes desta fase – favoreceram, aliás, uma
política xenófoba, proibindo até os casamentos mistos (cf. Esd 9-10; Ne
13,23-27).
Os textos do Trito-Isaías abordam
o problema dos estrangeiros e, como coletânea de textos de autores e pregadores
diversos, manifestam, a este respeito, uma vasta gama de atitudes, que vão
desde o apelo ao aniquilamento das nações que se obstinam no mal (cf. Is
63,3-6; 64,1; 66,15-16), até à admissão de estrangeiros no seio do Povo de
Deus. No geral, domina a perspectiva universalista… É, aliás, nessa perspectiva
aberta e tolerante para com os outros povos que o nosso texto nos coloca.
O autor deste texto considera que
todas as nações são chamadas a integrar o Povo de Deus. É nessa perspectiva que
ele compõe a visão de caráter escatológico que o nosso texto nos apresenta: no
mundo novo que vai chegar, todos são convocados por Deus para integrar o seu
Povo.
O esquema apresenta várias
etapas: primeiro, Deus virá para dar início ao processo de reunião das nações
(vers. 18); depois, dará um sinal e enviará missionários (escolhidos de entre
os povos estrangeiros), a fim de que anunciem a glória do Senhor – mesmo às
nações mais distantes (vers. 19); em seguida, as nações responderão ao sinal do
Senhor e dirigir-se-ão ao monte santo de Jerusalém (Jerusalém é, na teologia
judaica, o “umbigo” do mundo, o lugar onde Deus reside no meio do seu Povo e
onde irá irromper a salvação definitiva), trazendo como oferenda ao Senhor os
israelitas dispersos no meio das nações (vers. 20); finalmente, o Senhor
escolherá de entre os que chegam (dos judeus regressados da Diáspora e dos
pagãos que escutaram o convite do Senhor para integrar a comunidade da
salvação) sacerdotes e levitas para o servirem (vers. 21).
Estamos num contexto político em
que não era fácil ter uma visão tolerante sobre as outras nações. Dizer que
todos os povos são convocados por Deus e que Deus a todos oferece a salvação já
é algo de escandaloso para os judeus da época; porém, é algo de inaudito dizer
que Jahwéh escolherá de entre eles missionários, a fim de os enviar ao encontro
das nações; e é absolutamente inconcebível dizer que Deus vai escolher, de
entre os pagãos, sacerdotes e levitas que entrem no espaço sagrado e reservado
do Templo (onde, recorde-se, qualquer pagão que entrasse era réu de morte) para
o serviço do Senhor.
ATUALIZAÇÃO
Considerar as seguintes linhas,
para a reflexão:
¨ Não é novidade nenhuma dizer
que “ao novo Povo de Deus, todos os homens são chamados” (Concílio Vaticano II,
Lumen Gentium 13). No Povo de Deus não é decisivo nem a raça, nem o sexo, nem a
posição social, nem a preparação intelectual, mas sim a adesão a Jesus e o
compromisso com o projeto de salvação que o Pai oferece, em Jesus. As nossas
comunidades são, não só em teoria mas também na prática, espaços de igualdade e
de fraternidade? Há algum tipo de discriminação na minha comunidade cristã,
nomeadamente em relação a pessoas que se entende levarem vidas desregradas e
moralmente fracassadas? Se há, que sentido é que isso faz?
¨ Que sentido é que fazem, neste
contexto, certas afirmações e atitudes de cristãos empenhados que refletem, na
prática, um entranhado racismo? A xenofobia é consentânea com a vida de um
crente? Por exemplo, dizer que “Portugal é dos portugueses; os outros que
voltem para a sua terra” é colaborar na construção dessa comunidade universal,
que é o projeto de Deus?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 116 (117)
Refrão: Ide por todo o mundo, anunciai a boa nova.
Louvai o Senhor, todas as nações,
aclamai-O, todos os povos.
É firme a sua misericórdia para conosco,
a fidelidade do Senhor permanece para sempre.
LEITURA II – Heb 12,5-7.11-13
Voltamos à Carta aos Hebreus. O
texto que hoje nos é proposto é a continuação do que lemos no passado domingo.
Estamos na segunda secção da quarta parte da carta (cf. Heb 12,1-13), onde o
autor faz um veemente apelo à constância e a perseverar na fé. Recordemos que
esta carta se destina a uma comunidade (ou grupo de comunidades) que já perdeu
o entusiasmo inicial e que se arrasta numa fé instalada, cômoda e sem grandes
exigências; recordemos também que esta comunidade começa a conhecer as
tribulações e as perseguições e corre o risco da apostasia. É neste contexto
que temos de situar o apelo que o texto nos apresenta.
Depois de apelar aos crentes no
sentido de se esforçarem, como atletas, para chegar à vitória, a exemplo de
Cristo (cf. Heb 12,1-4), o autor convida os cristãos a aceitar as correções e
repreensões de Deus, como atos pedagógicos de um Pai preocupado com a
felicidade dos filhos.
A questão fundamental gira à
volta do sentido do sofrimento e das provas que os crentes têm que suportar
(nomeadamente, as perseguições e incompreensões que os cristãos sofrem). Uma
certa mentalidade religiosa popular considerava o sofrimento como um castigo de
Deus para o pecado do homem (cf. Jo 9,1-3); mas, para o autor da Carta aos
Hebreus, o sofrimento não é um castigo, mas sim uma medicina, uma pedagogia,
que Deus utiliza para nos amadurecer e ensinar a viver. Deus serve-Se desses
meios para nos mostrar o sem sentido de certos comportamentos; dessa forma, Ele
demonstra a sua solicitude paternal. Como sinais do amor que Deus nos tem, os
sofrimentos são uma prova da nossa condição de “filhos de Deus”.
Além de nos mostrarem o amor de
Deus, as provas aperfeiçoam-nos, transformam-nos, levam-nos a mudar a nossa
vida. Por essa transformação, vamo-nos fazendo interiormente capazes da
santidade de Deus, aptos para recebê-la. Por isso, quando chegam, devem ser
consideradas como parte do projeto salvador de Deus para nós, portadoras de paz
e de salvação… E devem levar-nos ao agradecimento.
A conclusão apresenta-se em forma
de exortação. Citando Is 35,3, o autor da Carta aos Hebreus convida os crentes
a confiar e a vencer o temor que desalenta e paralisa.
ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão, ter em conta os
seguintes elementos:
¨ Com frequência, encontramos
pessoas que põem em causa
Deus, a partir da questão do sofrimento e do seu sentido: se
Deus existe, porque é que deixa que o sofrimento marque a vida do homem,
inclusive a vida dos justos e inocentes? Porque é que Deus prova o justo? O
Povo de Deus formulou de várias formas estas questões e não encontrou respostas
plenamente satisfatórias; mas uma das respostas passa pela constatação de que
“Deus escreve direito por linhas tortas” e que Se serve dos acontecimentos mais
dramáticos para nos ajudar a redescobrir o sentido da vida e das nossas opções.
O sofrimento não é bom em si; mas ajuda-nos a perceber o sem sentido de certos
caminhos que seguimos e a corrigir o rumo da nossa vida.
¨ No fundo, os sofrimentos e as
provas que temos de enfrentar não põem em causa esta certeza fundamental: Deus
ama-nos e quer salvar-nos; o sofrimento e as provas permitem-nos, muitas vezes,
descobrir essa realidade.
¨ Apesar das crises, o cristão
nunca deve esquecer o amor de Deus e agradecer por isso. Diante dos
sofrimentos, resta-nos agradecer a preocupação desse Deus que, servindo-se dos
dramas da vida, nos manifesta o seu amor e nos salva.
ALELUIA – Jo 14,6
Aleluia. Aleluia.
Eu sou o caminho, a verdade e a
vida, diz o Senhor:
ninguém vai ao Pai senão por Mim.
EVANGELHO – Lc 13,22-30
O episódio que o Evangelho de
hoje nos apresenta recorda-nos que continuamos, com Jesus e com os discípulos,
a percorrer o “caminho de Jerusalém”. O interesse central desta “viagem”
continua a ser descrever os traços do autêntico crente e apontar o caminho do
“Reino” à comunidade cristã, herdeira do projeto de Jesus.
O texto de Lc 13,22-30 é
constituído por materiais de distintas procedências, aqui agrupados por razões
de interesse temático. Inicialmente, eram “ditos” de Jesus (pronunciados em
contextos distintos) sobre a entrada no “Reino” (Mateus apresenta os mesmos
“ditos” sob formas e em contextos diferentes – cf. Lc 13,23-24 e Mt 7,13-14; Lc
13,25 e Mt 25,10-12; Lc 13,26-27 e Mt 7,22-23; Lc 13,28-29 e Mt 8,12; Lc 13,30
e Mt 19,30). Lucas aproveita-os para mostrar as diferenças entre a teologia dos
judeus e a de Jesus, a propósito da salvação.
Na perspectiva da catequese que,
hoje, Lucas nos apresenta, as palavras de Jesus são uma reflexão sobre a
questão da salvação. A catequese é despoletada por uma questão posta na boca de
alguém não identificado: “Senhor, são poucos os que se salvam?”
A questão da salvação era, na
realidade, uma questão muito debatida nos ambientes rabínicos. Para os fariseus
da época de Jesus, a “salvação” era uma realidade reservada ao Povo eleito e só
a ele; mas, nos círculos apocalípticos, dominava uma visão mais pessimista e
sustentava-se que muito poucos estavam destinados à felicidade eterna. Jesus,
no entanto, falava de Deus como um Pai cheio de misericórdia, cuja bondade
acolhia a todos, especialmente os pobres e os débeis. Fazia, portanto, sentido
saber o que pensava Jesus acerca da questão…
Jesus não responde diretamente à
pergunta. Para Ele, mais do que falar em números concretos a propósito da
“salvação”, é importante definir as condições para pertencer ao “Reino” e
estimular nos discípulos a decisão pelo “Reino”. Ora, na óptica de Jesus,
entrar no “Reino” é, em primeiro lugar, esforçar-se por “entrar pela porta
estreita” (vers. 24). A imagem da “porta estreita” é sugestiva para significar
a renúncia a uma série de fardos que “engordam” o homem e que o impedem de
viver na lógica do “Reino”. Que fardos são esses? A título de exemplo,
poderíamos citar o egoísmo, o orgulho, a riqueza, a ambição, o desejo de poder
e de domínio… Tudo aquilo que impede o homem de embarcar numa lógica de
serviço, de entrega, de amor, de partilha, de dom da vida, impede a adesão ao
“Reino”.
Para explicitar melhor o
ensinamento acerca da entrada do “Reino”, Lucas põe na boca de Jesus uma
parábola. Nela, o “Reino” é descrito na linha da tradição judaica, como um
banquete em que os eleitos estarão lado a lado com os patriarcas e os profetas
(vers. 25-29). Quem se sentará à mesa do “Reino”? Todos aqueles que acolheram o
convite de Jesus à salvação aderiram ao seu projeto e aceitaram viver, no
seguimento de Jesus, uma vida de doação, de amor e de serviço… Não haverá
qualquer critério baseado na raça, na geografia, nos laços étnicos, que barre a
alguém a entrada no banquete do “Reino”: a única coisa verdadeiramente decisiva
é a adesão a Jesus. Quanto àqueles que não acolheram a proposta de Jesus: esses
ficarão, logicamente, fora do banquete do “Reino”, ainda que se considerem
muito santos e tenham pertencido, institucionalmente, ao Povo eleito. É
evidente que Jesus está a falar para os judeus e a sugerir que não é pelo fato
de pertencerem a Israel que têm assegurada a entrada no “Reino”; mas a parábola
aplica-se igualmente aos “discípulos” que, na vida real, não quiserem despir-se
do orgulho, do egoísmo, da ambição, para percorrer, com Jesus, o caminho do
amor e do dom da vida.
ATUALIZAÇÃO
Para refletir e partilhar,
considerar os seguintes dados:
¨ Em primeiro lugar, é preciso
ter a consciência de que o “Reino” não está condicionado a qualquer lógica de
sangue, de etnia, de classe, de ideologia política, de estatuto econômico: é
uma realidade que Deus oferece gratuitamente a todos; basta que se acolha essa
oferta de salvação, se adira a Jesus e se aceite entrar pela “porta estreita”.
Tenho consciência de que a comunidade de Jesus é a comunidade onde todos cabem
e onde ninguém é excluído e marginalizado?
¨ “Entrar pela porta estreita”
significa, na lógica de Jesus, fazer-se pequeno, simples, humilde, servidor,
capaz de amar os outros até ao extremo e de fazer da vida um dom. Por outras
palavras: significa seguir Jesus no seu exemplo de amor e de entrega. Quando Tiago
e João pretenderam reivindicar lugares privilegiados no “Reino”, Jesus
apressou-Se a dizer-lhes que era necessário primeiro partilhar o destino de
Jesus e fazer da vida um dom (“beber o cálice”) e um serviço (“o Filho do Homem
não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida”). Jesus é, portanto, o
modelo de todos os que querem “entrar pela porta estreita”. É o seu exemplo que
é proposto a todos os discípulos.
¨ Já constatamos todos que esta
“porta estreita” não é, hoje, muito popular. A este propósito, os homens de
hoje têm perspectivas bem diferentes de Jesus… A felicidade, a vida plena
encontra-se, para muitos dos nossos contemporâneos, no poder, no êxito, na
exposição social, nos cinco minutos de fama que a televisão proporciona, no
dinheiro (afinal, o novo deus que move o mundo, que manipula as consciências e
que define quem tem ou não êxito, quem é ou não feliz). Como nos situamos face
a isto? As nossas opções vão mais vezes na linha da “porta larga” do mundo, ou
da “porta estreita” de Jesus?
¨ É preciso ter consciência de
que o acesso ao “Reino” não é, nunca, uma conquista definitiva, mas algo que
Deus nos oferece cada dia e que, cada dia, nós aceitamos ou rejeitamos. Ninguém
tem automaticamente garantido, por decreto, o acesso ao “Reino”, de forma que
possa, a partir de uma certa altura, ter comportamentos pouco consentâneos com
os valores do “Reino”. O acesso à salvação é algo a que se responde – positiva
ou negativamente – todos os dias e que nunca é um dado totalmente seguro e
adquirido.
¨ Para nós, assumidamente
cristãos, onde está a salvação? Jesus dizia que, no banquete do “Reino”, muitos
apareceriam a dizer: “comemos e bebemos contigo e tu ensinaste nas nossas
praças”; mas receberiam como resposta: “não sei de onde sois; afastai-vos de
mim todos os que praticais a iniquidade”. Este aviso toca de forma especial
aqueles que conheceram bem Jesus, que se sentaram com Ele à mesa (da
Eucaristia), que escutaram as suas palavras, que fizeram parte do conselho
pastoral da paróquia, que foram fiéis guardiães das chaves da igreja ou dos
cheques da conta bancária paroquial, que até, se calhar, se sentaram em tronos
episcopais ou papais… mas que nunca se preocuparam em entrar pela “porta
estreita” do serviço, da simplicidade, do amor, do dom da vida. Esses – Jesus é
perfeitamente claro e objetivo – não terão lugar no “Reino”.
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