7º DOMINGO DO TEMPO COMUM- ANO B
Nos colocar numa atitude de sincera abertura ao dom de Deus.
A liturgia do 7º Domingo do Tempo Comum convida-nos, uma vez mais, a tomar consciência de que Deus tem um projeto de salvação para os homens e para o mundo. Esse projeto (que em Jesus se torna vivo, palpável, realmente libertador) é um dom de Deus que o homem deve acolher com fé.
A primeira leitura fala-nos de um Deus que, em todos os momentos da história, está ao lado do seu Povo, a fim de o conduzir ao encontro da liberdade e da vida verdadeira. Sugere, no entanto, que o Povo necessita de percorrer um caminho de conversão e de renovação, antes de poder acolher a salvação/libertação que Deus tem para oferecer.
O Evangelho retoma a mesma temática. Diz que, através de Jesus, Deus derrama sobre a humanidade sofredora e prisioneira do pecado a sua bondade, a sua misericórdia, o seu amor. Ao homem resta acolher o dom de Deus, ir ao encontro de Jesus e aderir a essa proposta libertadora que Jesus veio apresentar.
A segunda leitura recomenda àqueles que aderiram à proposta de Jesus que vivam com coerência, com verdade, com sinceridade o seu compromisso, sem recurso a subterfúgios ou a lógica de oportunidade.
LEITURA I – Is 43,18-19.21-22.24b-25
O Deutero-Isaías (autor deste texto) é um profeta anônimo, da escola de Isaías, que provavelmente cumpriu a sua missão profética entre os exilados na Babilônia.
Estamos na fase final do Exílio, entre 550 e 539 a.C.. Os judeus exilados estão frustrados e desorientados, pois a libertação tarda e Deus parece ter-se esquecido do seu Povo. Sonham com um novo Êxodo, no qual Jahwéh se manifeste, outra vez, como o Deus libertador. O “Livro da Consolação” do Deutero-Isaías (cf. Is 40-55) apresenta a mensagem de consolação e de esperança que o profeta dirigiu a esse Povo desanimado.
Na primeira parte do “Livro da Consolação” (Is 40-48), o profeta anuncia a iminência da libertação e compara a saída da Babilônia e a volta à Terra Prometida com o Êxodo do Egito. É neste contexto que deve ser enquadrada a primeira leitura de hoje.
O texto que nos é proposto como primeira leitura apresenta, de forma incompleta, dois oráculos diversos. O primeiro (cf. Is 43,14-21) é um oráculo de salvação, no qual Jahwéh anuncia a ruína da Babilônia e a iminência de um “novo Êxodo” para o Povo de Deus. No segundo (cf. Is 43,22-28), Deus acusa o Povo de indiferença e de infidelidade, provavelmente para lhe sugerir a necessidade da conversão.
O oráculo de salvação da primeira parte (vers. 18-19. 21) começa por recordar a “mãe de todas as libertações” (a libertação da escravidão do Egito). Mas avisa que evocar essa realidade não pode ser uma fuga nostálgica para o passado, um repousar inerte na saudade, um refúgio contra o medo do presente (se assim for, esse passado vai obscurecer a perspectiva do Povo, impedindo-o de reconhecer os sinais que já se manifestam e que anunciam um futuro de liberdade e de vida nova)… A lembrança do passado é válida quando alimenta a esperança e prepara para um futuro novo. O que é importante é que o israelita crente que olha para o passado descubra, na ação libertadora de Deus em favor do Povo oprimido pelo faraó, um padrão: o Deus que assim agiu é o Deus que não tolera a opressão e que está sempre do lado dos oprimidos; por isso, não deixará de se manifestar em circunstâncias análogas, operando a salvação do Povo escravizado.
De fato – diz o profeta – o Deus libertador em quem acreditamos e em quem esperamos não demorará a atuar. Aproxima-se o dia de um novo êxodo, de uma nova libertação. Esse novo êxodo será, até, algo de grandioso, que eclipsará o antigo êxodo: o Povo libertado percorrerá um caminho fácil no regresso à sua Terra e não conhecerá o desespero da sede e da falta de comida, porque Jahwéh vai fazer brotar rios na paisagem desolada do deserto. A atuação de Deus manifestará, de forma clara, o seu amor e a sua solicitude pelo Povo. Diante da ação de Jahwéh, o Povo tomará consciência de que é o Povo eleito e dará a resposta adequada: louvará o seu Deus pelos dons recebidos.
Na segunda parte (vers. 22. 24b-25), temos um convite de Deus a que Israel reconheça as suas transgressões e iniqüidades. É um dos poucos textos do Deutero-Isaías onde Deus assume uma atitude decididamente crítica para com o seu Povo.
O sentido global do texto não é totalmente claro (aliás, o texto que nos é proposto apresenta-se incompleto, truncado, com versículos tirados aqui e ali, o que aumenta ainda mais a dificuldade de compreensão). Provavelmente, deve ser entendido como resposta às críticas que os exilados faziam a Jahwéh. Porquê o Exílio? Jahwéh não estava a ser injusto? Se Israel tinha cumprido sempre com as suas obrigações cultuais, em que é que Jahwéh Se fundamentava para castigar tão duramente o seu Povo?
Na verdade, Israel cumpria as suas obrigações cúlticas, oferecendo a Jahwéh abundantes sacrifícios de animais (que, aliás, nem tinham qualquer importância para Deus); mas continuava a multiplicar os seus pecados e as suas iniqüidades. Convicto de que com abundantes ofertas cultuais podia “acalmar” e “comprar” Deus, o Povo vivia comodamente instalado na infidelidade, sentindo que não haveria problema porque Jahwéh era “obrigado” a fazer uso da sua misericórdia e a apagar as faltas do Povo. Na verdade, Deus não pode ser manipulado dessa forma. Ele não aceita ser (com o engodo das abundantes ofertas cultuais) um pára-raios atrás do qual o Povo se esconde para não cumprir os seus compromissos.
A verdade é que Israel foi castigado porque assumiu e percorreu um caminho de rebeldia e de infidelidade (vers. 27-28). O Exílio foi o resultado lógico dessa opção.
Ao abordar desta forma a questão, o profeta está claramente a dizer aos exilados que o Exílio não é culpa de Deus, mas do próprio Povo. Provavelmente, estará também a sugerir ao Povo que é preciso reconhecer as suas faltas e iniciar um caminho de conversão e de renovação, antes de poder acolher a salvação/libertação que está para chegar.
ATUALIZAÇÃO
• A leitura mostra-nos, antes de mais, a atitude de Deus em relação aos homens. Fala-nos de um Deus atento, solícito, interveniente, a quem os homens e os seus dramas não são indiferentes e que Se preocupa, a todos os instantes, em indicar ao seu Povo o caminho da vida verdadeira e definitiva… Numa leitura atenta do texto, impressiona, especialmente, o amor e a ternura com que Deus Se dirige a esse Povo desanimado e frustrado e lhe dá os seus conselhos, como se fosse um pai a preparar o filho para as duras batalhas da vida (“não vos lembreis…”; “não presteis atenção…”). É preciso que descubramos, também nós, este Deus cheio de solicitude e de amor que caminha ao nosso lado; é preciso que aprendamos a detectar as suas indicações e os seus sinais – esses sinais quase sempre discretos, através dos quais Ele revela a sua presença ao nosso lado e através dos quais Ele nos indica os caminhos a percorrer.
• A vida cristã é uma caminhada permanente rumo a essa “coisa nova que já começa a aparecer” e que é o mundo novo do Homem Novo. É preciso, no entanto, que os crentes tenham a coragem de deixar o seu pequeno mundo de instalação e de comodismo, para aceitar o desafio de Deus e para ir mais além. O que é que, na minha vida, necessita de ser transformado? O que é que ainda me mantém alienado, prisioneiro e escravo? O que é que me impede de imprimir à minha vida um novo dinamismo, de forma a que o Homem Novo se manifeste em mim?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 40 (41)
LEITURA II – 2 Cor 1,18-22
A Primeira Carta aos Coríntios (que criticava alguns membros da comunidade por atitudes pouco condizentes com os valores cristãos) provocou uma reação extremada na comunidade. Aproveitando a ocasião, alguns adversários de Paulo (pelo contexto, não se percebe exatamente se são esses “judaizantes” que queriam impor aos pagãos convertidos as práticas da Lei, ou se são cristãos que aceitam o laxismo da vida dos coríntios e que criticam a severidade de Paulo) organizaram uma campanha no sentido de o desacreditar. Acusaram-no de anunciar o Evangelho por interesses pessoais e ainda de apresentar uma mensagem que não estava em consonância com a doutrina dos outros apóstolos. Paulo, informado de tudo, dirigiu-se apressadamente para Corinto e teve um violento confronto com os seus detratores. O choque deve ter deixado marcas na comunidade. Depois, Paulo dirigiu-se para Éfeso.
Algum tempo depois, Tito, amigo de Paulo, fino negociador e hábil diplomata, partiu para Corinto, a fim de acalmar os ânimos dos coríntios e tentar a reconciliação. Paulo, entretanto, deixou Éfeso e foi para Tróade. Foi aí que reencontrou Tito, regressado de Corinto. As notícias trazidas por Tito eram animadoras: o diferendo fora ultrapassado e os coríntios estavam, outra vez, em comunhão com Paulo.
Reconfortado, Paulo escreveu uma “carta de reconciliação” na qual fazia uma tranquila apologia do seu apostolado (cf. 2 Cor 1,3-7,16) e desmontava os argumentos dos adversários (cf. 2 Cor 10,1-13,10). Juntou também, no mesmo escrito, algumas instruções acerca de uma coleta em favor dos pobres da Igreja de Jerusalém (cf. 2 Cor 8,1-9,15). Apareceu, assim, a nossa segunda carta de Paulo aos Coríntios. Estamos nos anos 56/57.
O texto que nos é proposto integra a primeira parte da carta (cf. 2 Cor 1,3-7,16). Aí, Paulo procura desfazer alguns mal-entendidos com os coríntios, dá notícias e, sobretudo, explica quais os princípios que sempre nortearam a sua ação apostólica.
Mais concretamente, o nosso texto faz parte de uma perícope (cf. 2 Cor 1,12-2,13) onde Paulo se defende das acusações de volubilidade e de oportunismo. Em 1 Cor 16,5-9, Paulo falara da sua intenção de visitar a comunidade de Corinto e de se demorar por lá. Entretanto, por razões desconhecidas, teve de alterar os seus planos de viagem. Tal bastou para que os seus detratores o acusassem de ser uma pessoa em cuja palavra não se podia confiar. Do ponto de vista pessoal, Paulo não se preocuparia muito com a acusação; mas, dado que ela podia pôr em causa a sinceridade, a validez e a eficácia do seu ministério, Paulo apressou-se a explicar a situação e a reiterar a sua fidelidade aos princípios que sempre nortearam a sua vida.
Invocando o testemunho do próprio Deus, Paulo recusa a acusação de ser um oportunista e de dizer “sim” ou “não” conforme as circunstâncias. Paulo nunca conduzirá a sua vida desse modo. Porquê? A razão é simples: Paulo (e o mesmo acontece com Silvano e Timóteo) é um discípulo fiel de Jesus Cristo; e ser discípulo de Cristo exclui qualquer tipo de oportunismo ou de volubilidade.
O raciocínio de Paulo é simples… Deus é totalmente fiel às promessas que fez ao seu Povo. Todas as suas promessas realizaram-se através de Jesus Cristo, o Filho, que percorreu um caminho linear, marcado pela coerência, pela verdade, pela sinceridade, sem recurso a subterfúgios ou a lógicas de oportunidade. Ora, Paulo aderiu totalmente a Cristo, tornou-se discípulo de Cristo e aceitou percorrer o mesmo caminho de coerência e de fidelidade que Cristo percorreu. Quando Deus chamou Paulo a seguir Jesus Cristo (como aconteceu, aliás, com todos os outros cristãos), ungiu-o, marcou-o com o sinal de Cristo, imprimiu no seu coração o penhor do Espírito. Isso constitui uma espécie de certificado que garante a sinceridade, a coerência e a linearidade da vida de Paulo.
ATUALIZAÇÃO
• É importante que Paulo nos recorde o exemplo de Cristo e a coerência da sua vida. Cristo não moldou a sua vida de acordo com os seus interesses pessoais, os gostos das multidões, as indicações dos líderes ou as exigências da moda da época; nunca se preocupou em resguardar-se, em não escandalizar, em não perder adeptos, mas preocupou-se apenas com oferecer aos homens a verdade. Fiel ao projeto de salvação que o Pai lhe confiou, foi frontal, coerente, sincero, verdadeiro. Ele morreu porque nos seus olhos brilhava a verdade. Paulo recorda-nos, também, que ser cristão é seguir a Cristo e percorrer, com Ele, esse caminho de coerência e de sinceridade.
• Nos nossos dias, no entanto, estes valores não são demasiado apreciados. Certas figuras públicas que ditam a moda e moldam a opinião pública defendem que aquilo que hoje é verdade, amanhã é mentira; e cria-se uma certa cultura de oportunismo, de incoerência e de mentira. Qual o nosso papel de cristãos – de seguidores de Jesus – neste mundo?
• Nós crentes afirmamos repetidamente – nas nossas celebrações, nas nossas orações e cânticos – o nosso “sim” a Deus e ao seguimento de Jesus… A nossa vida de todos, os nossos valores e atitudes, os nossos gestos e palavras são coerentes com esses “sins”?
• Para Paulo, a coerência e a sinceridade são valores absolutamente imprescindíveis para todo aquele que se dedica ao ministério apostólico. Se um animador da comunidade não leva uma vida coerente, sincera, sem mentira, está a desautorizar e a causar danos irreparáveis à proposta que anuncia.
EVANGELHO – Mc 2,1-12
Voltamos a Cafarnaum, a cidade situada na margem ocidental do Lago de Tiberíades. Jesus continua a propor o “Reino” através das suas palavras e, sobretudo, dos seus gestos. Os “milagres” que Ele faz são sinais da presença compassiva e amorosa de Deus no meio dos homens e anunciam o mundo novo do “Reino”.
Entramos, no entanto, numa secção (cf. Mc 2,1-3,6) onde os gestos de Jesus já não provocam apenas assombro e admiração, mas também repulsa e obstinação. A proposta de Jesus começa a questionar seriamente as pessoas e a provocar reações desencontradas. De uma forma geral, o Povo acolhe Jesus e vê na sua proposta uma resposta para a sua sede de vida e de liberdade; mas os fariseus e os doutores da Lei (que a partir daqui aparecerão, cada vez mais em cena), instalados nas suas certezas, seguranças e preconceitos, recusam Jesus e buscam todos os pretextos para O atacar. Começa a desenhar-se o conflito decisivo que vai levar Jesus à cruz.
A história que o Evangelho deste domingo nos apresenta é uma história estranha e, do ponto de vista lógico, cheia de incongruências. Porque é que os acompanhantes do paralítico tiveram que descobrir o teto e não puderam esperar que Jesus saísse de casa? As pessoas que estavam na casa ficaram impávidas a ver o teto ser levantado no meio de uma chuva de terra e ramos secos de árvore e não fizeram nada?
A nossa história não é, naturalmente, uma reportagem jornalística de acontecimentos. Marcos parte, eventualmente, do fato histórico da cura de um paralítico, mas a sua finalidade é, antes de mais, oferecer-nos uma lição de catequese. Os pormenores estranhos não são históricos, mas fazem parte da representação cênica montada por Marcos; são apenas elementos simbólicos que Marcos introduz no relato para tornar mais rica e expressiva a sua lição de catequese sobre Jesus e sobre a missão de Jesus no meio dos homens.
Toda a cena se passa numa “casa”. Que casa é essa? É uma casa onde Jesus está a “pregar a Palavra” e é uma casa onde se juntou (Marcos diz “congregou”) um tão grande número de pessoas, “que já não cabiam sequer em frente da porta” (vers. 2). É também uma casa onde estão sentados/instalados alguns especialistas da Lei (escribas – vers. 6). A “casa” onde Jesus prega, onde se congrega a comunidade judaica e onde há escribas instalados, poderia ser uma figura da sinagoga, entendida como assembléia do Povo de Deus. O facto de se referir que a “casa” em questão estava situada na cidade de Cafarnaum (o centro a partir do qual irradia a atividade de Jesus na Galileia) poderia indicar que Marcos está a falar da comunidade judaica da Galileia, em cujas sinagogas Jesus acabou de passar (cf. Mc 1,39), anunciando a Boa Nova do Reino. Em qualquer caso, a “casa” representa essa comunidade judaica a quem Jesus dirige a pregação do “Reino”.
Depois de definido o cenário, entram em palco os atores. À “casa” chega “um paralítico transportado por quatro homens” (vers. 3). Desde que entram em cena, o paralítico e os que o transportam apresentam-se como uma equipa inseparável, como peças de uma única máquina. O paralítico, personagem anônimo e sem voz, é o protótipo da invalidez, do homem que não pode mover-se por si mesmo e que não tem liberdade de ação. Os que transportam o paralítico, também anônimos e sem fala, têm como único traço característico serem “quatro”. Este dado, à primeira vista supérfluo, é importante: o “quatro” é um número carregado de simbolismo, que representa os quatro pontos cardeais e, em consequência, o mundo e a humanidade inteira. Os cinco (os quatro transportadores, por um lado, e o paralítico, por outro) representam duas facetas de uma mesma personagem – a humanidade inteira. É uma humanidade passiva e marcada por um mal que lhe rouba a vida e que lhe impede a liberdade (paralítico); e é uma humanidade ativa, que não se conforma com o mal que a impede de ser livre e que busca ansiosamente a salvação (os quatro que transportam o paralítico).
Desde logo fica claro que o episódio pretende apresentar Jesus como “o salvador”; mas a presença do “paralítico” e dos “quatro” homens que o transportam sugere que a salvação que Jesus oferece não se destina apenas à comunidade judaica, mas à humanidade inteira.
Essa humanidade que sofre e que quer libertar-se da escravidão em que vive, procura ir ao encontro de Jesus para receber d’Ele a salvação… Mas “a casa” (isto é, a comunidade judaica) cobre Jesus e oculta-O ao resto da humanidade. Será preciso abrir um buraco no teto da casa, forçando o obstáculo que o judaísmo representava (vers. 4). Nos esforços quase patéticos dos homens que transportam o paralítico, no sentido de colocá-lo frente a frente com Jesus, Marcos representa a ânsia com que o mundo espera a libertação que Cristo lhe veio oferecer.
A decisão e a tenacidade com que esta humanidade sofredora supera os obstáculos recebem o nome de “fé” (“ao ver a fé daquela gente” – vers. 5). A fé, no Novo Testamento, é aderir a Jesus, segui-l’O, acolher a proposta do Reino. Em todo o processo, essa humanidade ansiosa pela libertação manifesta uma vontade indomável de se aproximar de Jesus, de acolher a salvação que Ele tinha para oferecer, de entrar na dinâmica do “Reino”. Manifesta, portanto, a sua fé.
Essa vontade real de acolher a vida nova de Jesus indica que a humanidade escravizada está disposta a essa mudança de vida que é condição para o reinado de Deus. Jesus está plenamente consciente disso. Por isso diz: “Filho, os teus pecados estão perdoados” (vers. 5). As palavras de Jesus significam que Deus aceita essa vontade de mudança, que o passado pecador deixa de pesar sobre o homem e que este pode começar uma vida nova. Pela adesão a Jesus, a humanidade “pecadora”, “impura”, fica totalmente purificada e reconciliada com Deus.
Segundo Marcos, os escribas presentes começaram a dizer no seu interior: “porque fala Ele deste modo? Está a blasfemar. Não é só Deus que pode perdoar os pecados?” (vers. 6-7). A objeção dos escribas representa a doutrina oficial de Israel. Segundo os dogmas de Israel, somente Deus podia perdoar os pecados. Jesus está a querer ocupar o lugar de Deus? Está a assumir-Se como um rival de Deus?
Para resolver o conflito, Jesus não Se socorre de argumentos teóricos, mas convida os que estão à sua volta a medir o alcance da sua autoridade. Na verdade, o perdão dos pecados é algo que só Deus pode dar… E curar um paralítico? Não será um sinal da presença de Deus em Jesus? Ao dizer ao paralítico “levanta-te, toma a tua enxerga e vai para casa” (vers. 11), Jesus está a fazer algo totalmente novo, que será uma prova decisiva da sua autoridade divina. Demonstra, dessa forma, que Ele tem a autoridade de Deus para dar vida em plenitude ao homem que jaz prisioneiro da morte e da escravidão.
Que acontece a esse homem que recebeu de Jesus vida? O instrumento que representava a sua escravidão (a cama) já não o sujeita mais. Purificado e reconciliado com Deus, é agora um homem novo, livre, que rejeitou a escravidão do egoísmo e do pecado e que aderiu a Jesus e ao Reino. Da ação de Jesus resultou, para o homem, vida verdadeira e definitiva, vida total.
A reação da multidão é glorificar a Deus. Perceberam finalmente que, através de Jesus, atua o próprio Deus. Jesus não é um rival que está a usurpar o lugar de Deus, mas Aquele que revela aos homens o amor de Deus.
Em conclusão: Deus, pelo seu amor universal, oferece o seu Reino a todos os homens por igual, sem distinção de povo ou raça, por meio de Jesus. Pela adesão a Jesus, fica apagado o passado pecador do homem e este recebe uma nova vida. O relato mostra a resistência e a incredulidade inicial dos ouvintes judeus diante desta mensagem; mas a vida nova que aparece naquele que se supunha indigno e excluído do Reino demonstra que o perdão/salvação que Jesus oferece tem o selo de Deus. Em Jesus, Deus manifestou a sua bondade e o seu amor pelo homem pobre e desvalido e inaugurou já o processo de plena libertação para a humanidade inteira.
O texto reflete, sem dúvida, a experiência que se tinha na época de Marcos da vitalidade das novas comunidades formadas pelos antes excluídos de Israel (os doentes, os pecadores) e pelos pagãos que deram a sua adesão a Jesus.
ATUALIZAÇÃO
• O ponto de partida da nossa reflexão é, evidentemente, a constatação de que Deus tem um plano de salvação destinado a toda a humanidade. Essa humanidade que percorre diariamente estradas de sofrimento e de angústia, que penosamente caminha no meio de fracassos e de contradições, que é prisioneira do medo, da violência, da opressão, que vê tantas vezes frustrados os seus direitos a uma vida digna e feliz, que dia a dia experimenta na pele as consequências do egoísmo e do pecado, precisa de conhecer esta Boa Nova: Deus caminha, desde sempre, ao lado dos homens, preocupa-Se em proporcionar a cada pessoa a possibilidade de ser livre e feliz, quer que todos integrem a comunidade dos filhos amados de Deus… Para isso, Ele está sempre disposto, de forma totalmente gratuita e incondicional, a oferecer o perdão que purifica, que liberta e que coloca o homem numa órbita de vida nova.
• O plano de Deus para os homens não é uma declaração de boas intenções, mas uma realidade que assume forma histórica e concreta através de Jesus Cristo… Jesus, o Deus que veio ao nosso encontro, mostrou aos homens oprimidos e sofredores, com palavras e com gestos concretos, o empenho de Deus na salvação/libertação de todos os homens. Jesus fez-Se solidário com os sofredores, os excluídos, os oprimidos, os escravizados, e disse-lhes que Deus não os condenava. Convidou-os a integrar a família do “Reino”, apresentou-lhes um caminho de amor e de liberdade, ofereceu-lhes o acesso à vida verdadeira e definitiva. É este Jesus que, com palavras e com gestos, ama, liberta e salva que nós testemunhamos no meio dos nossos irmãos?
• Qual deve ser a nossa resposta à proposta que Deus nos faz através de Jesus? O Evangelho deste domingo fala, a propósito, da “fé” – isto é, de uma decisão consciente e indomável de adesão a Jesus e à sua proposta do “Reino”. Deus oferece-nos o seu amor – amor que nos integra na família de Deus, que nos liberta do egoísmo e do pecado e que introduz em nós mecanismos de vida eterna; mas nós temos de ultrapassar o imobilismo que tolhe os dinamismos de vida nova, o comodismo que nos impede de acolher os desafios de Deus, a auto-suficiência que não nos deixa estar disponíveis para Deus… Temos de nos colocar numa atitude de sincera abertura ao dom de Deus.
• Através de Jesus, Deus oferece a sua proposta libertadora a todos os homens. Mas, para que esta proposta tenha um impacto verdadeiramente libertador no mundo e na vida dos nossos irmãos, Deus conta com o nosso testemunho. Se muitos dos nossos irmãos continuam afundados no sofrimento e numa dor sem esperança, é porque nós não somos, verdadeiramente, sinais da ternura e da bondade de Deus; se muitos dos nossos irmãos são vítimas de sistemas de exclusão e de marginalização, é porque nós não conseguimos testemunhar os valores do “Reino”… Não teremos, às vezes, encerrado Jesus numa “casa” onde nem todos os homens têm acesso? Não teremos, às vezes, “domesticado” Jesus, impedindo que a sua proposta se torne verdadeiramente questionadora e libertadora? A forma cômoda, instalada, medíocre, como vivemos e testemunhamos a nossa fé não será impeditiva para que a proposta de Jesus transforme o mundo? Não estaremos a contribuir, com os nossos preconceitos, os nossos esquemas legalistas, os nossos juízos apressados, para que muitos dos nossos irmãos possam encontrar Jesus e experimentar a alegria da libertação que Ele veio oferecer?
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