21º Domingo do Tempo Comum - Ano
B
«Para quem iremos, Senhor?
Tu tens palavras de vida eterna.
Nós acreditamos
e sabemos que Tu és o Santo de Deus».
A liturgia do 21º Domingo do
Tempo Comum fala-nos de opções. Recorda-nos que a nossa existência pode
ser gasta a perseguir valores efêmeros e estéreis, ou a apostar nesses valores
eternos que nos conduzem à vida definitiva, à realização plena. Cada homem e
cada mulher têm, dia a dia, de fazer a sua escolha.
Na primeira leitura, Josué convida as tribos de Israel
reunidas em Siquém a escolherem entre “servir o Senhor” e servir outros deuses.
O Povo escolhe claramente “servir o Senhor”, pois viu, na história recente da
libertação do Egito e da caminhada pelo deserto, como só Jahwéh pode
proporcionar ao seu Povo a vida, a liberdade, o bem estar e a paz.
O Evangelho coloca diante
dos nossos olhos dois grupos de discípulos, com opções diversas diante da
proposta de Jesus. Um dos grupos, prisioneiro da lógica do mundo, tem como
prioridade os bens materiais, o poder, a ambição e a glória; por isso, recusa a
proposta de Jesus. Outro grupo, aberto à ação de Deus e do Espírito, está
disponível para seguir Jesus no caminho do amor e do dom da vida; os membros
deste grupo sabem que só Jesus tem palavras de vida eterna. É este último grupo
que é proposto como modelo aos crentes de todos os tempos.
Na segunda leitura, Paulo
diz aos cristãos de Éfeso que a opção por Cristo tem consequências também ao
nível da relação familiar. Para o seguidor de Jesus, o espaço da relação
familiar tem de ser o lugar onde se manifestam os valores de Jesus, os valores
do Reino. Com a sua partilha de amor, com a sua união, com a sua comunhão de
vida, o casal cristão é chamado a ser sinal e reflexo da união de Cristo com a
sua Igreja.
LEITURA I – Jos 24,1-2a.15-17.18b
O Livro de Josué (de onde é
tirada a nossa primeira leitura) abarca uma parte do séc. XII a.C., desde a
época da entrada na Terra Prometida das tribos do Povo de Deus libertadas do
Egipto, até à morte de Josué. O livro oferece-nos uma visão muito simplificada
da ocupação de Canaan: as doze tribos, unidas sob a liderança de Josué,
realizaram várias expedições militares fulgurantes e apoderaram-se, quase sem
oposição, de todo o território anteriormente nas mãos dos cananeus…
Historicamente, contudo, as coisas não se passaram nem de forma tão fácil, nem
de forma tão linear: é mais verossímil a versão apresentada no Livro dos Juízes
e que fala de uma conquista lenta e difícil (cf. Jz 1), incompleta (cf. Jz
13,1-6; 17,12-16), que não foi obra de um povo unido à volta de um chefe único,
mas de tribos que fizeram a guerra isoladamente.
O Livro de Josué, antes de ser um
livro de história, é um livro de catequese. O objetivo dos autores
deuteronomistas que o escreveram era destacar o poder imenso de Jahwéh, posto
ao serviço do seu Povo: foi Deus (e não a capacidade militar das tribos) que,
com os seus prodígios, ofereceu a Israel a Terra Prometida; ao Povo resta-lhe
aceitar os dons de Deus e responder-Lhe com a fidelidade à Aliança e aos
mandamentos.
O texto que nos é hoje proposto
situa-nos na fase final da vida de Josué. Sentindo aproximar-se a morte, Josué
teria reunido em Siquém (no centro do país) os líderes das diversas tribos do
Povo de Deus e ter-lhes-ia proposto uma renovação do seu compromisso com
Jahwéh. De acordo com Jos 24,15, Josué teria colocado as coisas da seguinte
forma: “escolhei hoje a quem quereis servir… porque eu e a minha casa
serviremos o Senhor”.
Na versão do autor deuteronomista
a quem devemos esta notícia, Josué parece dirigir-se a um grupo de tribos que
partilha uma fé comum em
Jahwéh. Estaremos diante de uma assembleia que reúne essas
“doze tribos” que, mais tarde (na época de David) vão constituir uma unidade
nacional? Alguns biblistas pensam que não. Entre as tribos presentes não
estaria certamente a tribo de Judá, já que os contactos entre Judá e a “casa de
José” só se estabeleceram na época do rei David. A “casa” de Josué a que o
texto se refere é certamente constituída pelas tribos do centro do país –
Efraim, Benjamim e Manassés – que há muito tempo tinham aderido a Jahwéh e à
Aliança. E as outras tribos, convidadas a comprometer-se com Jahwéh?
Provavelmente, o convite a escolher entre “o Senhor” e os outros deuses (cf.
Jos 24,14) dirige-se às tribos do norte do país que, sem dúvida, não
abandonaram a Palestina desde a época dos patriarcas (e que, portanto, não
viveram a experiência do Egipto, nem fizeram a experiência de encontro com
Jahwéh, o Deus libertador).
Talvez a “assembleia de Siquém”
referida em Jos 24 seja a primeira tentativa histórica de estabelecer laços
entre as tribos do centro da Palestina (Efraim, Benjamim e Manassés – as tribos
que viveram a experiência do Egipto, a libertação, a caminhada pelo deserto e a
Aliança com Jahwéh) e as tribos do norte (Issacar, Zabulón, Neftali, Asher e
Dan – tribos que nem sequer estiveram no Egipto). A ligação far-se-ia à volta
de uma fé comum num mesmo Deus. A união das diversas tribos do norte e do
centro não se deu, contudo, de uma vez; mas foi uma caminhada lenta e progressiva,
que só se completou muito tempo depois de Josué.
O ponto de partida para o texto
que nos é proposto é o facto histórico em si (provavelmente, uma assembleia em
Siquém, onde Josué propôs às tribos do norte que aceitassem Jahwéh como seu
Deus). No entanto, o autor deuteronomista responsável por este texto pegou na
notícia histórica e transformou-a numa catequese sobre o compromisso que Israel
assumiu para com Jahwéh. O seu objetivo é convidar os israelitas da sua época
(séc. VII a.C.) a não se deixarem seduzir por outros deuses e a manterem-se
fiéis à Aliança.
Estamos, portanto, em Siquém, com
“todas as tribos de Israel” (vers. 1) reunidas à volta de Josué. Na
interpelação que dirige às tribos, Josué começa por elencar alguns momentos
capitais da história da salvação, mostrando ao Povo como Jahwéh é um Deus em
quem se pode confiar; as suas ações salvadoras e libertadoras em favor de
Israel são uma prova mais do que suficiente do seu poder e da sua fidelidade
(cf. Jos 24,2-13).
Depois dessa introdução, Josué
convida os representantes das tribos presentes a tirarem as devidas
consequências e a fazerem a sua opção. É necessário escolher entre servir esse
Senhor que libertou Israel da opressão, que o conduziu pelo deserto e que o
introduziu na Terra Prometida, ou servir os deuses dos mesopotâmios e os deuses
dos amorreus. Josué e a sua família já optaram: eles escolheram servir Jahwéh
(vers. 15).
A resposta do Povo é a esperada.
Todos manifestam a sua intenção de servir o Senhor, em resposta à sua acção
libertadora e à sua proteção ao longo da caminhada pelo deserto (vers. 16-18).
Israel compromete-se a renunciar a outros deuses e a fazer de Jahwéh o seu
Deus.
A aceitação de Jahwéh como Deus
de Israel é apresentada, não como uma obrigação imposta a um grupo de escravos,
mas como uma opção livre, feita por pessoas que fizeram uma experiência de
encontro com Deus e que sabem que é aí que está a sua realização e a sua
felicidade. Depois de percorrer com Jahwéh os caminhos da história, Israel
constatou, sem margem para dúvidas, que só em Deus pode encontrar a liberdade e
a vida em plenitude.
ATUALIZAÇÃO
¨ O problema fundamental posto
pelo autor do nosso texto é o das opções: “escolhei hoje a quem quereis servir”
– diz Josué ao Povo reunido. É uma questão que nunca deixará de nos ser posta…
Ao longo da nossa caminhada pela vida, vamos fazendo a experiência do encontro
com esse Deus libertador e salvador que Israel descobriu na sua marcha pela
história; mas encontramo-nos também, muito frequentemente, com outros deuses e
outras propostas que parecem garantir-nos a vida, o êxito, a realização, a
felicidade e que, quase sempre, nos conduzem por caminhos de escravidão, de
dependência, de desilusão, de infelicidade. A expressão “escolhei hoje a quem
quereis servir” interpela-nos acerca da nossa servidão ao dinheiro, ao êxito, à
fama, ao poder, à moda, às exigências dos valores que a opinião pública
consagrou, ao reconhecimento público… Naturalmente, nem todos os valores do
mundo são geradores de escravidão ou incompatíveis com a nossa opção por Deus…
Temos, no entanto, que repensar continuamente a nossa vida e as nossas opções,
a fim de não corrermos atrás de falsos deuses e de não nos deixarmos seduzir
por propostas falsas de realização e de felicidade. O verdadeiro crente sabe
que não pode prescindir de Deus e das suas propostas; e sabe que é nesse Deus
que nunca desilude aqueles que n’Ele confiam que pode encontrar a sua
realização plena.
¨ Israel aceitou “servir o
Senhor” e comprometer-se com Ele, não por obrigação, mas pela convicção de que
era esse o caminho para a sua felicidade. Por vezes, Deus é visto como um
concorrente do homem e os seus mandamentos como uma proposta que limita a liberdade
e a independência do homem… Na verdade, o compromisso com Deus e a aceitação
das suas propostas não é um caminho de servidão, mas um caminho que conduz o
homem à verdadeira liberdade e à sua realização plena. O caminho que Deus nos
propõe – caminho que somos livres de aceitar ou não – é um caminho que nos
liberta do egoísmo, do orgulho, da auto-suficiência, da escravidão dos bens
materiais e que nos projeta para o amor, para a partilha, para o serviço, para
o dom da vida, para a verdadeira felicidade.
¨ Josué, o líder da comunidade do
Povo de Deus, tem um papel fundamental no sentido de interpelar o Povo e de
testemunhar a sua opção por Deus. Não é um líder que diz belas palavras e
apresenta belas propostas, mas que desmente com a vida aquilo que diz… É um
líder plenamente comprometido com Deus e que testemunha, com a própria vida,
essa opção. Josué poderia ser um exemplo para todos aqueles que têm
responsabilidades na condução da comunidade do Povo de Deus em marcha pela
história. O seu exemplo convida aqueles que presidem à comunidade do Povo de
Deus a serem uma voz de Deus que interpela e que questiona aqueles que caminham
ao seu lado; e convida também os responsáveis pelas comunidades cristãs a
testemunharem com a própria vida aquilo que ensinam ao Povo.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 33
(34)
Refrão: Saboreai e vede como o
Senhor é bom.
A toda a hora bendirei o Senhor,
o seu louvor estará sempre na
minha boca.
A minha alma gloria-se no Senhor:
escutem e alegrem-se os humildes.
Os olhos do Senhor estão voltados
para os justos
e os ouvidos atentos aos seus
rogos.
A face do Senhor volta-se contra
os que fazem o mal,
para apagar da terra a sua
memória.
Os justos clamaram e o Senhor os
ouviu,
livrou-os de todas as suas
angústias.
O Senhor está perto dos que têm o
coração atribulado
e salva os de ânimo abatido.
Muitas são as tribulações do
justo,
mas de todas elas o livra o
Senhor.
Guarda todos os seus ossos,
nem um só será quebrado.
A maldade leva o ímpio à morte,
os inimigos do justo serão
castigados.
O Senhor defende a vida dos seus
servos,
não serão castigados os que n’Ele
se refugiam.
LEITURA II – Ef 5,21-32
Continuamos a ler a parte moral e
parenética da Carta aos Efésios (cf. Ef 4,1-6,20). Nessa parte, Paulo lembra
aos crentes a opção que fizeram no dia do seu Baptismo e que os obriga a viver
como Homens Novos, à imagem de Jesus.
A vida desse Homem Novo que
deixou as trevas e escolheu a luz deve traduzir-se em atitudes concretas. Por
isso, Paulo enumera, a dado passo da sua reflexão, um conjunto de normas de
conduta, através das quais se deve manifestar a opção que o crente assumiu no
dia do seu Batismo.
Na secção de Ef 5,21-6,9 (a que o
texto que hoje nos é proposto pertence), Paulo apresenta as normas que devem
reger as relações familiares. De forma especial, Paulo refere-se aos deveres
dos esposos, seguramente porque vê na sua união uma figura da união de Cristo
com a sua Igreja. Trata-se de um dos temas mais importantes da teologia
desenvolvida na Carta aos Efésios.
O nosso texto começa com um
princípio geral que deve regular as relações entre os diversos membros da
família cristã: “sede submissos uns aos outros no temor de Cristo” (Ef 5,21). O
“ser submisso” expressa aqui a condição daquele que está permanentemente numa
atitude de serviço simples e humilde, sem deixar que a sua relação com o irmão
seja dominada pelo orgulho ou marcada por atitudes de prepotência. A expressão
“no temor de Cristo” recorda aos crentes que o Cristo do amor, do serviço, da
partilha é o exemplo e o modelo que eles devem ter sempre diante dos olhos.
Depois, Paulo dirige-se aos
vários membros da família e propõe-lhes normas concretas de conduta. O texto
que nos é proposto, contudo, apenas conservou a parte que se refere à relação
dos esposos um com o outro (na continuação, Paulo falará também da conduta dos
filhos para com os pais, dos pais para com os filhos, dos senhores para com os
escravos e dos escravos para com os senhores – cf. Ef 6,1-9).
Às mulheres, Paulo pede a
submissão aos maridos, porque “o marido é a cabeça da mulher, como Cristo é a
cabeça da Igreja, seu corpo” (vers. 23). Esta afirmação – que, à luz da nossa
sensibilidade e dos nossos esquemas mentais modernos parece discriminatória –
deve ser entendida no contexto sócio-cultural da época, onde o homem aparece
como a referência suprema da organização do núcleo familiar. De qualquer forma,
a “submissão” de que Paulo fala deve ser sempre entendida no sentido do amor e
do serviço e não no sentido da escravidão.
Aos maridos, Paulo recomenda que
amem as suas esposas, “como Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela” (vers.
25). Não se trata de um amor qualquer, mas de um amor igual ao de Cristo pela
sua comunidade – isto é, de um amor generoso e total, que é capaz de ir até ao
dom da própria vida. Para Paulo, portanto, o amor dos maridos pelas esposas
deve ser um amor completamente despido de qualquer sinal de egoísmo e de
prepotência; e deve ser um amor cheio de solicitude, que se manifesta em
atitudes de generosidade, de bondade e de serviço, que se faz dom total à
pessoa a quem se ama.
Neste contexto, Paulo desenvolve
a sua teologia da relação entre Cristo e a Igreja, para depois tirar daí as
devidas consequências para a união dos esposos cristãos… Cristo santificou a
Igreja, purificando-a “no batismo da água pela palavra da vida” (vers. 26). Há
aqui, certamente, uma alusão ao batismo cristão (inspirada, provavelmente, nas cerimônias
preparatórias do matrimônio, que contemplavam o “banho” da noiva antes de se
apresentar diante do noivo), pelo qual Cristo edifica a sua comunidade e a
purifica do pecado. O Batismo é o momento em que Cristo oferece a
vida plena à sua Igreja e em que a Igreja se compromete com Cristo numa
comunidade de amor. A partir desse momento, Cristo e a Igreja formam um só
corpo… Como Cristo e a Igreja formam um só corpo, do mesmo modo marido e
esposa, comprometidos numa comunidade de amor, formam um só corpo: “por isso, o
homem deixará pai e mãe para se unir à sua mulher e serão dois numa só carne”
(vers. 31). A expressão “uma só carne” aqui usada por Paulo não alude só à
união carnal dos esposos, mas a toda a sua vida conjugal, feita de um empenho
quotidiano na vivência do amor, da fidelidade e da partilha de toda a
existência.
Este paralelismo estabelecido por
Paulo entre a união de Cristo e da Igreja e o amor que une os esposos dá um
significado especial ao casamento cristão: a vocação dos esposos é anunciar e
testemunhar, com o seu amor e a sua união, o amor de Cristo pela sua Igreja.
Dito de outra forma: a união dos esposos cristãos deve ser, aos olhos do mundo,
um sinal e um reflexo do “mistério” de amor que une Cristo e a Igreja.
ATUALIZAÇÃO
¨ O compromisso com Jesus e com a
proposta de vida nova que Ele veio apresentar mexe com a totalidade da vida do
homem e tem consequências em todos os níveis da existência, nomeadamente ao
nível da relação familiar. Para o seguidor de Jesus, o espaço da relação
familiar tem de ser também o lugar onde se manifestam os valores de Jesus, os
valores do Reino. Com a sua partilha de amor, com a sua união, com a sua
comunhão de vida, o casal cristão é chamado a ser sinal e reflexo da união de
Cristo com a sua Igreja. “Os esposos, feitos à imagem de Deus e estabelecidos
numa ordem verdadeiramente pessoal, estejam unidos em comunhão de afeto e de
pensamento e com mútua santidade de modo que, seguindo a Cristo, princípio da
vida, se tornem, pela fidelidade do seu amor, através das alegrias e
sacrifícios da sua vocação, testemunhas daquele mistério de amor que Deus
revelou ao mundo com a sua morte e ressurreição” (Gaudium et Spes, 52).
¨ Para Paulo, o amor que une o
marido e a esposa deve ser um amor como o de Cristo pela sua Igreja. Desse amor
devem, portanto, estar ausentes quaisquer sinais de egoísmo, de prepotência, de
exploração, de injustiça… Deve ser um amor que se faz doação total ao outro,
que é paciente, que não é arrogante nem orgulhoso, que compreende os erros e as
falhas dos outro, que tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta (cf. 1
Cor 13,4-7).
¨ Para Paulo, o amor que une a
esposa e o marido deve ser um amor que se faz serviço simples e humilde. Não se
trata de exigir submissão de um a outro, mas trata-se de pedir que os crentes
manifestem total disponibilidade para servir e para dar a vida, sem esperar
nada em troca.
Trata-se de seguir o exemplo de Cristo que não veio para
afirmar a sua superioridade e para ser servido, mas para servir e dar vida. O matrimônio
cristão não pode tornar-se uma competição para ver quem tem mais direitos ou
mais obrigações, mas uma comunhão de vida de pessoas que, a exemplo de Cristo, fazem
da sua existência uma partilha e um serviço a todos os irmãos que caminham ao
seu lado.
¨ Paulo utiliza, neste texto, a
propósito das mulheres, uma palavra que não devemos absolutizar: “submissão”.
Esta palavra deve ser entendida no contexto sócio-cultural da época, em que o
marido era considerado a referência fundamental da ordem familiar. É claro que,
nos dias de hoje, Paulo não teria usado este termo para falar da relação da
esposa com o marido. A afirmação de Paulo não pode servir para fundamentar
qualquer tipo de discriminação contra as mulheres… Aliás, Paulo dirá, noutras
circunstâncias, que “não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há
homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus” (Gal
3,28).
ALELUIA – cf. Jo 6,63c.68c
Aleluia. Aleluia.
As vossas palavras, Senhor, são
espírito e vida:
Vós tendes palavras de vida
eterna.
EVANGELHO – Jo 6,60-69
Estamos no final do episódio que
começou com a multiplicação dos pães e dos peixes (cf. Jo 6,1-15) e que
continuou com o “discurso do pão da vida” (cf. Jo 6,22-59). Trata-se de um
episódio atravessado por diversos equívocos e onde se manifesta a perplexidade
e a confusão daqueles que escutam as palavras de Jesus… A multidão esperava um
messias rei que lhe oferecesse uma vida confortável e pão em abundância e Jesus
mostrou que não veio “dar coisas”, mas oferecer-Se a Ele próprio para que a
humanidade tivesse vida; a multidão esperava de Jesus uma proposta humana de
triunfo e de glória e Jesus convidou-a a identificar-se com Ele e a segui-l’O
no caminho do amor e do dom da vida até à morte… Os interlocutores de Jesus
perceberam claramente que Jesus os tinha colocado diante de uma opção
fundamental: ou continuar a viver numa lógica humana, virada para os bens
materiais e para as satisfações mais imediatas, ou o assumir a lógica de Deus,
seguindo o exemplo de Jesus e fazendo da vida um dom de amor para ser
partilhado. Instalados nos seus esquemas e preconceitos, presos a aspirações e
sonhos demasiado materiais, desiludidos com um programa que lhes parecia
condenado ao fracasso, os interlocutores de Jesus recusaram-se a identificar-se
com Ele e com o seu programa.
O nosso texto mostra-nos a reação
negativa de “muitos discípulos” às propostas que Jesus faz. Nem todos os
discípulos estão dispostos a identificar-se com Jesus (“comer a sua carne e
beber o seu sangue”) e a oferecer a sua vida como dom de amor que deve ser
partilhado com toda a humanidade. Temos de situar esta “catequese” no contexto
em que vivia a comunidade joânica, nos finais do séc. I… A comunidade cristã
era discriminada e perseguida; muitos discípulos afastavam-se e trilhavam
outros caminhos, recusando-se a seguir Jesus no caminho do dom da vida. Muitos
cristãos, confusos e perplexos, perguntavam: para ser cristão é preciso percorrer
um caminho tão radical e de tanta exigência? A proposta de Jesus será, efetivamente,
um caminho de vida plena, ou um caminho de fracasso e de morte? É a estas
questões que o “catequista” João vai tentar responder.
A perícope divide-se em duas
partes. A primeira (vers. 60-66) descreve o protesto de um grupo de discípulos
face às exigências de Jesus; a segunda (vers. 67-69) apresenta a resposta dos
Doze à proposta que Jesus faz. Estes dois grupos (os “muitos discípulos” da
primeira parte e os “Doze” da segunda parte) representam duas atitudes
distintas face a Jesus e às suas propostas.
Para os “discípulos” de que se
fala na primeira parte do nosso texto, a proposta de Jesus é inadmissível,
excessiva para a força humana (vers. 60). Eles não estão dispostos a renunciar
aos seus próprios projetos de ambição e de realização humana, a embarcar com
Jesus no caminho do amor e da entrega, a fazer da própria vida um serviço e uma
partilha com os irmãos. Esse caminho parece-lhes, além de demasiado exigente,
um caminho ilógico. Confrontados com a radicalidade do caminho do Reino, eles
não estão dispostos a arriscar.
Na resposta à objeção desses
“discípulos”, Jesus assegura-lhes que o caminho que propõe não é um caminho de
fracasso e de morte, mas é um caminho destinado à glória e à vida eterna. A
“subida” do Filho do Homem, após a morte na cruz, para reentrar no mundo de
Deus, será a “prova provada” de que a vida oferecida por amor conduz à vida em
plenitude (vers. 61-62). Esses “discípulos” não estão dispostos a acolher a
proposta de Jesus porque raciocinam de acordo com uma lógica humana, a lógica
da “carne”; só o dom do Espírito possibilitará aos crentes perceber a lógica de
Jesus, aderir à sua proposta e seguir Jesus nesse caminho do amor e da doação
que conduz à vida (vers. 63).
Na realidade, esses discípulos
que raciocinam segundo a lógica da “carne” seguem Jesus pelas razões erradas (a
glória, o poder, a fácil satisfação das necessidades materiais mais básicas). A
sua adesão a Jesus é apenas exterior e superficial. Jesus tem consciência clara
dessa realidade. Ele sabe até que um dos “discípulos” O vai trair e entregar
nas mãos dos líderes judaicos (vers. 64). De qualquer forma, Jesus encara a
decisão dos discípulos com tranquilidade e serenidade. Ele não força ninguém;
apenas apresenta a sua proposta – proposta radical e exigente – e espera que o
“discípulo” faça a sua opção, com toda a liberdade.
Em última análise, a vida nova
que Jesus propõe é um dom de Deus, oferecido a todos os homens (vers. 65). O
termo deste movimento que o Pai convida o “discípulo” a fazer é o encontro com
Jesus e a adesão ao seu projeto. Se o homem não está aberto à ação do Pai e
recusa os dons de Deus, não pode integrar a comunidade dos discípulos e seguir
Jesus.
A primeira parte da cena termina
com a retirada de “muitos discípulos” (vers. 66). O programa exposto por Jesus,
que exige a renúncia às lógicas humanas de ambição e de realização pessoal, é
recusado… Esses “discípulos” mostram-se absolutamente indisponíveis para
percorrer o caminho de Jesus.
Confirmada a deserção desses
“discípulos”, Jesus pede ao grupo mais restrito dos “Doze” que façam a sua
escolha: “também vós quereis ir embora?” (vers. 67). Repare-se que Jesus não
suaviza as suas exigências, nem atenua a dureza das suas palavras… Ele está
disposto a correr o risco de ficar sem discípulos, mas não está disposto a
prescindir da radicalidade do seu projeto. Não é uma questão de teimosia ou de
não querer dar o braço a torcer; mas Jesus está seguro que o caminho que Ele
propõe – o caminho do amor, do serviço, da partilha, da entrega – é o único
caminho por onde é possível chegar à vida plena… Por isso, Ele não pode mudar
uma vírgula ao seu discurso e à sua proposta. O caminho para a vida em plenitude
já foi claramente exposto por Jesus; resta agora aos “discípulos” aceitá-lo ou
rejeitá-lo.
Confrontados com esta opção
fundamental, os “Doze” definem claramente o caminho que querem percorrer: eles
aceitam a proposta de Jesus, aceitam segui-l’O no caminho do amor e da entrega.
Quem responde em nome do grupo (uso do plural) é Simão Pedro: “Para quem iremos
nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna” (vers. 68). A comunidade
reconhece, pela voz de Pedro, que só no caminho proposto por Jesus encontra
vida definitiva. Os outros caminhos só geram vida efêmera e parcial e, com
frequência, conduzem à escravidão e à morte; só no caminho que Jesus acabou de
propor (e que “muitos” recusaram) se encontra a felicidade duradoura e a
realização plena do homem (vers. 68).
É porque reconhece em Jesus o
único caminho válido para chegar à vida eterna que a comunidade dos “Doze”
adere ao que Ele propõe (“cremos” – vers. 69a). A “fé” (adesão a Jesus)
traduz-se no seguimento de Jesus, na identificação com Ele, no compromisso com
a proposta que Ele faz (“comer a carne e beber o sangue” que Jesus oferece e
que dão a vida eterna).
A resposta posta na boca de Pedro
é precisamente a resposta que a comunidade joânica (a tal comunidade que vive a
sua fé e o seu compromisso cristão em condições difíceis e que, por vezes, tem
dificuldade em renunciar à lógica do mundo e apostar na radicalidade do
Evangelho de Jesus) é convidada a dar: “Senhor, as tuas propostas nem sempre
fazem sentido à luz dos valores que governam o nosso mundo; mas nós estamos
seguros de que o caminho que Tu nos indicas é um caminho que leva à vida
eterna. Queremos escutar as tuas palavras, identificar-nos contigo, viver de
acordo com os valores que nos propões, percorrer contigo esse caminho do amor e
da doação que conduz à vida eterna.
ATUALIZAÇÃO
¨ O Evangelho deste domingo põe
claramente a questão das opções que nós, discípulos de Jesus, somos convidados
a fazer… Todos os dias somos desafiados pela lógica do mundo, no sentido de
alicerçarmos a nossa vida nos valores do poder, do êxito, da ambição, dos bens
materiais, da moda, do “politicamente correto”; e todos os dias somos
convidados por Jesus a construir a nossa existência sobre os valores do amor,
do serviço simples e humilde, da partilha com os irmãos, da simplicidade, da
coerência com os valores do Evangelho… É inútil esconder a cabeça na areia:
estes dois modelos de existência nem sempre podem coexistir e, frequentemente,
excluem-se um ao outro. Temos de fazer a nossa escolha, sabendo que ela terá consequências
no nosso estilo de vida, na forma como nos relacionamos com os irmãos, na forma
como o mundo nos vê e, naturalmente, na satisfação da nossa fome de felicidade
e de vida plena. Não podemos tentar agradar a Deus e ao diabo e viver uma vida
“morna” e sem exigências, procurando conciliar o inconciliável. A questão é
esta: estamos ou não dispostos a aderir a Jesus e a segui-l’O no caminho do
amor e do dom da vida?
¨ Os “muitos discípulos” de que
fala o texto que nos é proposto não tiveram a coragem para aceitar a proposta
de Jesus. Amarrados aos seus sonhos de riqueza fácil, de ambição, de poder e de
glória, não estavam dispostos a trilhar um caminho de doação total de si mesmos
em benefício dos irmãos. Este grupo representa esses “discípulos” de Jesus
demasiado comprometidos com os valores do mundo, que até podem frequentar a
comunidade cristã, mas que no dia a dia vivem obcecados com a ampliação da sua
conta bancária, com o êxito profissional a todo o custo, com a pertença à elite
que frequenta as festas sociais, com o aplauso da opinião pública… Para estes,
as palavras de Jesus “são palavras duras” e a sua proposta de radicalidade é
uma proposta inadmissível. Esta categoria de “discípulos” não é tão rara como
parece… Em diversos graus, todos nós sentimos, por vezes, a tentação de atenuar
a radicalidade da proposta de Jesus e de construir a nossa vida com valores
mais condizentes com uma visão “light” da existência. É preciso estarmos
continuamente numa atitude de vigilância sobre os valores que nos norteiam,
para não corrermos o risco de “virar as costas” à proposta de Jesus.
¨ Os “Doze” ficaram com Jesus,
pois estavam convictos de que só Ele tem “palavras que comunicam a vida
definitiva”. Eles representam aqueles que não se conformam com a banalidade de
uma vida construída sobre valores efêmeros e que querem ir mais além;
representam aqueles que não estão dispostos a gastar a sua vida em caminhos que
só conduzem à insatisfação e à frustração; representam aqueles que não estão
dispostos a conduzir a sua vida ao sabor da preguiça, do comodismo, da
instalação; representam aqueles que aderem sinceramente a Jesus, se comprometem
com o seu projeto, acolhem no coração a vida que Jesus lhes oferece e se
esforçam por viver em coerência com a opção por Jesus que fizeram no dia do seu
Batismo. Atenção: esta opção pelo seguimento de Jesus precisa de ser
constantemente renovada e constantemente vigiada, a fim de que o nível da
coerência e da exigência se mantenha.
¨ Na cena que o Evangelho de hoje
nos traz, Jesus não parece estar tão preocupado com o número de discípulos que
continuarão a segui-l’O, quanto com o manter a verdade e a coerência do seu
projeto. Ele não faz cedências fáceis para ter êxito e para captar a
benevolência e os aplausos das multidões, pois o Reino de Deus não é um
concurso de popularidade… Não adianta escamotear a verdade: o Evangelho que
Jesus veio propor conduz à vida plena, mas por um caminho que é de radicalidade
e de exigência. Muitas vezes tentamos “suavizar” as exigências do Evangelho, a
fim de que ele seja mais facilmente aceite pelos homens do nosso tempo… Temos
de ter cuidado para não desvirtuarmos a proposta de Jesus e para não
despojarmos o Evangelho daquilo que ele tem de verdadeiramente transformador. O
que deve preocupar-nos não é tanto o número de pessoas que vão à Igreja; mas é,
sobretudo, o grau de radicalidade com que vivemos e testemunhamos no mundo a
proposta de Jesus.
¨ Um dos elementos que aparece
nitidamente no nosso texto é a serenidade com que Jesus encara o “não” de
alguns discípulos ao projeto que Ele veio propor. Diante desse “não”, Jesus não
força as coisas, não protesta, não ameaça, mas respeita absolutamente a
liberdade de escolha dos seus discípulos. Jesus mostra, neste episódio, o
respeito de Deus pelas decisões (mesmo erradas) do homem, pelas dificuldades
que o homem sente em comprometer-se, pelos caminhos diferentes que o homem
escolhe seguir. O nosso Deus é um Deus que respeita o homem, que o trata como
adulto, que aceita que ele exerça o seu direito à liberdade. Por outro lado, um
Deus tão compreensivo e tolerante convida-nos a dar mostras de misericórdia, de
respeito e de compreensão para com os irmãos que seguem caminhos diferentes,
que fazem opções diferentes, que conduzem a sua vida de acordo com valores e
critérios diferentes dos nossos. Essa “divergência” de perspectivas e de
caminhos não pode, em nenhuma circunstância, afastar-nos do irmão ou servir de
pretexto para o marginalizarmos e para o excluirmos do nosso convívio.
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