A Igreja Católica e o Dia Mundial de Orações Pelos Enfermos
D. Antonio Duarte (CNBB)
O Dia Mundial de orações pelos enfermos merece uma moldura especial e nada mais próprio para essa celebração do que as palavras de duas figuras eminentes da nossa Igreja .
Quem ama verdadeiramente o próximo deve fazer-lhe bem ao corpo tanto como à alma, e isso não consiste apenas em acompanhar os outros ao médico, mas também em cuidar de que não lhes falte alimentação, bebida, roupa, moradia, e em proteger-lhes o corpo contra tudo que possa prejudicá-lo... São misericordiosos os que usam de delicadeza e humanidade quando proporcionam aos outros o necessário para resistirem aos males e às dores. (cf. Santo Agostinho, Sobre os costumes da Igreja Católica, 1, 28,56).
A doença não só é útil aos outros, como também lhes presta um serviço insubstituível. No Corpo de Cristo (...) o sofrimento impregnado do espírito de sacrifício de Cristo é o mediador insubstituível e o autor dos bens indispensáveis à salvação do mundo. Mais do que qualquer outra coisa, é o sofrimento que abre o caminho à graça que transforma as almas humanas.
Mais do que qualquer outra coisa, é ele que torna presentes na história da humanidade as forças da Redenção. (cf. João Paulo II, Carta Apostólica Salvificis doloris, 11-II-1984, 27).
Creio que com estas duas citações pode-se emoldurar ricamente esta comemoração. Nelas encontramos as principais linhas de ação da Igreja no campo da saúde e da pastoral com os enfermos.
Como afirma o Santo Bispo de Hipona existe uma linha prioritária que nunca a Igreja abandonou ao longo desses vinte e um séculos da sua história: a da misericórdia.
Tenho misericórdia dessa multidão. (Mc. 8,2; Mt. 15,32).
Aquela multidão O acompanha apenas há três dias. Há no coração humano de Jesus Cristo uma linha diretriz dos seus sentimentos e até mesmo dos seus sentidos corporais, que é, precisamente, a misericórdia, a compaixão, o pesar que despertava nEle a dor, o mal presente na vida do outro. Em Cristo o que nunca se encontrou nunca se encontrará, mesmo se se buscar com muitíssima atenção era uma metodologia ou uma técnica de aproximação, de comunicação.
Por quê Santo Agostinho destaca esta linha da misericórdia e até menciona os seus elementos constitutivos? Pelo conteúdo da citação feita pode-se intuir que na sua época como na atual existia o risco de um atendimento aos enfermos pautado apenas por uns costumes bons: acompanhar ao médico, cuidar da alimentação, da roupa, da bebida, da moradia. Costumes necessários, mas não característicos dos costumes profundos da Igreja Católica: fazer-lhes bem ao corpo tanto como à alma... São misericordiosos os que usam de delicadeza e de humanidade....
A visão integral da pessoa enferma e o modo de se viver a misericórdia, a compaixão, existentes no Coração de Cristo exige dos cristãos qualidades humanas que realmente sejam refletoras de uma interioridade semelhante à de Cristo!
Na verdade, o que interessa para o Corpo Místico de Cristo são homens e mulheres realmente identificados com Jesus Cristo, senão o risco de restringir-se só aos bons costumes e das técnicas pastorais bem aplicadas não é tão remoto assim.
Ainda que seja óbvio dizer, quando um homem e uma mulher ficam doentes, seguem sendo pessoas. O ingresso num centro médico não lhes converte num simples número de uma história clínica ou num simples objetivo pastoral de um ministério eclesiástico ou eclesial.
Pela enfermidade que se padece não se perde a sua identidade pessoal, nem se deixa de ser alguém para se converter em algo. Toda a pessoa fica afetada pela doença que tem. Daí que a atenção ao enfermo dado pela Igreja compreende as diversas dimensões humanas: biológica, psicológica, cultural, espiritual e religiosa (médicos e enfermeiras católicos).
O enfermo deve ser ajudado a reencontrar não só o bem-estar físico, mas também o psicológico e moral. Isto supõe que o médico, junto à competência profissional, tenha uma postura de amorosa solicitude, inspirada na imagem evangélica do bom samaritano. O médico católico está chamado, perto de cada pessoa que sofre, a ser testemunha daqueles valores superiores que têm, na sua fé, o seu fundamento solidíssimo. (cf. Alocução, 7-VII-200 João Paulo II).
Seja num hospital público, seja numa clínica particular é muito raro atualmente ter um conhecimento integral da pessoa doente, uma vez que o enfermo é reconhecido por muita gente e não é conhecida por nenhuma gente.
A perspectiva da Igreja Católica da totalidade do ser humano, é procurar realmente o serviço da pessoa, da sua dignidade, daquilo que ela possui de mais transcendente e único: a sua santificação pessoal e a sua missão dentro da Igreja e do mundo.
A identificação com Cristo introduz duas atitudes bem características de um católico com os doentes: um respeito absoluto que merece todo enfermo e uma relação de diálogo sincero e caridoso.
Só assim é que a pessoa doente deixa de ser um anônimo sobre o qual se aplicam técnicas médicas e/ou pastorais, e passa a ser uma pessoa responsável dentro da sua doença e coparticipante da sua melhora como pessoa enquanto está enfermo, isto é, deve ser levada às condições de poder escolher, de poder decidir pessoalmente sobre o seu projeto de vida, que não se anula enquanto sofre, e não ser simples espectador e paciente de decisões e escolhas que outros tomaram por ele.
Para concluir o raciocínio iniciado com as palavras de Santo Agostinho deve-se afirmar que a Igreja Católica defendeu sempre, e não mudará nessa sua atitude, que as pessoas enfermas são sujeitos livres na sua doença ao invés de serem apenas objeto de tratamentos ou de ministérios.
A relação médico-paciente e a relação ministro enfermo devem converter-se num autêntico encontro de homens livres, onde existe uma confiança mútua e uma consciência. A delicadeza e a humanidade, o reconhecimento da pessoa como um ser humano merecedor de amor, de compreensão e de compaixão, devem ser complementados por uma causa superior às suas vidas limitadas.
Nesta altura convém penetrar no profundo sentido presente na citação da Carta Apostólica Salvificis doloris, n. 27 quando o Papa João Paulo II introduz esta causa ou ideal superior, que é a busca da transformação do sofrimento humano no espírito de sacrifício de Cristo.
Esta transformação parece difícil de realizar-se no mundo moderno porque este sofre de uma doença crônica, que se iniciou sob a capa da autonomia da razão humana e que se agravou com a emancipação e exaltação da liberdade humana. Os sinais e sintomas dessa enfermidade são cada vez mais evidentes para quem tem um bom olhar clínico: a desacralização do que é absoluto e a sacralização do que é relativo. Bento XVI antes de sua eleição denunciou a ditadura do relativismo com a conseqüente eclipse e esquecimento de Deus.
No campo das enfermidades isto se vê nitidamente: a vida humana e tudo que se relaciona com este dom divino (paternidade, maternidade, concepção, nascimento, morte, dor, deficiência,...) estão sendo catalogados como valores relativos até atingir o nível de descartável.
Recentemente num discurso à Cúria Romana (22-XII-2006) o Santo Padre Bento XVI fazia uma avaliação sintética de suas viagens apostólicas em 2006 e apontava os principais males que afligem o mundo e, sobretudo, a alma das pessoas que nele vivem. Num momento dessa sua análise fala da insegurança do homem de hoje a respeito do futuro: É admissível encaminhar alguém nesse futuro incerto? Definitivamente, ser homem é uma coisa boa?, e noutro trecho do seu discurso aponta a razão dessa insegurança: O grande problema do Ocidente é o esquecimento de Deus. É um esquecimento que se difunde. Todos os problemas particulares podem, em última instância, ser atribuídos a essa questão. (...) No excesso das coisas externas falta o núcleo que dá sentido a tudo e o reconduz à unidade. Falta até o fundamento da vida, a terra sobre a qual tudo isso pode estar e prosperar.
O sofrimento sem Deus, sem a contemplação de Cristo e de Cristo Crucificado, é o que amargura e enfraquece aqueles doentes que se tem diante dos olhos nos lares, nos hospitais, nas casas de repouso, etc... Os doentes, físicos e psíquicos, têm as suas etapas psicológicas e espirituais desenvolvendo-se, paralelamente, aos agentes ou causas das suas patologias e nem sempre é fácil reconhecê-las quando deles não se aproximam com o coração cheio de misericórdia e zelo ministerial.
Porém, acima desse reconhecimento, deve existir na Igreja Católica pessoas que se guiam por um convencimento inabalável. A pessoa humana é capax Dei, isto é, está ordenada por Deus e chamada, com a sua alma e o seu corpo, à bem-aventurança eterna (Catecismo da Igreja Católica, 358). Cada pessoa, mesmo no seu sofrimento, é capaz de encontrar-se com o Cristo do Tabor quando está com o Cristo do Calvário.
Isto é o que pretendia dizer-nos o saudoso Papa João Paulo II na sua Carta Salvifiis doloris, n. 27 o espírito de sacrifício de Cristo tem o seu porquê, o seu sentido redentor, transformador, santificador, e é com este espírito que a Igreja pretende abrir o espírito, a alma dos enfermos que serve com o seu ministério.
A dor transforma as almas humanas, confere-lhe a força da Redenção, quando um católico sabe conduzir os enfermos pelos caminhos da sua santificação e da sua missão eclesial e social. Para enfrentar-se e transformar-se com as doenças é preciso procurar, através delas, alguma coisa que não se identifique com o sofrimento, ou seja, algo que as transcenda: a causa pela qual se sofre. O sentido pleno do sofrimento do doente é o sacrifício, o sacrum facere, o surgimento do sagrado, do permanente, do absoluto, no meio do relativo, o transitório, que pretende estabelecer-se através dessa ditadura do relativismo.
O motivo e a finalidade redentores devem ser dados por qualquer batizado que sente-se responsável por lembrar Deus num mundo secularizado e desacralizado.
Talvez seja este o sentido último daquelas palavras de Dostoievsky: Temo apenas uma coisa: não ser digno da minha dor. Esta é uma grande verdade que nos faz pensar em Deus: só o sacrifício de Cristo, ao qual se unem, livremente, as dores e sofrimentos humanos, é capaz de revelar a altura, a largura, a profundidade, a grandeza de uma vida interior pessoal.
Se a vida tem uma dimensão e um sentido sagrado, também a dor e o sofrimento de um enfermo necessariamente o tem. O modo como uma pessoa relaciona-se com a sua doença, considerando-a como um sacrifício agradável a Deus, - tome a sua cruz de cada dia e siga-me, disse Jesus Cristo ao jovem rico abre-lhe todo um mundo de possibilidades de transformar a vida em algo de valioso e compreensível.
A doença, portanto, é dada ao ser humano como um trabalho de Deus e cada enfermo se bem orientado encontra-se com a responsabilidade do que fazer com tal labor. Se ele não é livre para escolher a doença, é totalmente livre para escolher qual será a sua atitude diante dela.
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