As dificuldades fazem cair ou subir
"Queira torna-te, no padecer, algo semelhante a este nosso grande Deus,
humilhado e crucificado, pois que esta vida só tem razão de ser se for
para imitá-lo" SÃO JOÃO DA CRUZ
Todas as dificuldades pode ser, para nós, pedras de tropeço, becos sem
saída onde paramos, caímos e nos machucamos; ou degraus que, com
esforço, nos fazem subir.
O que são para nós as dificuldades?
Pedras,
becos ou degraus? É um fato evidente que não cresce aquele que fica
marcando o passo num ritmo espiritual parado, de simples manutenção das
suas virtudes e qualidades. “Já está bom assim”. Não são poucos os
homens com essa mentalidade, parados, que - como o equilibrista - se
mantêm na corda bamba de uma “certa bondade”, mas não avançam um só
passo. Os anos vão passando, eles continuam a ser bons, mas estão
[aparentemente] sempre na mesma. Digo “aparentemente”, porque a alma
nunca pode “ficar na mesma”. Há um velho adágio cristão, cheio de
sabedoria e experiência, que afirma que, na vida espiritual,
“não
avançar é retroceder”.
Todos conhecemos casos surpreendentes de
retrocessos. Trata-se de pessoas que, tendo oferecido durante longo
tempo uma imagem de honestidade e bondade, de repente nos chocam com uma
virada completamente inesperada. Um pai que, sem motivo aparente, larga
a família; um profissional íntegro que um dia amanhece incrivelmente
envolvido num desfalque; uma pessoa religiosa, católica praticante e
atuante, que subitamente mergulha numa crise e abandona a fé. Nestes
casos, tudo parece indicar que houve um afundamento repentino e
inexplicável. Mas a experiência da vida nos diz que, na maior parte das
vezes, não foi assim. O que aconteceu foi que essas pessoas se
conformaram com um espírito de “simples manutenção”, com ir levando as
coisas sem um impulso de crescimento. Já fazia anos, talvez, que se
arrastavam numa rotina sem vida, e essa rotina - como água fina que
penetra pelas rachaduras de uma casa - foi desgastando a bondade e
esvaziando as virtudes.
Tal como na vida do corpo, a falta de renovação
trouxe a necrose. Este processo de deterioração provocado pela rotina
observa-se, com muita freqüência, na gênese de boa parte dos problemas
familiares. Podemos pensar numa família estável, bem constituída, em que
pais e filhos se mantêm unidos pelos laços do carinho. É claro que, por
melhor que seja o ambiente familiar, não faltam as dificuldades. Talvez
sejam apenas as corriqueiras, mas, por serem muitas vezes repetidas,
podem ir empanando insensivelmente o afeto, recobrindo de ferrugem
invisível as boas vontades e as boas disposições. Então, à medida que o
tempo passa, os atritos podem tornar-se mais freqüentes, a impaciência -
provocada por minúcias insignificantes - mais áspera e repetida, e o
mau humor ir ganhando terreno no relacionamento familiar.
Certamente,
não deixará de haver momentos em que os defeitos de um ou de outro se
acentuem, e então a irritação poderá tornar-se explosiva. Bem sabemos
como uma reação brusca - um comentário ríspido, um surto de ira, uma
crítica ferina - costuma provocar outra reação mais brusca ainda, e
assim acaba-se dando origem a uma reação em cadeia de mágoas, acusações,
decepções e desentendimentos capaz de desandar para um desfecho
catastrófico. A RECUSA DE CRESCER : Caso nos perguntemos o que houve num
processo deste tipo, possivelmente a primeira resposta que nos venha ao
pensamento seja: houve dificuldades, uma chuva de pequenas
dificuldades, uma poeira desgastante e insuportável de dificuldades. No
entanto, a resposta verdadeira é outra. O que houve foi uma recusa do
dever moral de crescer.
Na realidade, cada pequena dificuldade estava
pedindo um pouco mais: um pouco mais de paciência, um pouco mais de
generosidade, um pouco mais de abnegação e esquecimento próprio, um
pouco mais de humildade… Cada dificuldade era um apelo para se crescer
em algum aspecto de uma virtude, mas o coração estava acomodado e não
foi capaz de dar esse algo mais. Cada dificuldade, grande ou pequena,
indica, por assim dizer, o tipo de crescimento espiritual que Deus
espera de nós. Quando lutamos por superá-la, isto é, por estar à altura
daquilo que a dificuldade nos exige - esse “pouco mais” de que falamos
-, estamos dando um passo à frente e subimos até um nível de maturidade
adequado que nos deixa em condições não só de evitar o desgaste, mas de
nos tornarmos melhores.
Cristão normal - aquele que tem energias para
viver moralmente bem - é aquele que consegue dar, ajudado por Deus, a
resposta certa, com um novo ato de virtude, a cada nova situação que
aparece: resposta de fé, ou de amor, ou de fortaleza, ou de sacrifício.
Se, em vez disso, permanece na manutenção rotineira dos seus hábitos,
recusando-se a dar mais de si quando as circunstâncias lhe pedem maior
virtude, ficará como que achatado e sem forças. Irá ficando “por baixo”
dessas circunstâncias, moralmente defasado e, por isso mesmo, incapaz de
dar uma resposta à altura do que é preciso. É natural que acabe
sucumbindo. Aqui se encontra, em resumo, a explicação de muitos
inexplicáveis.
DUAS FRAQUEZAS : É importante que nos apercebamos de que
existem no homem duas espécies de fraqueza, muito diferentes entre si:
uma é a fraqueza natural - que poderíamos chamar sadia -, e que é
própria das limitações de todo o ser humano [a fraqueza que também os
santos experimentam]; e outra é a fraqueza doentia, que resulta da
apatia moral, da falta de ideais ou de luta por alcançá-los. Esta
fraqueza doentia é a que deixa o homem desarmado perante os valores
morais. As mesmas dificuldades que para o homem moralmente sadio são
corriqueiras, que não passam de pequenas lutas diárias que se aceitam
com naturalidade, para o doentio são intoleráveis, da mesma forma que o
alimento são é insuportável para o estômago enfermo.
O “efeito” das
dificuldades depende da atitude que adotarmos diante delas. A atitude
certa, no caso, é a de aceitá-las sem protesto nem surpresa, como um
incentivo e um belo desafio. “Cresce perante os obstáculos”, diz Caminho
[n. 12]. Esta pequena frase resume tudo o que agora procuramos
comentar. É preciso não só contar com as dificuldades, mas aceitá-las de
bom grado e até amá-las, uma vez que elas nos ajudam a construir,
degrau a degrau, a escada que nos eleva até à maturidade moral. Esta é a
atitude do esportista, do pesquisador, do homem que se lança a uma nova
iniciativa profissional. Ao começar a sua tarefa, está num ponto de
partida e sabe que tem diante de si, a aguardá-lo, inúmeras
dificuldades. Desde o início, tem consciência de que não se está
propondo coisas fáceis e sem valor. Não está a fazer exercícios de
repouso na rede. Está começando a lutar, tem um objetivo grande e
empolgante - vencer um torneio, fazer uma descoberta científica,
arrancar do nada um empreendimento -, e com gosto arregaça as mangas.
Se
há dificuldades, e necessariamente tem que havê-las, elas serão um
estímulo diário, um motivo de criatividade e de melhor desempenho. Tudo
isto, que é tão evidente nos ideais puramente humanos, às vezes parece
obscurecer-se quando se trata do maior ideal, da maior grandeza do
homem: a sua autêntica realização que é a realização espiritual e moral,
a perfeição do homem enquanto homem e filho de Deus. Quem tem grandeza
moral nem sequer espera pelas dificuldades. Adianta-se e vai ao encontro
delas. É a grandeza moral que o faz propor-se metas espiritualmente
altas e árduas, recusando como verdadeira morte a instalação medíocre
numa bondade morna. Deste modo, o homem que se propôs a meta alta de
viver o amor a sério, vai alentando no seu íntimo o desejo eficaz de se
entregar cada dia mais a Deus e aos homens. Tudo o que faz lhe parece
pouco. No fundo da alma, ecoa-lhe como uma música empolgante a palavra
“mais”.
Movido por esse afã, procura motivos e ocasiões de
sacrificar-se, de renunciar a pequenos egoísmos, de servir e alegrar a
vida dos outros. E então, quando se lhe apresentam as dificuldades, elas
o encontram já a caminho da doação: são como o bastão que o atleta
apanha com força, já em tensão de velocidade, na corrida de revezamento.
O homem generoso não é surpreendido pelos obstáculos, pois não
estaciona na bondade fácil, mas está em carreira acelerada para a
bondade difícil.
A BONDADE DIFÍCIL : Seria muito interessante que cada
um de nós se perguntasse qual é a sua bondade difícil. Com um pouco de
sinceridade, não demoraríamos a descobri-la. Para uns, é a abnegação,
para outros a compreensão, para outros a intensidade e perfeição no
trabalho, para outros a serena paciência… Para cada um, aquelas virtudes
que, nos maus momentos, nos sentimos inclinados a julgar como
impossíveis: “Eu não fui feito para isto, isto comigo não dá, nunca vou
conseguir”. Pois bem, essas bondades difíceis devem ser exatamente as
nossas metas, voluntariamente abraçadas, no esforço de aperfeiçoamento
moral. É nesses “obstáculos” que devemos “crescer”. Triste coisa seria
que nos contentássemos com as virtudes que brotam espontaneamente do
nosso temperamento e dos nossos hábitos. Ficaríamos fadados ao
raquitismo espiritual e nos fecharíamos numa mediocridade cristalizada e
sem remédio.
O “homem de manutenção”, de que falávamos, não tem
propriamente virtudes firmes, tem antes o que poderíamos chamar “os
defeitos das virtudes”, isto é, as manifestações desfibradas de algumas
qualidades excessivamente atreladas ao seu modo de ser - tranqüilo,
bonachão, ordeiro -, ou às suas manias - “gosto” de fazer isto ou aquilo
-, ou aos seus hábitos inerciais. As virtudes boas são mesmo as
difíceis. A estas é que o homem digno deste nome deve aspirar. Depois de
se propor essa meta, virá uma segunda parte. Como atingi-la? O que
equivale a perguntar-se como enfrentar o lado difícil da bondade e
crescer nele. Quando se “quer”, sempre existe um “como”. Os que nunca
concretizam os modos práticos de melhorar são os que aspiram aos seus
ideais sem sinceridade. Por serem incapazes de dizer “quero”, dizem
apenas “quereria”, mas nem eles nem ninguém sabe como é que vão querer.
Sempre há algum modo de fincar o dente numa aspiração difícil. Sempre há
pelo menos um modo de começar. “Concretiza - lê-se em Caminho -.
Que os
teus propósitos não sejam fogos de artifício, que brilham um instante
para deixar, como realidade amarga, uma vareta de foguete, negra e
inútil, que se joga fora com desprezo”[n. 247]. É claro que, para isto, é
preciso saber dar o primeiro passo rumo à meta que nos propomos, e não
arredar pé depois, mesmo que custe e custe muito. Com espírito
esportivo, devemos tentar uma vez e outra, tendo a coragem e a humildade
de “começar e recomeçar”, e tendo ao mesmo tempo a fortaleza de ser
pacientes conosco próprios, porque a ascensão da montanha da grandeza
moral é sempre lenta. Como numa construção, "para edificar é preciso
sofrer".
As mãos dos pedreiros ferem-se na aspereza da argamassa e, por
muito manejarem a colher, tornam-se calosas e as suas unhas descuidadas.
A pedra é resistente e pesada. Só obedece à força de marteladas. É
teimosa e cheia de arestas pontiagudas e cortantes… Não seria possível
construir sem martelo e sem ruído, sem violência nem golpes, por meio de
um simples desejo? Todos os que têm medo da realidade esbanjaram assim o
seu tempo em fantasias.
"Meu Deus, fazei-me amar o trabalho rude."
[Pierre Charles: A oração de toda a hora]
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