O ELO ENTRE A CONTEMPLAÇÃO
E A AÇÃO:
O INSTANTE PRESENTE
“Escolhido de entre os homens, constituído para intervir em favor dos, homens nas suas relações com Deus” (Hb 5,1) o apóstolo encontra-se situado entre a contemplação de Deus e as mil vicissitudes em que a sua vida no meio dos homens o coloca. Acredita com uma mesma fé teologal no primado do espiritual e que o fermento deve misturar-se na massa. Sabe que Deus é Deus e que ele é o único absoluto e entra ousadamente, “sem olhar para trás”, no campo a trabalhar. Sabe que “a cada dia basta a sua cruz”. Aprendeu de cor a forte palavra de Pio XII que recusa todo o dualismo entre o apostolado e o espírito interior de uma vida inteiramente consagrada a Deus: “O vosso apostolado iluminará o espírito interior, que é a sua alma, e de igual modo nutrirá sem cessar e renovará este espírito”’.
Mas a estas certezas da fé tiradas da Escritura, corroboradas pela sabedoria dos santos, autenticadas pela Igreja, é preciso encontrar a maneira cotidiana de as viver, e isso não é fácil nem automático, ainda que no fundo seja muito simples. Onde está, pois, o elo que há de unificar harmoniosamente as nossas duas linhas de vida: homem de Deus, mais ligado a Deus que o esposo mais amante àquela a quem ama; homem dos homens, mais atento aos homens que a mãe mais maternal?
Este elo é o instante presente, o momento em que Deus e a minha ação se reúnem e se mesclam, este minuto fugitivo e sempre atual que me foi dado para que, nele, a minha vida tome o seu peso e a sua consistência de eternidade. Pascal, que foi um belo modelo de presença a Deus e aos homens do seu tempo, sentira-o. Na sua linguagem incomparável, descreve esta mobilidade do homem sempre preocupado com o futuro ou com o passado: “Não nos prendemos nunca ao tempo presente. Antecipamos o futuro como demasiado lento em vir, como para suspender o seu curso, ou recordamo-nos do passado, para o deter como demasiado rápido: tão imprudentes, que erramos nos tempos que não são os nossos e não pensamos nunca no único que nos pertence; e tão vãos, que pensamos naqueles que já não são nada e escapamos sem reflexão ao único que subsiste. É que o presente, de ordinário, fere-nos. Ocultamo-lo à nossa vista, porque nos aflige; e se nos é agradável, receamos vê-lo fugir...
“Que cada um examine os seus pensamentos, e irá achá-los sempre ocupados no passado ou no futuro”.
Quase nunca pensamos no presente; e se pensamos nele é só para captar a sua luz para dispor do futuro. Nunca o presente é o nosso fim.
Assim, nunca vivemos, mas esperamos viver; e, dispondo-nos a ser felizes, é inevitável que não o sejamos nunca”.
Estas palavras do grande Pascal, cruéis de verdade, deixam-nos desamparados. Chegaremos algum dia a escapar a esta dupla e fundamental atração do passado e do futuro? Jesus, à sua maneira divina, diz-nos o mesmo, em menos palavras ainda do que Pascal, mas ferindo mais fortemente: “Deixai os mortos enterrarem os mortos” (Lc 9,60) — no que respeita ao passado —e “não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã já terá as suas preocupações; basta a cada dia o seu mal” (Mt 6,34) — no que se refere ao futuro.
Jesus, porém, não se contenta com dizê-lo; entrega-nos o segredo que permitirá escapar a estes dois pesos que nos fascinam, e este segredo mais atraente que os nossos encargos é a presença de Deus no instante presente. Abundam as palavras de Jesus plenas de estabilidade e de paz: “O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra” (Jo 4,34).
“Porque eu desci do céu para fazer, não a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou... (Jo 6,38).
Esta adesão à vontade do Pai suscita a presença mesma do Pai, e isso até ao momento da cruz: “Quando elevardes o Filho do Homem, então sabereis quem sou e que não faço nada por mim mesmo; o que o Pai me ensinou, digo-o, e aquele que me enviou está comigo e não me deixou só, porque faço sempre o que lhe agrada”
(Jo 8,28-29).
Desta maneira, Jesus torna-nos atentos ao que vai dar às nossas vidas uma plenitude total em cada momento, sempre nova e sem a monotonia da rotina; o tempo não nos chega vazio, e atinge-nos, normalmente, em cada momento, sob a forma de uma ocupação precisa: oito ou dez horas de fábrica, com ordens e gestos positivos a cada minuto, a hora da oração, a vida de equipe. Ora, estes gestos, esta oração, esta refeição em comum, eu posso vivê-los ou acolhê-los na sua própria consistência, não ver neles senão o que imediatamente nos mostram, ou posso, para além da sua aparência, acolhê-los como a vontade de Deus tomando o aspecto desta ação. O acontecimento surge-me, então, literalmente, como um presente de Deus, presente no duplo sentido: da palavra presença e da palavra presente. Este instante presente surge-me inteiramente portador de Deus para me fazer existir, mas aparece-me também envolvido numa ação que me é oferecida e exigida. Fazer a cama ou celebrar missa, escolher legumes ou comungar, esperar o ônibus ou fazer oração, neste momento a ação que me é oferecida é a presença que Deus toma na minha vida.
O Anjo explica à Virgem de Nazaré, no minuto que precede o segundo mais alto da história do mundo: “O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo estenderá sobre ti a sua sombra” (Lc 1,35). O Anjo sabe bem que, para Maria, estas palavras são uma lembrança da obscuridade luminosa da Nuvem do Êxodo, sinal da presença de Javé e, ao mesmo tempo, obscuridade. É também a lembrança de Deus sobre a Arca. Assim, para a Virgem, e também para nós, nas ações mais sublimes como nas mais banalmente cotidianas, a presença atuante de Deus surge “nublada”, sim, oculta na própria sombra do gesto familiar que nos é pedido na hora exata, e é isso que devemos aprender a reconhecer antes de mais nada, e, depois, a amar amorosamente e a cultivar com todo o interesse.
O momento presente surge-me inteiramente portador de Deus, e isso é tão verdade, salvaguardadas as devidas proporções, para a Virgem, no momento da Anunciação, como no momento em que Deus me pede que escove o meu sobretudo.
Esta atitude não é uma espiritualidade que se escolhe ou não segundo a escola a que se pertence, mas simplesmente o reconhecimento do reencontro de Deus e da sua criação. Vivemos, então, esta verdade metafísica tão elevada: em Deus, Deus e o seu querer são uma só coisa.Adrerir amorosamente à vontade de Deus é aderir a Deus,fundir-se com Deus.
Não há Deus em si mesmo de um lado, e a sua ação e o seu plano quanto a nós do outro, de maneira que pudéssemos num momento amar a Deus e o seu ser e não aceitar as suas maneiras de ver. Isto acontece quanto às pessoas humanas que, por vezes, nós mais amamos. Mas esta dissociação é impossível com as Pessoas divinas, porque, nelas, o que são e o que querem são uma e a mesma coisa. Deus é puro amor, e este Amor, desde que se dirija a um outro que não ele, é criador deste outro, ou de qualquer coisa neste outro. Recusar o que Deus faz ou cria, é recusar o mesmo Deus.
O amor de Deus é para nós um amor criador. O que o nosso pai e a nossa mãe fizeram na fração de segundo em que nos deram a vida, Deus fá-lo a cada instante em relação a cada criatura, ao longo de toda a sua existência.
Eu não existo no momento presente senão porque Deus me faz participar da sua existência, e o seu amor se traduz no que me é proposto: cada momento é uma criação de Deus que se continua.
Quando o segredo do instante presente se nos tornar familiar, nada mais poderá aborrecer-nos, nem mesmo o tédio, nada mais nos perturbará, nem mesmo a nossa miséria. As conseqüências das minhas faltas, por dolorosas que sejam, conformo-me com elas, porque Deus certamente não queria o meu pecado, mas a desordem que dele resulta, a confusão em que me meti e cujo tormento arrasto, isso Deus o quer como quer que ponha tudo em ação para reparar. Pascal compreendeu -o e o seu Mistério de Jesus soa de uma maneira muito
diferente das suas reflexões de filósofo: “Se Deus nos desse mestres pela sua mão, oh! como seria necessário obedecer-lhes de boa vontade ! A necessidade e os acontecimentos o são infalivelmente”.
O padre Caussade(em Letras e espiritualidade.) é o mestre admirável deste apego total a Deus: “Recordai-vos dos nossos grandes principios: 1º Que nada é tão pequeno nem tão indiferente, na aparência, que não seja ordenado ou permitido por Deus, até a queda duma folha de árvore! 2º Que Deus é assaz prudente, bom, poderoso e assaz misericordioso, para converter os acontecimentos aparentemente mais funestos em bem e no proveito de todos aqueles que sabem adorar e aceitar humildemente todas as suas divinas e adoráveis permissões”
Afinar a nossa atenção pela presença de Deus nos acontecimentos da nossa vida é, ao mesmo tempo, entrar em comunhão mais íntima com a Sagrada Escritura; descobrirmos melhor o alcance dos salmos, o Deus presente em toda a parte: “Tu me perscrutas e me conheces,
tu conheces o meu repouso e o meu despertar, compreendes o meu pensamento de longe. . .“ (Sl 139), e também um mundo em que tudo tem um sentido: “O mundo do salmista é o de uma plena significação: tudo é ordem, peso, sinais, conseqüência”’.
E o mistério do mal, ainda que permaneça um espinho doloroso e obscuro, deixa de ser um obstáculo ao nosso caminhar para Deus: “Todas as sendas do Senhor são graça e verdade para as sentinelas da sua aliança, seus testemunhos”, e o salmista ensina-nos a viver dali em diante esta atitude fundamental: “Enterrei no meu coração a tua palavra para não te faltar” (Sl 119,11).
São Paulo, por sua vez, não tem outra maneira de viver: “ Portanto, quer comais, quer bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus” ( l Cor 10,31 ). A primeira vista, ficamos desconcertados com esta palavra: parece-nos que seria preciso possuir e espalhar tesouros de entusiasmo para que a glória de Deus surgisse das nossas tão banais ações. Devemos compreender que o que Deus quer, antes do mais, não é tal missão ou tal apostolado humilde ou glorioso, mas o “querermos fazer a sua vontade”, porque ela é o próprio Deus.
Já não vivemos na época em que as pessoas se serviam de uma caveira para meditar sobre a fragilidade do tempo; hoje, se procuramos um símbolo, encontramo-lo de preferência num cristal puro e frágil que se quebra de instante a instante, para renascer logo de novo, e estar pronto, a cada ressurreição, a encher-se de eternidade. Porque o tempo é, simultaneamente, a realidade mais frágil e a mais fluente, mas também a que pode revestir-se das mais elevadas densidades de vida e de ser. Ele é a característica do homem que se faz pouco a pouco, cresce, se forma e se forja. “Felizes os artífices da paz, porque serão chamados filhos de Deus”, dizia Jesus nas suas Bem-aventuranças (Mt 5,9). Para levarmos aos homens esta paz que ultrapassa todo o sentimento, temos de ser nós próprios homens de paz, e, para nos tornarmos pacificadores, temos de ser pacíficos. A união à vontade de Deus conduzir-nos-á a “esta tranqüilidade da ordem” que é, sabemo-lo, a mesma definição da paz.
Pe.Emílio Carlos +
PS:
A contemplação propriamente dita é uma visão interior, algo mais que uma percepção, chega a penetrar na essência mais profunda do Outro, com quem se está intimamente em relação e do qual procede.
Contemplando o Outro, a alma se inflama e ao mesmo tempo impulsiona o Outro; não se perde, se compromete com o Outro e ao mesmo tempo ela mesma se realiza. Estamos perante um processo de contato e de união interior.
Identificando-se com aquele que é contemplado, a alma também alcança um novo modo de relacionar-se consigo mesma, no Outro se percebe a si mesma. Santa Clara o define com o termo latino speculare, refletir como num espelho, o próprio rosto no rosto do Outro. O eu se abre ao Tu do Outro e deste modo se realiza mais e mais a si mesmo como dom. O eu está com o Eu do Outro numa relação de reciprocidade.
Nesta relação nasce a interioridade, a intimidade. A interioridade (mútua interiorização) de si mesmo e do Outro, no processo de interação, conduz a uma profunda compreensão recíproca.
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