No âmago das incertezas, das inquietações, dos sonhos
e das experiências, que constituem a trama da vida, figuram essas três
palavras, tornadas muito importantes no momento histórico-cultural em
que vivemos. Designam uma vivência além das questões teóricas ou
pragmáticas, teológicas ou políticas, que se revelam, nos dias de hoje,
incapazes de satisfazer os mais profundos anseios do coração. Parecem
conter o segredo da felicidade e da paz, apesar das resistências que
encontram nas mentes enredadas nas certezas sempre provisórias das
ciências ou cegadas pela paixão do domínio, político ou econômico.
Espiritualidade, religião e fé têm em comum a
percepção, mais ou menos confusa, na maioria dos casos, de que a vida,
tal como se nos apresenta, tanto para as pessoas como para as
sociedades, além de breve, é incerta e está longe de ser plenamente
satisfatória. Para realizar-se, o ser humano não pode viver totalmente
em função do que é e do que faz agora, precisa descobrir algo ou alguém
que lhe ilumine existência, dê consistência à vida e sentido à sua ação,
tem sede de transcendência.
Denominamos religião, de maneira genérica, as muitas e
variadíssimas formas com que o ser humano, desde as mais antigas eras,
expressou essa sua percepção. No seio de todas as culturas, a busca do
sentido deixou marcas, mais ou menos profundas, cuja importância temos,
hoje, uma certa dificuldade em compreender, por vivermos num tempo quase
inteiramente voltado para as questões imediatas da sobrevivência e do
lazer.
Custamos a imaginar que a verdade do ser humano e,
portanto, da sociedade depende do sentido que tem a vida compartilhada,
expresso nas mil maneiras de significá-la e de entendê-la, que vão desde
as formas mais elementares da linguagem com que as pessoas e os grupos
se comunicam até o ritual e o discurso das grandes manifestações
sociais, passando pela forma que tomam as instituições econômicas,
culturais e políticas.
Antes de se traduzirem em organizações específicas,
religiões ou igrejas apresentam-se como expressão de uma resposta às
aspirações humanas para a busca de sentido. Nem sempre, porém, o
reconhecimento do sentido chega a formular-se como uma religião, na
concepção ocidental do termo, aliás de origem latina. As muitas
filosofias de vida, sabedorias ou práticas de iniciação mística que
prevalecem no Oriente constituem, sem dúvida, respostas para a busca de
sentido, por isso a elas também se pode aplicar, de maneira diversa,
analógica, a denominação religião.
De fato, religião, quer no sentido ciceroniano — de
releitura das tradições pátrias, re-legere —, quer no sentido cristão —
de restabelecimento do laço com o absoluto, re-ligare —, o termo tende a
institucionalizar-se, assumindo um perfil de relação com o Absoluto.
Envolve, assim, a vida da sociedade, de cada uma das pessoas e até mesmo
do cosmo. Nessa perspectiva, compreende-se que vise a responder às
perguntas que, de certo modo, habitam a profundidade de todos os seres
humanos: de onde viemos, que somos, para que existimos? As religiões são
construtos de rito, mito, prática de vida e instituições em que se
expressam respostas mais ou menos convincentes a tais questões. Umas
apelam para a experiência interior de união com o Transcendente; outras
para a sabedoria haurida na experiência do dia-a-dia, por meio de
gerações e gerações; outras, enfim, se caracterizam por apresentarem-se
como fruto da revelação ou manifestação do Absoluto sempre por meio de
um iluminado, uma personalidade marcante, que traçou o caminho a ser
seguido na busca de realização do anseio profundo, presente em todo
coração humano.
No terceiro caso, a religião gera e está sustentada
por uma fé: a confiança na sabedoria e na experiência espiritual daquele
que se apresenta como devendo ser seguido. Uma das grandes lições da
história das religiões é que seus fundadores nunca se apresentaram como
fonte de sentido, capazes, pessoalmente, de responder aos anseios do
coração de seus fiéis. Todos eles apontam para um caminho que os
ultrapassa ou para Alguém de quem se apresentam como testemunhas,
delegados ou, numa terminologia mais técnica, mensageiros, profetas.
Fala-se, por isso, nesse caso, de religiões
proféticas, cuja principal característica acaba sendo a prioridade
absoluta da fé, não apenas num caminho ou numa verdade, mas numa Pessoa,
de que depende todo o caminho e toda a verdade, de quem dependem todas
as coisas e o universo inteiro. Tal realidade, transcendente e pessoal, é
denominada Deus.
A fé, assim entendida, na sua gênese religiosa, é a
atitude, por excelência, de que depende a realização do ser humano. A
tradição religiosa bíblica coloca a fé como princípio do que chama de
salvação, por entender que a realização do ser humano passa por um
caminho mais ou menos longo de purificação e de triunfo sobre o mal,
sobre a morte inclusive.
Vale a pena refletir sobre as conseqüências, para a
religião e para a vida, da centralidade da fé. Na sua busca de sentido, o
ser humano, pessoas e comunidades vêem-se confrontados com Alguém que
detém, em suas mãos, o universo inteiro, e de cuja presença não nos é
possível escapar. Alguém que exige fidelidade, mas, ao mesmo tempo,
garante-nos contra todos os perigos e ameaças da vida. Alguém, enfim,
que é capaz de conferir um sentido definitivo à existência. E somente
esse Alguém.
A dinâmica das relações interpessoais, que fazem a
trama da vida cotidiana, pois ser humano algum é uma ilha, transfere-se,
sutilmente, para a dinâmica do comportamento religioso, na busca de
sentido. Assim como não há relação humana sadia sem confiança recíproca,
no nível do encontro com outrem e da troca que constitui o conteúdo
desse encontro, também não há relação com o Transcendente, não há
religião, nem fé, sem confiança, que acreditamos ser igualmente
recíproca.
Ora, assim como a qualidade da relação entre duas
pessoas denomina-se espírito que reina entre elas — espírito de
cooperação, de respeito, de atenção e de amor, mas também espírito de
competitividade, de aproveitamento do outro ou de vingança —, assim
também denominamos espírito o clima que reina na relação com Alguém de
quem dependemos e que confere sentido à nossa vida. Espírito é o
Espírito de Deus, de que participamos quando cremos.
Espiritualidade, por conseguinte, designação abstrata
da realidade da participação no Espírito, nada mais é do que a atenção e
o cultivo do clima que prevalece na nossa vida, em busca de sentido e,
em particular, o clima que reina na nossa relação uns com os outros e
com Deus, presidindo a toda a nossa existência.
Como entender, porém, a espiritualidade, nos dias de
hoje, marcados pela relativização da religião e pela ausência de fé
pessoal?
Um dos autores cristãos mais cotados na tradição católica para
falar de espiritualidade é, sem dúvida, João da Cruz (1542-1591). É
interessante observar que esse autor, há mais de quatro séculos, operou
uma análise fria e objetiva do clima em que deve viver o cristão para
ser fiel ao ensinamento de Jesus. Quando nos dedicamos a lê-lo à luz da
problemática espiritual do nosso tempo, observamos uma originalidade que
muitas vezes escapa aos seus intérpretes: a necessidade de construir-se
uma espiritualidade baseada na fé, por certo, mas superando a
generalidade da religião. Essa uma das observações mais importantes de
um recente comentador.
[1]
A religião tem de ser purificada pela fé, de modo que
chegue a não mais contar em si mesma, mas dê lugar ao que chama de uma
fé desnuda. Somente essa fé percebe Deus em sua liberdade pessoal, em
seu ser como outro, não como objeto, em sua promessa inexprimível, em
seu amor maior. Sem a superação da religião, a espiritualidade torna-se
um ídolo, uma simples projeção dos desejos e das aspirações humanas.
Javier Garrido observa que é aí, precisamente, que se
verifica um encontro profundamente significativo da tradição bíblica
com as exigências da vida moderna. No mundo secularizado, a religião
torna-se um engodo. O ópio do povo. Perde sentido se não cede a primazia
à fé. Esta somente, despida de toda idolatria do religioso, até mesmo,
num certo sentido, das estruturas temporais das religiões, é capaz de
animar a vida humana, até nas suas expressões mais profundas de busca de
sentido que se qualificavam como religiosas.
Escreve Garrido:
Pode parecer uma extrapolação relacionar esta
sabedoria da fé com a cultura secular, mas não será tal se formos
capazes de uma releitura. É o que tenta precisamente fazer em sua obra.
Com efeito, para alguns a secularidade define-se pela negação da
transcendência. Para nós, no entanto, é um fenômeno cultural, cujo
sentido último é a emancipação do ser humano da imagem sagrada do mundo.
Reformulamos, em seguida, algumas das observações conclusivas de Garrido.
A partir dessa perspectiva, a secularidade tem
conexões profundas com a maturidade da fé. Reivindica a autonomia das
causas segundas e suspeita de toda interpretação religiosa de fatos e
fenômenos puramente históricos. Requer a superação dos componentes
psicológicos inconscientes das experiências extraordinárias.
Reivindica, assim, a emancipação do ser humano de
toda ordem preestabelecida (sistemas mediadores do divino como sistemas
de segurança). A nudez da fé liberta o ser humano da lei e dos apoios
que condicionam sua liberdade interior.
A secularidade critica toda a pretensão de objetivar
Deus como parte do mundo. A fé, como conhecimento próprio de Deus,
implica a dessacralização do mundo, até da experiência religiosa vivida a
partir do mundo, pois é luz de Deus em Deus, na nudez de imagens e
conceitos.
A secularidade, além disso, obriga a espiritualidade
cristã a uma consciência nova de sua identidade, expressão verdadeira e
profunda do que há de válido no cerne do desejo religioso do ser humano.
De fato, envolvidos na secularidade da civilização contemporânea, vivem
muitos crentes que tiveram de pôr em crise suas fantasias religiosas
infantis mediante a crítica radical do pensamento religioso, para
realizar-se, espiritualmente, como seres humanos.
Na tradição bíblico-cristã, a fé não se justifica
pela sua relevância, nem pela sua eficácia no mundo, mas pelo dom
gratuito que Deus fez de si mesmo aos seres humanos. Esta é sua ligação
primária com a secularidade. Deus não é necessário ao ser humano porque é
mais do que necessário, como princípio da autodoação de amor. Por isso
somente pode ser conhecido em si mesmo na fé, isto é, na luz em que não
aparece como causa, mas como dom de sentido e de Amor Absoluto.
Antropologicamente, isso significa que o ser humano vive Deus na
experiência transcendental, menos como Ente Supremo entre os demais, mas
como fonte pessoal de uma experiência transexperimental, como Alguém
além de tudo o que se pode alcançar e imaginar.
A fé, entretanto, extravasa, infinitamente, os
pressupostos críticos da secularidade. Esta tem muito de reacional,
facilmente confunde a dessacralização com a pretensão de dominar
arbitrariamente a natureza, ou auto-afirma-se com um hipercriticismo
adolescente que esconde a saudade de suas raízes religiosas perdidas, ou
priva o mundo da densidade do real, nunca redutível a objeto
científico. A enfermidade mortal da secularidade erigida em cosmovisão
integral é a angústia de uma liberdade voltada sobre si mesma, que,
percebendo Deus como rival, nega sua própria fonte.
A espiritualidade baseada na fé constitui, assim, o
caminho que responde, de maneira única e inédita, a todas as aspirações
religiosas da humanidade: é o segredo e o critério da verdadeira
religião.
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