22º DOMINGO DO TEMPO COMUM- ANO B
Os preceitos de Deus
são um caminho seguro para a felicidade e para a vida em plenitude.
A liturgia do 22º Domingo do Tempo Comum propõe-nos uma reflexão sobre
a “Lei”. Deus quer a realização e a vida plena para o homem e, nesse
sentido, propõe-lhe a sua “Lei”. A “Lei” de Deus indica ao homem o caminho a
seguir. Contudo, esse caminho não se esgota num mero cumprimento de ritos ou de
práticas vazias de significado, mas num processo de conversão que leve o homem
a comprometer-se cada vez mais com o amor a Deus e aos irmãos.
A primeira leitura garante-nos que as “leis” e preceitos de Deus
são um caminho seguro para a felicidade e para a vida em plenitude. Por
isso, o autor dessa catequese recomenda insistentemente ao seu Povo que acolha
a Palavra de Deus e se deixe guiar por ela.
No Evangelho, Jesus denuncia a atitude daqueles que fizeram do
cumprimento externo e superficial da “lei” um valor absoluto, esquecendo que a
“lei” é apenas um caminho para chegar a um compromisso efectivo com o projecto
de Deus. Na perspectiva de Jesus, a verdadeira religião não se centra no
cumprimento formal das “leis”, mas num processo de conversão que leve o homem à
comunhão com Deus e a viver numa real partilha de amor com os irmãos.
A segunda leitura convida os crentes a escutarem e acolherem a Palavra
de Deus; mas avisa que essa Palavra escutada e acolhida no coração tem de
tornar-se um compromisso de amor, de partilha, de solidariedade com o mundo e
com os homens.
LEITURA I – Dt 4,1-2.6-8
O Livro do Deuteronômio é aquele “livro da
Lei” ou “livro da Aliança” descoberto no Templo de Jerusalém no 18º ano do
reinado de Josias (622 a.C.)
(cf. 2 Re 22). Neste livro, os teólogos deuteronomistas – originários do Norte
(Israel) mas, entretanto, refugiados no sul (Judá) após as derrotas dos reis do
norte frente aos assírios – apresentam os dados fundamentais da sua teologia:
há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto
(Jerusalém); esse Deus amou e elegeu Israel e fez com Ele uma aliança eterna; e
o Povo de Deus deve ser um único Povo, a propriedade pessoal de Jahwéh
(portanto, não têm qualquer sentido as questões históricas que levaram o Povo
de Deus à divisão política e religiosa, após a morte do rei Salomão).
Literariamente, o livro
apresenta-se como um conjunto de três discursos de Moisés, pronunciados nas
planícies de Moab. Pressentindo a proximidade da sua morte, Moisés deixa ao
Povo uma espécie de “testamento espiritual”: lembra aos hebreus os compromissos
assumidos para com Deus e convida-os a renovar a sua aliança com Jahwéh.
O texto que hoje nos é proposto
apresenta-se como parte do primeiro discurso de Moisés (cf. Dt 1,6-4,43). Na
primeira parte desse discurso (cf. Dt 1,6-3,29), em estilo narrativo, o autor
deuteronomista põe na boca de Moisés um resumo da história do Povo, desde a
estadia no Horeb/Sinai, até à chegada ao monte Pisga, na Transjordânia; na
parte final desse discurso (cf. Dt 4,1-43), o autor apresenta, em estilo
exortativo, um pequeno resumo da Aliança e das suas exigências. Esta secção
final do primeiro discurso de Moisés começa com a expressão “e agora, Israel…”,
que enlaça esta secção com a precedente: mostra-se que o compromisso que agora
se pede a Israel se apoia nos acontecimentos históricos anteriormente expostos…
A ação de Deus ao longo da caminhada do Povo pelo deserto deve conduzir ao
compromisso.
O capítulo 4 do Livro do Deuteronômio
é um texto redigido, muito provavelmente, na fase final do Exílio do Povo de
Deus na Babilônia. Perdido numa terra estrangeira e mergulhado numa cultura
estranha, hostilizado quando tentava afirmar a sua fé em Jahwéh e celebrá-la
através do culto, impressionado com o esplendor ritual e as solenidades do
culto babilônico, o Povo bíblico corria o risco de trocar Jahwéh pelos deuses babilônicos.
É neste contexto que os teólogos da escola deuteronomista vão convidar o Povo a
olhar para a sua história (cf. Dt 1,6-3,29), a redescobrir nela a presença
salvadora e amorosa de Jahwéh e a comprometer-se de novo com Deus e com a
Aliança.
Esse Deus que, no passado,
interveio na história para salvar e libertar Israel é o mesmo Deus que agora
oferece ao seu Povo leis e preceitos.
Porque é que Israel deve acolher
e praticar essas leis e preceitos que Deus lhe propõe? Em primeiro lugar, como
forma de gratidão: é a resposta de Israel a esse Deus libertador, que mil vezes
agiu no passado para salvar o seu Povo… Em segundo lugar, porque as leis e
preceitos do Senhor são inquestionavelmente um caminho que conduz o Povo pela
estrada da felicidade e da liberdade. Em qualquer caso, o viver de acordo com
as leis e os preceitos de Jahwéh ajudará o Povo a concretizar todos os seus
sonhos e esperanças – nomeadamente o grande sonho de se estabelecer numa terra,
escapando aos perigos e incomodidades da vida nômade (vers. 1).
Israel deve, contudo, ter cuidado
para não adulterar as leis e preceitos que Deus lhe propõe. Há sempre o perigo
de os homens adaptarem a Palavra de Deus, de forma a que ela sirva os seus
interesses; há sempre o perigo de os homens suavizarem a Palavra de Deus, de
forma a que ela não seja tão exigente; há sempre o perigo de os homens
suprimirem da Palavra de Deus aquilo que os incomoda; há sempre o perigo de os
homens acrescentarem algo à Palavra de Deus, atribuindo a Deus ideias e propostas
com as quais Deus não tem nada a ver… Israel tem de resistir a estas tentações:
a Palavra de Deus deve ser uma proposta sagrada, que o Povo se esforçará por
cumprir integralmente (vers. 2).
Na parte final do texto que nos é
proposto, o catequista deuteronomista manifesta o seu orgulho pelo fato de
Israel ser um Povo especial, o Povo eleito de Deus. Essa eleição manifesta-se
na presença amorosa e libertadora de Jahwéh junto do seu Povo (“qual a grande
nação que tem a divindade tão perto de si como está perto o Senhor nosso Deus
sempre que O invocamos?” – vers. 7), no dom da Lei e na “sabedoria” presente
nessas leis e preceitos que o Senhor deu a Israel, a fim de o conduzir pelos
caminhos da história (“qual é a grande nação que tem mandamentos e decretos tão
justos como esta lei que hoje vos apresento?” – vers. 8).
Israel, Povo “de dura cerviz”,
nem sempre acolheu e cumpriu as leis e os preceitos que o Senhor lhe propôs;
mas os círculos religiosos de Israel preocuparam-se sempre em mostrar ao Povo
que essa Lei era uma proposta segura para chegar à vida plena, à felicidade. É
essa convicção que o nosso catequista deuteronomista deixa transparecer nesta
“homilia” que nos propõe.
ATUALIZAÇÃO
¨ O autor deste texto é, antes de
mais, um crente com um enorme apreço pela Palavra de Deus. Ele vê nas leis e
preceitos de Deus um caminho seguro para a felicidade e para a vida em plenitude. Por
isso, recomenda insistentemente ao seu Povo que acolha a Palavra de Deus e se
deixe guiar por ela. Que importância é que a Palavra de Deus assume na minha
existência? Consigo encontrar tempo e disponibilidade para escutar, para
meditar e interiorizar a Palavra de Deus, de forma a que ela informe os meus
valores, os meus sentimentos e as minhas ações?
¨ Para muitos dos nossos
contemporâneos, as leis e preceitos de Deus são um caminho de escravidão, que
condicionam a autonomia e que limitam a liberdade do homem; para outros, as
leis e preceitos de Deus são uma moral ultrapassada, que não condiz com os
valores do nosso tempo e que deve permanecer, coberta de pó, no museu da
história. Em contrapartida, para o catequista que nos oferece esta reflexão do
Livro do Deuteronômio, a Palavra de Deus é um caminho sempre atual, que liberta
o homem da escravidão do egoísmo e que o conduz ao encontro da verdadeira vida
e da verdadeira liberdade. De fato, a escuta atenta e o compromisso firme com a
Palavra de Deus é, para os crentes, uma experiência libertadora: salva-nos do
egoísmo, do orgulho, da auto-suficiência e projeta-nos para o amor, para a
partilha, para o serviço, para o dom da vida.
¨ Uma das insistentes
recomendações do nosso texto é a de não adulterar a Palavra de Deus, ao sabor
dos interesses pessoais dos homens. Existe sempre o perigo, quer na nossa
reflexão pessoal, quer na nossa partilha comunitária, de torcermos a Palavra ao
sabor dos nossos interesses, de limarmos a sua radicalidade, de lhe cortarmos
os aspectos mais questionantes, ou de a fazermos dizer coisas que não vêm de
Deus… É preciso perguntarmo-nos constantemente se a Palavra que vivemos e
anunciamos é a Palavra de Deus ou é a nossa “palavra”, se ela transmite os
valores de Deus ou os nossos valores pessoais, se ela testemunha a lógica de
Deus ou a nossa lógica humana. Este processo de discernimento é mais fácil
quando é feito em comunidade, no diálogo e no confronto com os irmãos que
caminham conosco, que nos questionam e que partilham conosco a sua perspectiva
das coisas.
¨ Nós os crentes comprometidos
andamos sempre muito ocupados a fazer coisas bonitas no sentido de mudar o
mundo, num ativismo por vezes exagerado e que, aos poucos, nos vai fazendo
perder o sentido da nossa ação e do nosso testemunho. No meio dessa atividade
frenética, temos de encontrar tempo para escutar Deus, para meditar as suas
propostas, para repensar as suas leis e preceitos, para descobrir o sentido da
nossa ação no mundo. Sem a escuta da Palavra, a nossa ação torna-se um “fazer
coisas” estéril e vazio que, mais tarde ou mais cedo, nos leva a perder o
sentido do nosso testemunho e do nosso compromisso.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 14
(15)
Refrão 1: Quem habitará, Senhor,
no vosso santuário?
Refrão 2: Ensinai-nos, Senhor:
quem habitará em vossa casa?
O que vive sem mancha e pratica a
justiça
e diz a verdade que tem no seu
coração
e guarda a sua língua da calúnia.
O que não faz mal ao seu próximo
nem ultraja o seu semelhante,
o que tem por desprezível o
ímpio,
mas estima os que temem o Senhor.
O que não falta ao juramento, mesmo em seu
prejuízo,
e não empresta dinheiro com
usura,
nem aceita presentes para condenar
o inocente.
Quem assim proceder jamais será
abalado.
LEITURA II – Tg 1,17-18.21-22.27
A carta de onde foi extraída a
nossa segunda leitura de hoje é um escrito de um tal Tiago (cf. Tg 1,1), que a
tradição liga a esse Tiago “irmão” do Senhor, que presidiu à Igreja de
Jerusalém e do qual os Evangelhos falam acidentalmente como filho de certa Maria
(cf. Mt 13,55; 27,56). Teria morrido decapitado em Jerusalém no ano 62… No
entanto, a atribuição deste escrito a tal personagem levanta bastantes
dificuldades. O mais certo é estarmos perante um outro qualquer Tiago,
desconhecido até agora (o “Tiago, filho de Alfeu” – de que se fala em Mc 3,18 e
par. – e o “Tiago, filho de Zebedeu” e irmão de João – de que se fala em Mc
1,19 e par. – também não se encaixam neste perfil). É, de qualquer forma, um
autor que escreve em excelente grego, recorrendo até, com frequência, à
“diatribe” – um género muito usado pela filosofia popular helénica. Inspira-se
particularmente na literatura sapiencial, para extrair dela lições de moral
prática; mas depende também profundamente dos ensinamentos do Evangelho.
Trata-se de um sábio judeo-cristão que repensa, de maneira original, as máximas
da sabedoria judaica, em função do cumprimento que elas encontraram na boca e
no ensinamento de Jesus.
A carta foi enviada “às doze
tribos que vivem na Diáspora” (Tg 1,1). Provavelmente, a expressão alude a
cristãos de origem judaica, dispersos no mundo greco-romano, sobretudo nas
regiões próximas da Palestina – como a Síria ou o Egipto; mas, no geral, a
carta parece dirigir-se a todos os crentes, exortando-os a que não percam os
valores cristãos autênticos herdados do judaísmo através dos ensinamentos de
Cristo. Denuncia, sobretudo, certas interpretações consideradas abusivas da
doutrina paulina da salvação pela fé, sublinhando a importância das obras; e
ataca com extrema severidade os ricos (cf. Tg 1,9-11; 2,5-7; 4,13-17; 5,1-6).
O nosso texto pertence à primeira
parte da carta (cf. Tg 1,2-27). Aí, o autor apresenta, num conjunto de
desenvolvimentos e de sentenças aparentemente sem ordem nem lógica, uma síntese
ou guia breve da carta, pois oferece um breve panorama dos problemas que o
preocupam e que ele vai tratar nos capítulos seguintes.
Os versículos da Carta de Tiago
que nos são propostos como segunda leitura reflectem sobre a Palavra de Deus. O
autor da carta não desenvolve um raciocínio continuada, mas vai elencando
vários aspectos relacionados com a forma como os crentes devem ver e acolher a
Palavra de Deus…
1. Deus oferece continuamente ao
homem os seus dons, a fim de lhe proporcionar vida e felicidade (vers. 17). A
Palavra de Deus é um dom que o “Pai das luzes” oferece ao homem e destina-se a
gerar uma nova humanidade. Os crentes, iluminados pela “Palavra da verdade” que
lhes vem de Deus, podem caminhar em segurança em direção à vida plena, à
felicidade sem fim (vers. 18).
2. Os crentes devem estar sempre
disponíveis para acolher a Palavra de Deus. Não podem fechar-se no seu orgulho
e auto-suficiência, ignorando as propostas de Deus; mas devem abrir o coração
para que a Palavra lançada por Deus aí encontre lugar, aí possa lançar raízes e
desenvolver-se (vers. 21b).
3. A escuta e o acolhimento da
Palavra têm, contudo, de conduzir à ação. A escuta da Palavra de Deus tem de
conduzir à conversão, à mudança, ao abandono da vida velha do egoísmo e do
pecado, a fim de abraçar uma vida segundo Deus. A escuta da Palavra de Deus
também não pode fechar o homem num espiritualismo alienante e estéril, mas tem
de conduzir a um compromisso efetivo com a transformação do mundo (vers. 22).
4. No último versículo da nossa
leitura (vers. 27), o autor da carta descreve a religião autêntica (por
oposição à religião vazia, inoperante, morta, daqueles que falam muito mas não
praticam ações coerentes com as suas palavras – vers. 26): “visitar os órfãos e
as viúvas nas suas tribulações e conservar-se limpo do contágio do mundo”.
Ligando este versículo com o tema central do resto da leitura (a Palavra de
Deus), podemos dizer que é a escuta atenta da Palavra de Deus que nos projeta
para a ação e para o compromisso. A escuta da Palavra de Deus leva o crente a
passar de uma religião ritual, legalista, externa, superficial, para uma
religião de efetivo compromisso com a realização do projeto de Deus e com o
amor dos irmãos.
ATUALIZAÇÃO
¨ Na nossa sociedade, há uma tal
super-abundância de palavras, que a palavra se desvalorizou. Todos dizem o que
muito bem entendem, às vezes de uma forma pouco serena e pouco equilibrada, sem
pesar as consequências. Habituamo-nos, portanto, a não levar demasiado a sério
as palavras que escutamos e a não lhes conceder um crédito absoluto. O nosso
texto, contudo, valoriza a Palavra de Deus e sublinha a sua importância no
sentido de nos conduzir ao encontro da vida verdadeira e eterna. É preciso
darmos à Palavra que Deus nos dirige um peso infinitamente superior às palavras
sem nexo que todos os dias enchem os nossos ouvidos e que intoxicam a nossa
mente… A Palavra de Deus é Palavra geradora de vida, de eternidade, de
felicidade; por isso, deve ser por nós valorizada.
¨ O excesso de palavras
(autêntica poluição sonora!) leva também à dificuldade em escutar com atenção.
Não temos tempo nem paciência para escutar todos os disparates, todas as
conversas sem sentido, toda a verborreia daqueles que gostam de se ouvir a si
próprios, embora não digam nada de importante. Por outro lado, as exigências da
vida moderna, o trabalho excessivo, o corre-corre do dia a dia, limitam muito a
nossa disponibilidade para escutar. Criamos hábitos de não escuta e tornamo-nos
surdos aos apelos que chegam até nós através da palavra. A nossa leitura
convida-nos, entretanto, a encontrar tempo e disponibilidade para escutar o
Deus que nos fala e que, através da Palavra que nos dirige, nos apresenta as
suas propostas para nós e para o mundo.
¨ A Palavra de Deus que escutamos
e que acolhemos no coração deve conduzir-nos à ação. Se ficamos apenas pela
escuta e pela contemplação da Palavra, ela torna-se estéril e inútil. É preciso
transformar essa Palavra que escutamos em gestos concretos, que nos levem à
conversão e que tragam um acréscimo de vida para o mundo. A Palavra de Deus que
escutamos tem de nos levar ao compromisso – à luta pela justiça, pela paz, pela
dignidade dos nossos irmãos, pelos direitos dos pobres, por um mundo mais fraterno
e mais cristão.
¨ A nossa religião, sem a escuta
atenta e comprometida da Palavra de Deus, pode facilmente tornar-se o mero
cumprimento de ritos, a fidelidade a certas práticas de piedade, uma tradição
que herdamos e na qual nos instalamos, uma prática que torna mais fácil a nossa
inserção num determinado meio social, uma alienação que nos faz esquecer certos
dramas da nossa vida… É a Palavra de Deus que, propondo-nos uma escuta contínua
de Deus e dos seus projetos e um compromisso continuamente renovado com a
construção do mundo, dá sentido a toda a nossa experiência religiosa,
transformando-a numa verdadeira experiência de vida nova, de vida autêntica.
ALELUIA – Tg 1,18
Aleluia. Aleluia.
Deus Pai nos gerou pela palavra
da verdade,
para sermos como primícias das
suas criaturas.
EVANGELHO – Mc 7,1-8.14-15.21-23
Na primeira parte do Evangelho
segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30), o autor apresenta Jesus como o Messias que
proclama o Reino de Deus. Deslocando-se por toda a Galileia, Jesus anuncia a
Boa Nova do Reino de Deus com as suas palavras e os seus gestos, propondo um
mundo novo de vida, de liberdade, de fraternidade para todos os homens. A sua
proposta provoca as reações e as respostas mais diversas nos líderes judaicos,
no povo e nos próprios discípulos.
A cena que nos é hoje proposta no
Evangelho mostra-nos, precisamente, a reação dos fariseus e dos doutores da Lei
à acção de Jesus. Pouco antes, Jesus tinha realizado a multiplicação dos pães e
dos peixes (cf. Mc 6,34-44), propondo, com o seu gesto, um mundo novo de
fraternidade, de serviço e de partilha (o “Reino de Deus”); e os líderes
judaicos, sem coragem para enfrentar-se directamente com Jesus e para pôr em
causa a sua proposta, escolhem os discípulos como alvo das suas críticas…
Naturalmente, esses fariseus, fanáticos da Lei, vão questionar os discípulos de
Jesus acerca da forma deficiente como eles cumprem a “tradição dos antigos”.
Para os fariseus, a “tradição dos
antigos” não se cingia às normas escritas contidas na Lei (Torah), mas abrangia
um imenso conjunto de leis orais onde apareciam as decisões e as sentenças dos
rabis acerca dos mais diversos temas. Na época de Jesus, essa “tradição dos
antigos” constava de 613 leis (tantas quantas as letras do Decálogo dado a
Moisés no Monte Sinai), das quais 248 eram preceitos de formulação positiva e
365 eram preceitos de formulação negativa. Essas leis – que o Povo tinha
dificuldade em conhecer na sua totalidade e que tinha, ainda mais, dificuldade
em praticar – eram, para os fariseus, o caminho para tornar Israel um Povo
santo e para apressar a vinda libertadora do Messias. Vai ser, precisamente, à
volta desta temática que se vai centrar a polémica entre Jesus e os fariseus
que o Evangelho de hoje nos relata.
Quando Marcos escreveu o seu
Evangelho (durante a década de 60), a questão do cumprimento da Lei judaica
ainda era uma questão “quente”. Para os cristãos vindos do judaísmo, a fé em
Jesus devia ser complementada com o cumprimento rigoroso das leis judaicas… No
entanto, a imposição dos costumes judaicos levaria, certamente, ao afastamento
dos cristãos vindos do paganismo. A questão que era preciso equacionar era a
seguinte: o cumprimento da Lei de Moisés era importante, para a comunidade
cristã? Para que o Reino que Jesus propôs se concretizasse, era necessário o
cumprimento integral da Lei judaica? O Concílio de Jerusalém (por volta do ano
49) já havia dado uma primeira resposta à questão: para os cristãos, o
fundamental é a pessoa de Jesus e o seu Evangelho; não é lícito impor aos
cristãos vindos do paganismo o fardo da Lei de Moisés. No entanto, o problema
continuou a colocar-se durante algumas décadas mais, nomeadamente a propósito
dos tabus alimentares hebraicos e que os cristãos vindos do judaísmo pretendiam
impor a toda a Igreja (cf. Rom 14,1-15,6).
É, provavelmente, a esta temática
que o evangelista Marcos quer responder.
Os povos antigos, em geral, e os
judeus, em particular, sentiam um grande desconforto quando tinham de lidar com
certas realidades desconhecidas e misteriosas (quase sempre ligadas à vida e à
morte) que não podiam controlar nem dominar. Criaram, então, um conjunto
abundante de regras que interditavam o contacto com essas realidades (por
exemplo, os cadáveres, o sangue, a lepra, etc.) ou que, pelo menos,
regulamentavam a forma de lidar com elas, de forma a torná-las inofensivas. No
contexto judaico, quem infringia – mesmo involuntariamente – essas regras
colocava-se a si próprio numa situação de marginalidade e de indignidade que o
impedia de se aproximar do mundo divino (o culto, o Templo) e de integrar a
comunidade do Povo santo de Deus. Dizia-se então que a pessoa ficava “impura”.
Para readquirir o estado de “pureza” e poder reintegrar a comunidade do Povo
santo, o crente necessitava de realizar um rito de “purificação”,
cuidadosamente estipulado na “Lei”.
Na época de Jesus, as regras da
“pureza” tinham sido absurdamente ampliadas pelos doutores da Lei. Na opinião
dos rabis de Israel, existia uma lista imensa de coisas que tornavam o homem
“impuro” e que o afastavam da comunidade do Povo santo de Deus. Daí a obsessão
com os rituais de “purificação”, que deviam ser cumpridos a cada passo da vida
diária.
Um desses ritos consistia na
lavagem das mãos antes das refeições. Na sua origem está, provavelmente, a
universalização do preceito que mandava os sacerdotes lavarem os pés e as mãos,
antes de se aproximarem do altar para o exercício do culto (cf. Ex 30,17-21).
Na perspectiva dos doutores da Lei, a purificação das mãos antes das refeições
não era uma questão de higiene, mas uma questão religiosa… Em cada momento o
crente corria o risco, mesmo sem o saber, de tropeçar com uma realidade impura
e de lhe tocar; para evitar que a “impureza” (que lhe ficara agarrada às mãos)
se introduzisse, juntamente com os alimentos, no corpo exigia-se a lavagem das
mãos antes das refeições.
Na Galileia, terra em permanente
contacto com o mundo pagão e onde as normas de “pureza” não eram tão rígidas
como em Jerusalém, não se dava demasiada importância ao ritual de lavar as mãos
antes das refeições para evitar a ingestão da “impureza”. Os fariseus vindos de
Jerusalém, testemunhando como os discípulos comiam sem realizar o gesto ritual
de purificação das mãos, ficaram escandalizados e referiram o caso a Jesus.
Provavelmente, a história serviu aos fariseus para sondar Jesus e para
averiguar a sua ortodoxia e o seu respeito pela tradição dos antigos.
Para Jesus, a obsessão dos
fariseus com os ritos externos de purificação é sintoma de uma grave
deficiência quanto à forma de ver e de viver a religião; por isso, Jesus
responde ao reparo dos fariseus com alguma dureza… Partindo da Escritura (vers.
6-8) e da análise da praxis dos judeus (vers. 9-13), Jesus denuncia essa
vivência religiosa que aposta apenas na repetição de práticas externas e
formalistas, mas que não se preocupa com a vontade de Deus (“este povo honra-Me
com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” – vers. 6) ou com o amor
aos irmãos. Trata-se de uma religião vazia e estéril (“é vão o culto que Me
prestam” – vers. 7), que não vem de Deus mas foi inventada pelos homens (“as
doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos” – vers. 7). Àqueles que
apostam na religião dos ritos estéreis, Jesus chama “hipócritas” (vers. 6):
interessa-lhes mais o “parecer” do que o “ser”, a materialidade do que a
essência das coisas… Eles cumprem as regras, mas não amam; vestem com fingimento
a máscara da religião, mas não se preocupam minimamente com a vontade de Deus.
Esta religião é uma mentira, uma hipocrisia, ainda que se revista de ares muito
santos e muito piedosos.
Depois, Jesus dirige-Se à
multidão e formula o princípio decisivo da autêntica moralidade: “não há nada
fora do homem que ao entrar nele o possa tornar impuro; o que sai do homem é
que o torna impuro” (vers. 15). Este princípio geral, à primeira vista
enigmático e passível de várias interpretações, será explicado mais à frente:
“do interior do homem é que saem os maus pensamentos: imoralidades, roubos,
assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja,
difamação, orgulho, insensatez. Todos estes vícios saem lá de dentro e tornam o
homem impuro” (vers. 22-23). O dito de Jesus refere-se, naturalmente, a dois
“circuitos” diversos: o do estômago (onde entram os alimentos que se ingerem) e
o do coração (de onde saem os pensamentos, os sentimentos e as ações). Os
alimentos que entram no estômago não são fonte de “impureza”; os pensamentos e
as ações más que saem do coração do homem é que são fonte de “impureza”:
afastam o homem de Deus e da comunidade do Povo santo.
Na antropologia judaica, o
“coração” é o “interior do homem” em sentido amplo; é aí que está a sede dos
sentimentos, dos desejos, dos pensamentos, dos projetos e das decisões do
homem. É nesse “centro vital” de onde tudo parte que é preciso atuar. A
verdadeira religião não passa, portanto, pelo cumprimento de regras externas,
que regulam o que o homem come ou não come; mas passa por uma autêntica
conversão do coração, que leve o homem a deixar a vida velha e a transformar-se
num Homem Novo, que assume e que vive os valores do Reino. A preocupação com as
regras externas de “pureza” é uma preocupação estéril, que não toca com o
essencial – o coração do homem; pode até servir para distrair o crente do
essencial, dando-lhe uma falsa segurança e uma falsa sensação de estar em regra
com Deus. A verdadeira preocupação do crente deve ser moldar o seu coração, a
fim de que os seus sentimentos, os seus desejos, os seus pensamentos, os seus
projetos, as suas decisões se concretizem, no dia a dia, na escuta atenta dos
desafios de Deus e no amor aos irmãos.
ATUALIZAÇÃO
¨ O que é que é decisivo na
experiência religiosa? Será o estrito cumprimento das leis definidas pela
Igreja? Serão as manifestações exteriores de religiosidade que definem quem é
bom ou mau, santo ou pecador, amigo ou inimigo de Deus?
¨ As “leis” têm o seu lugar numa
experiência religiosa, enquanto sinais indicadores de um caminho a percorrer.
No entanto, é preciso que o crente tenha o discernimento suficiente para dar à
“lei” um valor justo, vendo-a apenas como um meio para chegar mais além no
compromisso com Deus e com os irmãos. A finalidade da nossa experiência
religiosa não é cumprir leis, mas aprofundar a nossa comunhão com Deus e com os
outros homens sendo, eventualmente, ajudados nesse processo por “leis” que nos
indicam o caminho a seguir.
¨ Se fizermos das leis algo de
absoluto, elas podem tornar-se para nós um fim e não um caminho. Nesse caso, as
“leis” serão, em última análise, uma forma de acalmar a nossa consciência, de
nos julgarmos em regra com Deus, de sentirmos que Deus nos deve algo porque nós
cumprimos todas as regras estabelecidas. Tornamo-nos orgulhosos e
auto-suficientes, pois sentimos que somos nós que, com o nosso esforço para
estar em regra, conquistamos a nossa salvação. Deixamos de precisar de Deus, ou
só precisamos d’Ele para apreciar o nosso esforço e para nos dar aquilo que
julgamos ser uma “justa recompensa”. O culto que prestamos a Deus pode
tornar-se, nesse caso, um processo interesseiro de compra e venda de favores e
não uma manifestação do amor que nos enche o coração. A nossa religião será,
nesse caso, uma mentira, uma negociata, que Deus não aprecia nem pode
caucionar.
¨ De acordo com os ensinamentos
de Jesus, não é muito religioso ou muito cristão quem aceita todas as “leis”
propostas pela Igreja, ou quem cumpre escrupulosamente todos os ritos; mas é
cristão verdadeiro aquele que, no seu coração, aderiu a Jesus e procura
segui-l’O no caminho do amor e da entrega, que aceita integrar a comunidade dos
discípulos, que acolhe com gratidão os dons de Deus, que celebra a fé em
comunidade, que aceita fazer com os irmãos uma experiência de amor partilhado.
¨ É isso que Jesus quer dizer
quando convida os seus discípulos a não se preocuparem com as leis e os ritos
externos, mas a preocuparem-se com o que lhes sai do coração. É no interior do
homem que se definem os sentimentos, os desejos, os pensamentos, as opções, os
valores, as ações do homem. É daí que nascem os nossos gestos injustos, as
discórdias e violências que destroem a relação, as tentativas de humilhar os irmãos,
os rancores que nos impedem de perdoar e de aceitar os outros, as opções que
nos fazem escolher caminhos errados e que nos escravizam a nós e àqueles que
caminham ao nosso lado… A verdadeira religião passa por um processo de contínua
conversão, no sentido de nos parecermos cada vez mais com Jesus e de acolhermos
a proposta de Homem Novo que Ele nos veio fazer.
¨ É preciso mantermo-nos livres e
críticos em relação às “leis” que nos são propostas, sejam elas leis civis ou
religiosas... Elas servem-nos e devem ser consideradas se nos ajudarem a ser
mais humanos, mais fraternos, mais justos, mais comprometidos, mais coerentes,
mais “família de Deus”; elas deixam de servir se geram escravidão, dependência,
injustiça, opressão, marginalização, divisão, morte. O processo de
discernimento das “leis” boas e más não pode, contudo, ser um processo
solitário; mas deve ser um processo que fazemos, com o Espírito Santo, na
partilha comunitária, no confronto fraterno com os irmãos, numa procura
coerente e interessada do melhor caminho para chegarmos à vida plena e
verdadeira.
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