O deserto é também o lugar da “prova”, da “tentação”
01º Domingo do Tempo da Quaresma - Ano B
No primeiro Domingo do Tempo da Quaresma, a liturgia garante-nos que Deus está interessado em destruir o velho mundo do egoísmo e do pecado e em oferecer aos homens um mundo novo de vida plena e de felicidade sem fim.
A primeira leitura é um extrato da história do dilúvio. Diz-nos que Jahwéh, depois de eliminar o pecado que escraviza o homem e que corrompe o mundo, depõe o seu “arco de guerra”, vem ao encontro do homem, faz com ele uma Aliança incondicional de paz. A ação de Deus destina-se a fazer nascer uma nova humanidade, que percorra os caminhos do amor, da justiça, da vida verdadeira.
No Evangelho, Jesus mostra-nos como a renúncia a caminhos de egoísmo e de pecado e a aceitação dos projetos de Deus está na origem do nascimento desse mundo novo que Deus quer oferecer a todos os homens (o “Reino de Deus”). Aos seus discípulos Jesus pede – para que possam fazer parte da comunidade do “Reino” – a conversão e a adesão à Boa Nova que Ele próprio veio propor.
Na segunda leitura, o autor da primeira Carta de Pedro recorda que, pelo Batismo, os cristãos aderiram a Cristo e à salvação que Ele veio oferecer. Comprometeram-se, portanto, a seguir Jesus no caminho do amor, do serviço, do dom da vida; e, envolvidos nesse dinamismo de vida e de salvação que brota de Jesus, tornaram-se o princípio de uma nova humanidade.
Os primeiros onze capítulos do Livro do Génesis apresentam um conjunto de tradições sobre as origens do mundo e dos homens. Construídos com dados heterogéneos, estes capítulos descrevem uma “pré-história” que decorre num mundo ideal antes que as etnias, as nações, a política ou as classes sociais separassem os homens. Os episódios que compõem este bloco não são informações de factos históricos concretos, acontecidos na aurora da humanidade. São lendas e mitos, muitas vezes com extraordinárias semelhanças literárias com as lendas e mitos de outros povos do Crescente Fértil (nomeadamente da Mesopotâmia). Naturalmente, os catequistas de Israel tomaram esses mitos, adaptaram-nos, modificaram-nos e puseram-nos ao serviço da transmissão da sua própria fé. Através desses mitos e lendas, os teólogos de Israel expuseram as suas convicções e as suas descobertas sobre Deus, sobre o homem e sobre o mundo.
O texto que hoje nos é proposto faz parte de uma secção que abrange Gn 6,1-9,17. É a história de um cataclismo de águas, que teria eliminado toda a humanidade, excepto Noé e a sua família. A história do dilúvio, apresentada nesta secção, deverá ser considerada uma reportagem de acontecimentos concretos?
Para alguns, o dilúvio bíblico poderia estar relacionado com o fim da era glaciar, quando a fusão dos gelos provocou notáveis avalanchas de água que invadiram as terras habitadas e deixaram profundos sinais na memória colectiva dos povos. Mas o mais provável é que o dilúvio descrito nos textos do Génesis (e que é quase copiado de certos textos mesopotâmicos que apresentam o mesmo tema) se refira a uma das inúmeras inundações do Tigre e do Eufrates… A arqueologia dá, aliás, conta de várias inundações especialmente catastróficas nessa parte do mundo entre 4000 e 2800 a.C.. É provável que o texto bíblico evoque essa realidade. Não se tratou, em qualquer caso, de um dilúvio universal; mas, com o tempo, a fantasia popular teria feito dessas inundações um “castigo universal” que atingiu o conjunto da humanidade. O autor bíblico, conhecedor dessas lendas antigas, vai usá-las como pano de fundo para fazer catequese e transmitir uma mensagem religiosa.
Os catequistas jahwistas e sacerdotais quiseram dizer ao seu Povo que Jahwéh não fica de braços cruzados quando os homens se lançam por caminhos de corrupção e de pecado… Com esse propósito, lançaram mão da velha lenda mesopotâmica do dilúvio, que falava de uma catástrofe universal enviada pelos deuses para punir os pecados dos homens… Mas, porque Deus não castiga às cegas bons e maus, justos e injustos, os autores vão propor a história do justo Noé e da sua família, salvos por Deus da catástrofe.
O nosso texto situa-nos na fase imediatamente posterior ao dilúvio, quando já tinha deixado de chover e quando Noé e a sua família já tinham desembarcado em terra seca. Os sobreviventes construíram um altar e ofereceram holocaustos sobre o altar; por sua vez, o Senhor Deus comprometeu-Se a não mais “castigar os seres vivos” de forma tão radical (cf. Gn 8,13-22), abençoou Noé e a sua família (cf. Gn 9,1-7) e fez uma Aliança com eles.
O nosso texto propõe-nos os termos de uma Aliança, oferecida por Jahwéh à nova humanidade (representada por Noé e sua família, presente e futura) e a todos os seres criados (representados pelos animais que saíram da Arca). Nela, Deus compromete-Se a depor o seu “arco de guerra” e a garantir a perenidade da ordem cósmica.
A Aliança com Noé apresenta-se, no entanto, como uma Aliança completamente diferente da Aliança feita com Abraão, ou da Aliança feita com Israel no Sinai, ou de qualquer outra Aliança que Jahwéh fez com os homens. Nas outras Alianças, um indivíduo ou um Povo eram chamados a uma relação de comunhão com Deus e aceitavam ou não esse desafio; se o indivíduo ou o Povo em causa não aceitassem, não haveria relação e, portanto, não haveria Aliança… Ao contrário, a Aliança de Jahwéh com Noé não implica nenhuma adesão ou reconhecimento da parte do homem, nem implica qualquer promessa, por parte do homem, no sentido de não voltar a percorrer caminhos de corrupção e de pecado. A Aliança que Jahwéh faz com Noé aparece, assim, como um puro dom de Deus, um fruto do seu amor e da sua misericórdia. É uma Aliança incondicional e sem contrapartidas, que resulta exclusivamente da bondade e da generosidade de Deus.
O sinal desta Aliança será o arco-íris. Em hebraico, a mesma palavra (“qeshet”) designa o “arco-íris” e o “arco de guerra”… Jogando com esta duplicidade, o teólogo sacerdotal, autor deste texto, sugere que Jahwéh pendurou na parede do horizonte o seu “arco de guerra”, a fim de demonstrar ao homem as suas intenções pacíficas. O “arco-íris”, sinal belo e misterioso que toca o céu e a terra, é o “arco” de Jahwéh, através do qual a bondade de Deus abraça o mundo e os homens. O “arco-íris é assim, para o teólogo sacerdotal, um sinal que sugere a vontade que Deus tem de oferecer a paz a toda a criação.
ATUALIZAÇÃO
• Evidentemente, não foi Deus que enviou o dilúvio para castigar os homens. Os catequistas de Israel apenas pegaram na velha lenda mesopotâmica para ensinar que o pecado é algo incompatível com Deus e com os projectos de Deus para o homem e para o mundo; por isso, quando o ódio, a violência, o egoísmo, o orgulho, a prepotência enchem o mundo e trazem infelicidade aos homens, Deus tem de intervir para corrigir o rumo da humanidade. Esta catequese recorda-nos, no início da nossa caminhada quaresmal, que o pecado não é uma realidade que possa coexistir com essa vida nova que Deus nos quer oferecer e que é a nossa vocação fundamental. O pecado destrói a vida e assassina a felicidade do homem; por isso, tem de ser eliminado da nossa existência.
• O sentido geral do texto que nos é proposto aponta, contudo, no sentido da esperança. A Aliança que Deus faz com Noé e com toda a humanidade é uma Aliança totalmente gratuita e incondicional, que não depende do arrependimento do homem ou das contrapartidas que o homem possa oferecer a Deus… Nos termos desta Aliança revela-se um Deus que Se recusa a fazer guerra ao homem, que abençoa e abraça o homem, que ama o homem mesmo quando ele continua a trilhar caminhos de pecado e de infidelidade. Nesta Quaresma, somos convidados a fazer esta experiência de um Deus que nos ama apesar das nossas infidelidades; e somos convidados, também, a deixar que o amor de Deus nos transforme e nos faça renascer para a vida nova.
• A lógica do amor de Deus – amor incondicional, total, universal, que se derrama até sobre os que o não merecem – convida-nos a repensar a nossa forma de abordar a vida e de tratar os nossos irmãos. Podemos sentir-nos filhos deste Deus quando utilizamos uma lógica de vingança, de intolerância, de incompreensão perante as fragilidades e limitações dos irmãos? Podemos sentir-nos filhos deste Deus quando respondemos com uma violência maior àqueles que consideramos maus e violentos? Talvez este tempo de Quaresma que nestes dias iniciamos seja um tempo propício para repensarmos as nossas atitudes e para nos convertermos à lógica do amor incondicional, à lógica de Deus.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 24 (25)
Refrão: Todos os vossos caminhos, Senhor, são amor e verdade
para os que são fiéis à vossa aliança.
Mostrai-me, Senhor, os vossos caminhos,
ensinai-me as vossas veredas.
Guiai-me na vossa verdade e ensinai-me,
porque Vós sois Deus, meu Salvador.
Lembrai-Vos, Senhor, das vossas misericórdias
e das vossas graças que são eternas.
Lembrai-Vos de mim segundo a vossa clemência,
por causa da vossa bondade, Senhor.
O Senhor é bom e reto,
ensina o caminho aos pecadores.
Orienta os humildes na justiça
e dá-lhes a conhecer a sua aliança.
LEITURA II – 1 Pe 3,18-22
A Primeira Carta de Pedro é uma carta dirigida aos cristãos de cinco províncias romanas da Ásia Menor (a carta cita explicitamente a Bitínia, o Ponto, a Galácia, a Ásia e a Capadócia – cf. 1 Pe 1,1). O seu autor apresenta-se com o nome do apóstolo Pedro; no entanto, a análise literária e teológica não confirma que Pedro seja o autor deste texto: em termos literários, a qualidade literária da carta não corresponde à maneira de escrever de um pescador do lago de Tiberíades, pouco instruído; a teologia apresentada demonstra uma reflexão e uma catequese bem posteriores à época de Pedro; e o “ambiente” descrito na carta corresponde, claramente, à situação da comunidade cristã no final do séc. I. Se Pedro morreu em Roma durante a perseguição de Nero (por volta do ano 67), não pode ser o autor deste escrito. O autor da carta será, portanto, um cristão anónimo – provavelmente um responsável de alguma comunidade cristã – culto e que conhece profundamente a situação das comunidades cristãs da Ásia Menor. Ele escreve em finais do séc. I (nunca antes dos anos 80), provavelmente a partir de uma comunidade cristã não identificada da Ásia Menor.
Em concreto, os destinatários desta carta são as comunidades cristãs que vivem em zonas rurais da Ásia Menor. A maioria destes cristãos são pastores ou camponeses que cultivam as propriedades das classes dominantes. Também há, nestas comunidades, pequenos proprietários que vivem em aldeias, à margem das grandes cidades. De qualquer forma, trata-se de gente que vive no meio rural, economicamente débil, vulnerável a um ambiente que começa a manifestar alguma hostilidade para com o cristianismo.
O autor da carta conhece as provações que estes cristãos sofrem todos os dias. Exorta-os, no entanto, a manterem-se fiéis à sua fé, apesar das dificuldades. Convida-os a olharem para Cristo, que passou pela experiência da paixão e da cruz, antes de chegar à ressurreição; e exorta-os a manterem a esperança, o amor, a solidariedade, vivendo com alegria, coerência e fidelidade a sua opção cristã.
O texto que nos é proposto é a parte final de uma perícopa (cf. 1 Pe 3,13-4,11) na qual o autor da carta explica qual deve ser a atitude dos crentes, confrontados com as provocações, as injustiças e a hostilidade do mundo. Depois de pedir aos crentes que mesmo no meio do sofrimento não se cansem de fazer o bem (cf. 1 Pe 3,13-17), o autor da carta apresenta a razão fundamental pela qual os crentes devem agir desta forma tão “ilógica”: esse foi o exemplo que Cristo deixou.
Na verdade, Cristo veio a este mundo, partilhou as nossas dores e limitações, a fim de realizar o projecto de salvação que o Pai tinha para os homens. Ele que era justo e bom aceitou morrer para conduzir todos os homens – mesmo os maus e os injustos – ao encontro da vida verdadeira, da felicidade plena. A sua morte não foi um fracasso, pois a sua existência não terminou no sepulcro; vivificado pelo Espírito, Ele alcançou de novo a vida e a glória (vers. 18) e “foi pregar aos espíritos que estavam na prisão da morte e tinham sido outrora rebeldes” (vers. 19-20. A afirmação não é totalmente clara. Provavelmente, refere-se à velha verdade proclamada no credo cristão de que Jesus ressuscitado teria descido “à mansão dos mortos” para libertar todos aqueles que eram prisioneiros da morte). A morte e a ressurreição de Cristo tiveram uma dimensão salvadora que atingiu toda a humanidade, mesmo essa humanidade pecadora que conheceu o dilúvio, no tempo de Noé.
No dilúvio, o pecado foi afogado e da água ressurgiu uma nova humanidade. A água do dilúvio pode, assim, ser para os crentes uma figura do Baptismo. Pelo Baptismo, os crentes aderiram a Cristo e à salvação que Ele veio oferecer, comprometeram-se a segui-l’O nessa vida de amor, de dom, de entrega, foram envolvidos neste dinamismo de vida e de salvação que brota de Jesus, tornaram-se o princípio de uma nova humanidade. Na água do Baptismo, os crentes nasceram para a vida do bem, da justiça e da verdade (vers. 21).
A conclusão que o autor da carta sugere aos crentes parece ser a seguinte: se Cristo propiciou, mesmo aos injustos, a salvação, também os cristãos devem dar a vida e fazer o bem, mesmo quando são perseguidos e sofrem. Comprometidos com Cristo pelo Baptismo, eles nasceram para uma vida nova; e devem testemunhar essa vida nova diante de todos os homens, mesmo diante dos maus e dos perseguidores.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, na reflexão, os seguintes pontos:
• Mais uma vez, põe-se-nos o problema do sentido de uma vida feita dom e entrega aos outros, até à morte (sobretudo se esses “outros” são os nossos perseguidores e detractores). É possível “dar o braço a torcer” e triunfar? O amor e o dom da vida não serão esquemas de fragilidade, que não conduzem senão ao fracasso? Esta história de o amor ser o caminho para a felicidade e para a vida plena não será uma desculpa dos fracos? Não – responde a Palavra de Deus que nos é proposta. Reparemos no exemplo de Cristo: Ele deu a vida pelos pecadores e pelos injustos e encontrou, no final do caminho, a ressurreição, a vida plena.
• Diante das dificuldades, das propostas contrárias aos valores cristãos, é em Cristo – o Senhor da vida, do mundo e da história – que colocamos a nossa confiança e a nossa esperança? Ou é noutros esquemas mais materiais, mais imediatos, mais lógicos, do ponto de vista humano?
• Diante dos ataques – às vezes incoerentes e irracionais – daqueles que não concordam com os valores de Jesus, como nos comportamos? Com a mesma agressividade com que nos tratam? Com a mesma intolerância dos nossos adversários? Tratando-os com a lógica do “olho por olho, dente por dente”? Como é que Jesus tratou aqueles que O condenaram e mataram?
ACLAMAÇÃO ANTES DO EVANGELHO – Mt 4,4b
(escolher um dos 7 refrães)
1. Louvor e glória a Vós, Jesus Cristo, Senhor.
2. Glória a Vós, Jesus Cristo, Sabedoria do Pai.
3. Glória a Vós, Jesus Cristo, Palavra do Pai.
4. Glória a Vós, Senhor, Filho do Deus vivo.
5. Louvor a Vós, Jesus Cristo, Rei da eterna glória.
6. Grandes e admiráveis são as vossas obras, Senhor.
7. A salvação, a glória e o poder a Jesus Cristo, Nosso Senhor.
Nem só de pão vive o homem,
mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.
EVANGELHO – Mc 1,12-15
O Evangelho de Marcos começa com uma introdução (cf. Mc 1,2-13) destinada a apresentar Jesus. Em três quadros iniciais, Marcos diz-nos que Jesus é Aquele que vem “baptizar no Espírito” (cf. Mc 1,2-8), o Filho amado, sobre quem o Pai derrama o Espírito e a quem envia em missão para o meio dos homens (cf. Mc 1,9-11), o Messias que enfrenta e vence o mal que oprime os homens, a fim de fazer nascer um mundo novo e uma nova humanidade (cf. Mc 1,12-13). A primeira parte do texto que nos é proposto apresenta-nos o terceiro destes quadros. Situa-nos num “deserto” não identificado, não longe do lugar onde Jesus foi batizado por João Batista.
Depois deste tríptico introdutório, entramos na primeira parte do Evangelho (cf. Mc 1,14-8,30). Aí, Marcos vai descrever a acção de Jesus, o Messias que o Pai enviou ao mundo para anunciar aos homens uma realidade nova chamada “Reino de Deus”. Na segunda parte do texto que nos é hoje proposto, temos um “sumário-anúncio” da pregação inaugural de Jesus sobre o “Reino” (cf. Mc 1,14-15). O texto situa-nos na Galileia, região setentrional da Palestina, zona em permanente contacto com o mundo pagão e, portanto, considerada à margem da história da salvação.
Temos então, como primeira cena, o episódio da tentação de Jesus no deserto (vers. 12-13). Mais do que uma descrição fotográfica de acontecimentos concretos, trata-se de uma catequese. Está carregado de símbolos, que é preciso descodificar para entender a mensagem proposta.
O deserto é, na teologia de Israel, o lugar privilegiado do encontro com Deus; foi no deserto que o Povo experimentou o amor e a solicitude de Jahwéh e foi no deserto que Jahwéh propôs a Israel uma Aliança. Contudo, o deserto é também o lugar da “prova”, da “tentação”; foi no deserto que Israel foi confrontado com opções e foi no deserto, também, que Israel sentiu, várias vezes, a tentação de escolher caminhos contrários aos propostos por Deus… O “deserto” para onde Jesus “vai” é, portanto, o “lugar” do encontro com Deus e do discernimento dos seus projectos; e é o “lugar” da prova, onde se é confrontado com a tentação de abandonar Deus e de seguir outros caminhos.
Nesse “deserto”, Jesus ficou “quarenta dias” (vers. 13a). O número “quarenta” é bastante frequente no Antigo Testamento. Muitas vezes refere-se ao tempo da caminhada do Povo de Israel pelo deserto, desde que deixou a terra da escravidão, até entrar na terra da liberdade; mas também é usado para significar “toda a vida” (a esperança média de vida, na época, rondava os quarenta anos). Deve ser entendido com o sentido de “toda a vida” ou, então, “todo o tempo que durou a caminhada”.
Durante esse tempo, Jesus foi “tentado por Satanás” (vers. 13b). A palavra “satanás” designava, originalmente, o adversário que, no contexto do julgamento, apresentava a acusação (cf. Sal 109,6). Mais tarde, a palavra vai passar a designar uma personagem que integrava a corte celeste e que acusava o homem diante de Deus (cf. Job 1,6-12). Na época de Jesus, “satanás” já não era considerado uma personagem da corte celeste, mas um espírito mau, inimigo do homem, que procurava destruir o homem e frustrar os planos de Deus. É neste sentido que ele vai aparecer aqui… “Satanás” representa um personagem que vai tentar levar Jesus a esquecer os planos de Deus e a fazer escolhas pessoais, que estejam em contradição com os projectos do Pai.
Ao referir as tentações de “Satanás”, é provável que Marcos estivesse a pensar, em concreto, em tentações de poder e de messianismo político. O deserto era, tradicionalmente, o lugar de refúgio dos agitadores e dos rebeldes com pretensões messiânicas. A tentação pretende, portanto, induzir Jesus a enveredar por um caminho de poder, de autoridade, de violência, de messianismo político, frustrando os projectos de Deus que passavam por um messianismo marcado pelo amor incondicional, pelo serviço simples e humilde, pelo dom da vida.
A referência às “feras” que rodeavam Jesus e aos “anjos” que O serviam (vers. 13c) deve aludir a certas interpretações de Gn 2-3, muito em voga nos ambientes rabínicos, no século I. Alguns “mestres” de Israel ensinavam que Adão, o primeiro homem, vivia no paraíso em paz completa com todos os animais e que os anjos estavam à sua volta para o servir; mas, quando Adão escolheu o caminho da auto-suficiência e se revoltou contra Deus, rompeu-se a harmonia original, os animais tornaram-se inimigos do homem e até os anjos deixaram de o servir. A catequese dos “rabis” adiantava ainda que, quando o Messias chegasse, nasceria um mundo harmonioso, sem violência e sem conflito, onde até os animais ferozes viveriam em paz com o homem. Seria o regresso à harmonia original, ao plano original de Deus para os homens e para o mundo. É isso que Marcos está aqui a sugerir: com Jesus, chegou esse tempo messiânico de paz sem fim, chegou o tempo de o mundo regressar a essa harmonia que era o plano inicial de Deus. Haverá, também, uma intenção de estabelecer um paralelo entre Adão e Jesus: Adão cedeu à tentação de escolher caminhos contrários aos de Deus e criou inimizade, violência, conflito, escravidão, sofrimento; Jesus escolheu viver na mais completa fidelidade aos projectos de Deus e fez nascer um mundo novo, de harmonia, de paz, de amor, de felicidade sem fim.
Em síntese: temos aqui uma catequese sobre as opções de Jesus. Marcos sugere que, ao longe de toda a sua existência (“quarenta dias”), Jesus confrontou-Se com dois caminhos, com duas propostas de vida: ou viver na fidelidade aos projectos do Pai, fazendo da sua vida uma entrega de amor, ou frustrar os planos de Deus, enveredando por um caminho messiânico de poder, de violência, de autoridade, de despotismo, ao jeito dos grandes deste mundo. Jesus escolheu viver na obediência às propostas do Pai; da sua opção, vai surgir um mundo de paz e de harmonia, um mundo novo que reproduz o plano original de Deus.
Na segunda parte do Evangelho deste domingo (vers. 14-15), temos uma outra cena. Marcos transporta-nos para a Galileia, onde Jesus aparece a concretizar esse plano salvador do Pai que, na cena anterior, Ele escolheu cumprir.
Jesus começa, precisamente, por anunciar que “chegou o tempo”. Que “tempo” é esse? É o “tempo” do “Reino de Deus”. A expressão – tão frequente no Evangelho segundo Marcos – leva-nos a um dos grandes sonhos do Povo de Deus…
A catequese de Israel (como aliás acontecia com a reflexão teológica de outros povos do Crescente Fértil) referia-se, com frequência, a Jahwéh como a um rei que, sentado no seu trono, governa o seu Povo. Mesmo quando Israel passou a ter reis terrenos, esses eram considerados, apenas, como homens escolhidos e ungidos por Jahwéh para governar o Povo, em lugar do verdadeiro rei que era Deus. O exemplo mais típico de um rei/servo de Jahwéh, que governa Israel em nome de Jahwéh, submetendo-se em tudo à vontade de Deus, foi David. A saudade deste rei ideal e do tempo ideal de paz e de felicidade em que Jahwéh reinava (através de David) sobre o seu povo vai marcar toda a história futura de Israel. Nas épocas de crise e de frustração nacional, quando reis medíocres conduziam a nação por caminhos de morte e de desgraça, o Povo sonhava com o regresso aos tempos gloriosos de David. Os profetas, por sua vez, vão alimentar a esperança do Povo anunciando a chegada de um tempo, no futuro, em que Jahwéh vai voltar a reinar sobre Israel e vai restabelecer a situação ideal da época de David. Essa missão, na perspectiva profética, será confiada a um “ungido” que Deus vai enviar ao seu Povo. Esse “ungido” (em hebraico “messias”, em grego “cristo”) estabelecerá, então, um tempo de paz, de justiça, de abundância, de felicidade sem fim – isto é, o tempo do “reinado de Deus”.
O “Reino de Deus” é, portanto, uma noção que resume a esperança de Israel num mundo novo, de paz e de abundância, preparado por Deus para o seu Povo. Esta esperança está bem viva no coração de Israel na época em que Jesus aparece a dizer: “cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus”. Certas afirmações de Jesus, transmitidas pelos Evangelhos sinópticos, mostram que Ele tinha consciência de estar pessoalmente ligado ao Reino e de que a chegada do Reino dependia da sua acção.
Jesus começa, precisamente, a construção desse “Reino” pedindo aos seus conterrâneos a conversão (“metanoia”) e o acolhimento da Boa Nova (“evangelho”).
“Converter-se” significa transformar a mentalidade e os comportamentos, assumir uma nova atitude de base, reformular os valores que orientam a própria vida. É reequacionar a vida, de modo a que Deus passe a estar no centro da existência do homem e ocupe sempre o primeiro lugar. Na perspectiva de Jesus, não é possível que esse mundo novo de amor e de paz se torne uma realidade, sem que o homem renuncie ao egoísmo, ao orgulho, à auto-suficiência e passe a escutar, de novo, Deus e as suas propostas.
“Acreditar” não é, apenas, aceitar um conjunto de verdades intelectuais; mas é, sobretudo, aderir à pessoa de Jesus, escutar a sua proposta, acolhê-la no coração, fazer dela o guia da própria vida. “Acreditar” é escutar essa “Boa Notícia” de salvação e de libertação (“evangelho”) que Jesus propõe e fazer dela o centro à volta do qual se constrói toda a existência.
“Conversão” e “adesão ao projeto de Jesus” são duas faces de uma mesma moeda: a construção de um homem novo, com uma nova mentalidade, com novos valores, com uma postura vital inteiramente nova. Então, sim teremos um mundo novo – o “Reino de Deus”.
ATUALIZAÇÃO
• O quadro da “tentação no deserto” diz-nos que Jesus, ao longo do caminho que percorreu no meio dos homens, foi confrontado com opções. Ele teve de escolher entre viver na fidelidade aos projetos do Pai e fazer da sua vida um dom de amor, ou frustrar os planos de Deus e enveredar por um caminho de egoísmo, de poder, de auto-suficiência. Jesus escolheu viver – de forma total, absoluta, até ao dom da vida – na obediência às propostas do Pai. Os discípulos de Jesus são confrontados a todos os instantes com as mesmas opções. Seguir Jesus é perceber os projectos de Deus e cumpri-los fielmente, fazendo da própria vida uma entrega de amor e um serviço aos irmãos. Estou disposto a percorrer este caminho?
• Ao dispor-se a cumprir integralmente o projecto de salvação que o Pai tinha para os homens, Jesus começou a construir um mundo novo, de harmonia, de justiça, de reconciliação, de amor e de paz. A esse mundo novo, Jesus chamava “Reino de Deus”. Nós aderimos a esse projecto e comprometemo-nos com ele, no dia em que escolhemos ser seguidores de Jesus. O nosso empenho na construção do “Reino de Deus” tem sido coerente e consequente? Mesmo contra a corrente, temos procurado ser profetas do amor, testemunhas da justiça, servidores da reconciliação, construtores da paz?
• Para que o “Reino de Deus” se torne uma realidade, o que é necessário fazer? Na perspectiva de Jesus, o “Reino de Deus” exige, antes de mais, a “conversão”. “Converter-se” é, antes de mais, renunciar a caminhos de egoísmo e de auto-suficiência e recentrar a própria vida em Deus, de forma a que Deus e os seus projectos sejam sempre a nossa prioridade máxima. Implica, naturalmente, modificar a nossa mentalidade, os nossos valores, as nossas atitudes, a nossa forma de encarar Deus, o mundo e os outros. Exige que sejamos capazes de renunciar ao egoísmo, ao orgulho, à auto-suficiência, ao comodismo e que voltemos a escutar Deus e as suas propostas. O que é que temos de “converter” – quer em termos pessoais, quer em termos institucionais – para que se manifeste, realmente, esse Reino de Deus tão esperado?
• De acordo com a Palavra de Deus que nos é proposta, o “Reino de Deus” exige, também, o “acreditar” no Evangelho. “Acreditar” não é, na linguagem neo-testamentária, a aceitação de certas afirmações teóricas ou a concordância com um conjunto de definições a propósito de Deus, de Jesus ou da Igreja; mas é, sobretudo, uma adesão total à pessoa de Jesus e ao seu projecto de vida. Com a sua pessoa, com as suas palavras, com os seus gestos e atitudes, Jesus propôs aos homens – a todos os homens – uma vida de amor total, de doação incondicional, de serviço simples e humilde, de perdão sem limites. O “discípulo” é alguém que está disposto a escutar o chamamento de Jesus, a acolher esse chamamento no coração e a seguir Jesus no caminho do amor e do dom da vida. Estou disposto acolher o chamamento de Jesus e a percorrer o caminho do “discípulo”?
• O chamamento a integrar a comunidade do “Reino” não é algo reservado a um grupo especial de pessoas, com uma missão especial no mundo e na Igreja; mas é algo que Deus dirige a cada homem e a cada mulher, sem excepção. Todos os baptizados são chamados a ser discípulos de Jesus, a “converter-se”, a “acreditar no Evangelho”, a seguir Jesus nesse caminho de amor e de dom da vida. Esse chamamento é radical e incondicional: exige que o “Reino” se torne o valor fundamental, a prioridade, o principal objectivo do discípulo.
• O “Reino” é uma realidade que Jesus começou e que já está, decisivamente, implantada na nossa história. Não tem fronteiras materiais e definidas; mas está a acontecer e a concretizar-se através dos gestos de bondade, de serviço, de doação, de amor gratuito que acontecem à nossa volta (muitas vezes, até fora das fronteiras institucionais da “Igreja”) e que são um sinal visível do amor de Deus nas nossas vidas. Não é uma realidade que construímos de uma vez, mas é uma realidade sempre em construção, sempre a fazer-se, até à sua realização final, no fim dos tempos, quando o egoísmo e o pecado desaparecerem para sempre. Em cada dia que passa, temos de renovar o compromisso com o “Reino” e empenharmo-nos na sua edificação.
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