O caminho da Liberdade
1. Introdução
Nosso caminho para Deus é um caminho de volta. Jesus Cristo já nos
deu as condições para voltarmos, mas somos como o filho pródigo que tem saudades da
casa do Pai.
Nas outras línguas, não existe a nossa palavra saudades. Usam
"nostalgia", uma palavra interessante porque recorda todo um aspecto humano
muito desenvolvido pela literatura grega: o de "nóstos", que quer dizer "o
caminho da volta". O famoso livro "A Odisséia" é um exemplo de
"nóstos": conta o aventuroso caminho de volta de Ulisses depois da guerra de
Troia. Nostalgia quer dizer exatamente: "a dor da volta".
Os Santos Padres da Igreja primitiva chamaram esse caminho de
"ascese", que quer dizer "exercício". Para voltar, já que Jesus nos
abriu a possibilidade, temos que trabalhar com entusiasmo a possibilidade de refazer
nossa vida livre.
2). Como fazer um caminho
O caminho da libertação vai consistir fundamentalmente em ir criando
espaços para o Deus Libertador, cada vez maiores. São espaços que começam na nossa
interioridade mas têm que chegar a ocupar toda a nossa vida. Começamos indicando
alguns requisitos.
a). Querer e colaborar
Para iniciar, temos que descobrir todos os nossos menores anseios de
libertação para começar a cultivá-los. Só um imenso querer vai levar-nos por essa
caminhada.
Mas a primeira atitude é reconhecer que ter anseios de liberdade já
é um sinal da graça de Deus atuando em nossas vidas. Cultivar esses anseios quer dizer
colaborar com a graça. Note-se que é a graça da Liberdade total, porque é o
Deus-Liberdade que está agindo em nós, mas que nós colaboramos com aquele mínimo de
graça que também é dom de Deus e que ainda não perdemos. Quanto mais a nossa pequena
liberdade de pecadores se juntar à força da infinita Liberdade de Deus mais vamos nos
adiantar no caminho. Os Santos Padres chamavam essa colaboração de
"sinergismo", palavra que mostra a energia que Deus e nós empregamos juntos.
Deus ajuda. Ele tem uma vontade infinita de nos ajudar. Mas não
podemos esperar que ele faça tudo sozinho, porque o interesse é mesmo nosso.
b) Dar dinâmica ao crescimento
Como São Francisco e Santa Clara advertem, muitas pessoas já
começaram, mas a maioria abandona o caminho. Cada um de nós pode recordar inúmeras
ocasiões em que fez isso.
Seria aconselhável anotar os próprios anseios fundamentais e retornar
periodicamente a essas anotações para ver quais têm sido os progressos, animando-nos
sem cessar.
É bom fazer uma espécie de histórico de nossa vida, para nos darmos conta das
inúmeras vezes em que a graça de Deus esteve presente. É interessante ver nos
Testamentos de São Francisco e Santa Clara como eles fizeram um caminho ardoroso porque
sempre souberam ver a mão de Deus agindo em suas vidas.
c) Observar a obediência aos mandamentos
Em geral, fomos ensinados a encarar os mandamentos de Deus, tanto o
decálogo de Moisés como o mandato de amor de Jesus no Evangelho, como leis pesadas a que
temos que nos submeter com sacrifício. Ora, essa atitude é um sinal de nossa
escravidão. Temos que virar essa mesa. É preciso ir percebendo que nós só observamos o
que Deus nos propõe quando o fazemos com um imenso amor e, é claro, com liberdade.
Podemos avaliar o crescimento de nossa liberdade pelo interesse, prontidão, entusiasmo
com que formos correspondendo a tudo que vem do Deus que é Amor. Essa foi a atitude
fundamental de São Francisco que, mais do que tudo, queria ser obediente como o Filho de
Deus sempre foi obediente.
d) A via ascética
Em geral, escutamos a palavra ascese com desconfiança e temor. Parece
exigir de nós uma porção de sacrifícios e mortificações. Ora, "ascese"
quer dizer simplesmente "exercício, treino". Como não podemos praticar
esportes ou tocar instrumentos sem treino, também não podemos viver a liberdade sem a
ascese.
Na ascese os exercícios trabalham com nossos impulsos naturais,
também chamados de paixões. Consiste em perceber e anotar quais os principais impulsos
que costumam agir sobre nós, darse conta de como reagimos a eles e planejar como podemos
reagir mais positivamente.
A ascese é um exercício de liberdade. Trabalha com a força de Deus e
pode mudar nosso coração e mesmo nossa mente. Dedicandonos a ela, podemos ir
reconstruindo progressivamente a imagem de Deus em nós para sermos cada vez mais outros
Cristos.
Um dos pontos fundamentais dessa progressiva identificação com Jesus
está em trazer para a própria vida quotidiana a presença da morte vivificante de
Cristo. Essa é a finalidade básica de nossa participação freqüente na Eucaristia.
Isso é o que São Francisco chamava de "seguir os passos de Jesus Crucificado".
e) Algumas reflexões
Jesus disse que ele era o caminho. Evidentemente, o caminho de volta
para o Pai depois que, como o filho pródigo, começamos a sentir na carne que não dá
para continuar. Então, o nóstos é para a casa paterna, para os braços do Pai de
Jesus, que é o Pai de toda ternura. Mas é principalmente uma volta ao Pai que é a
Liberdade, até a liberdade de errar abandonando o que era nossa própria casa.
Quando rompemos com o Pai, precisamos criar um mundo novo "à
nossa imagem e semelhança". Temos um trabalho enorme para administrar esse mundo
porque, na realidade, é um mundo falso: tudo que está fora ou longe de Deus é falso,
porque só Deus existe.
Nosso problema concreto é que temos que viver inventando coisas para
tapar buracos. Vivemos cheios de ocupações e de remendos. É principalmente por isso que
não somos livres.Amar pressupõe um darse contínuo, que não combina com a preocupação
obsessiva de estar remendando a barca para não afundar.
As pessoas que fazem voto de castidade querem ser livres para amar,
como Deus as criou. A visão do voto como uma negação do sexo é um dos aspectos do
mundo que criamos, sem Deus, à nossa imagem e semelhança. É um mundo de receitas
fáceis (viver sem relações sexuais pode ser difícil, mas a receita é facílima. É
só dizer: tudo que é relativo a sexo é proibido). Também fica evidente que é todo um
trabalho de libertação do que nos impede de amar. E podemos cultivar com êxito, numa
perspectiva nova, todos os nossos anseios de um amor melhor.
a) O primeiro fruto é a pobreza na interioridade
Consiste em abrir espaço para Deus e para nós mesmos em nossa
própria interioridade. Podemos dizer que Santa Clara ensinou a fazer isso quando disse:
"Ponha a alma no esplendor da glória".
A pobreza, a primeira bemaventurança e também a fundamental, pois
engloba todas as outras, é a imitação direta do exemplo de Jesus Cristo, que todos os
seus discípulos devem seguir. Ele mesmo propôs isso no Evangelho. Santos como Francisco
e Clara fizeram da imitação de Jesus pobre o fundamento da vida.
Observese que não estamos falando aqui da necessidade da pobreza, da
ascese da pobreza. Estamos falando da pobreza como um fruto da liberdade. Quando
percebemos que lá dentro de nós mesmos estamos conseguindo nos importar cada vez menos
com os nossos sucessos, com as nossas inúmeras "vontades" muito próprias, com
a nossa contínua preocupação de estender as mãos e os olhos para dizer "Isso é
meu!", a liberdade está dando seu primeiro fruto: a pobreza.
Os Santos Padres também a chamaram, nesse caso, de
"apátheia", a capacidade de controlar os nossos impulsos para que , além de
nos deixarem livres para fazer o bem, sejam fonte de boas ações.
b) O segundo fruto é a tranqüilidade na Oração
Consiste em abrir espaço para Deus em nossa mente. Podemos dizer que
Santa Clara ensinou a fazer isso quando disse: "Ponha a mente no espelho da
eternidade". O aspecto fundamental de nossa oração é ouvir Deus. Quando podemos
constatar que está ficando cada vez mais fácil ouvilo é sinal de que nosso caminho já
está dando o seu segundo fruto: também conquistamos uma mente sossegada para soltar a
liberdade de Deus dentro de nós. Os Santos Padres, especialmente na Igreja grega, usavam
para essa situação uma série de palavras muito típicas. Falavam em
"amerimnia", que é a capacidade de viver sem se deixar dominar pelas
preocupações; em "nepsis", que é como um jejum interior que nos faz
"comer" menos e apreciar mais o que entra dentro de nós; em
"hesiquia", que é o sossego ou paz interior de quem ficou livre para acolher
Deus lá dentro de sua casa. Mostravam que só começa a haver uma verdadeira oração (em
grego, "proseuqué" quando a gente consegue dar a Deus toda a atenção (em
grego "prosoqué").
c) O terceiro fruto é a liberdade para amar
Consiste em abrir espaço em nosso coração para amar a Deus em nosso
próximo. Podemos dizer que Santa Clara ensinou isso quando disse: "Ponha o coração
na figura da substância divina". Esse fruto vem quando nosso desejo fundamental é
acolher Jesus Cristo, que é a figura visível de Deus.
Talvez se possa dizer que o normal é nós irmos aprendendo a amar as
pessoas para chegar, pouco a pouco, a amar Deus. Mas a nossa verdadeira liberdade estará
chegando, seus frutos estarão bem madurinhos em nossa árvore quando percebermos que
– depois de ter dado espaço para Deus dentro de nós e depois de o termos acolhido
– começou a ficar muito mais fácil amar com liberdade as pessoas, todas as pessoas,
até as que nos pareciam "mais difíceis".
A esse amor totalmente novo na experiência da humanidade, os primeiros
cristãos chamaram de "ágape", uma palavra formada a partir do verbo grego
"agapan" que quer dizer: acolher com os braços e com o coração bem abertos.
Quando estivermos começando a colher este fruto, poderemos dizer com
São João: "Quem ama já está na vida eterna". Não precisamos de mais nada.
4). Uma conclusão
Não devemos viver a ascese como uma experiência dolorida. A dor não
está no caminho da volta, está no fato de ainda estarmos fora de nossa casa.
Por isso, mesmo quando sentimos que estamos sendo esvaziados por
dentro, podemos e devemos festejar. Estamos chegando cada vez mais perto e podemos
perceber que estamos dando à luz uma nova presença de Deus e uma nova presença das
outras pessoas em nossa vida. Não sendo mais presenças possessivas, passaram a ser
presenças libertadoras.
Por isso, é bom ter bem claro que, ao pé da letra, não temos que
pensar em conquistar uma vida de oração melhor, ouuma vida espiritual melhor. Só temos
que deixar que Deus, que vem ao nosso encontro, possa entrar em tudo que somos e fazemos
sem encontrar obstáculos.
5). Pontos para a reflexão
Tudo que foi dito acima merece uma profunda reflexão. Mas gostaria de
concluir dando algumas sugestões práticas que só lhe poderão fazer bem:
- Para abrir espaços em sua vida (para Deus, para o próximo e para você mesmo) é bom
você enumerar e avaliar tudo que costuma ocupar a sua atenção. Embora seja altamente
positivo ter a mente aberta para todos os campos de interesse, não conseguiremos viver se
não fizermos uma seleção. Há alguns pontos que merecem muito mais tempo, muito mais
espaço, muito mais dedicação. Quais vão ser os seus?
Outro caminho é ir aumentando progressivamente os espaços vazios (sem
fazer nada e mesmo sem pensar) reservados para Deus em cada dia.
Outra proposta é dedicar tempo para servir os outros em ocasiões em
que não podemos contabilizar nenhum mérito a nosso favor.
Mas, no fundo, o que é preciso é reforçar a vivência de que
"só uma coisa é necessária". Se não estivermos ocupados com Deus, estamos
jogando vida fora.
- Se você quiser manter um caminho de crescimento vai ter que pensar em sua dinâmica.
Foi dito que seria aconselhável anotar todos os próprios anseios fundamentais e retornar
periodicamente a essas anotações para ver quais têm sido os progressos, animandonos sem
cessar. Faça isso encontrando alguma pessoa com quem você possa dialogar sobre o seu
caminho. Faça isso inventando sistemas pessoais de revisão, que você pode sempre
renovar.
- Cada vez que você descobrir que mais um fruto de sua liberdade amadureceu, não se
esqueça de fazer uma festa. Celebre, mesmo que seja na sua solidão. Deus sempre vai
estar presente e é bom a gente dizer para Ele que está gostando da Liberdade, isto é,
dele. É quando celebramos que as descobertas da mente tomam conta de tudo, até do corpo.
- Não deixe que os seus empenhos e compromissos sejam "préocupações".
Organize o que você tem que fazer. Na hora em que tiver que fazer alguma coisa,
entregue-se inteiro, faça só isso e nada mais.
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