e o sentido para a sua existência.
5º DOMINGO DO TEMPO COMUM-Ano B
Qual a “posição” de Deus face aos dramas que marcam a nossa existência?
A liturgia do 5º Domingo do Tempo Comum reflete sobre estas questões fundamentais.
Garante-nos que o projeto de Deus para o homem não é um projeto de morte, mas é um projeto de vida verdadeira, de felicidade sem fim.
Na primeira leitura, um crente chamado Job comenta, com amargura e desilusão, o fato de a sua vida estar marcada por um sofrimento atroz e de Deus parecer ausente e indiferente face ao desespero em que a sua existência decorre… Apesar disso, é a Deus que Job se dirige, pois sabe que Deus é a sua única esperança e que fora d’Ele não há possibilidade de salvação.
No Evangelho manifesta-se a eterna preocupação de Deus com a felicidade dos seus filhos. Na ação libertadora de Jesus em favor dos homens, começa a manifestar-se esse mundo novo sem sofrimento, sem opressão, sem exclusão que Deus sonhou para os homens.
O texto sugere, ainda, que a ação de Jesus tem de ser continuada pelos seus discípulos.
A segunda leitura sublinha, especialmente, a obrigação que os discípulos de Jesus assumiram no sentido de testemunhar diante de todos os homens a proposta libertadora de Jesus. Na sua ação e no seu testemunho, os discípulos de Jesus não podem ser guiados por interesses pessoais, mas sim pelo amor a Deus, ao Evangelho e aos irmãos.
LEITURA I – Job 7,1-4.6-7
O Livro de Job é um clássico da literatura universal. Além de uma extraordinária beleza literária, este livro apresenta uma bem elaborada reflexão sobre algumas das grandes questões que o homem de todos os tempos coloca a si próprio: qual o sentido da vida? Qual a situação do homem diante de Deus? Qual o papel de Deus na vida e nos dramas do homem? Qual o sentido do sofrimento?
Job, o herói desta história, é apresentado como um homem piedoso, bom, generoso e cheio de “temor de Deus”. Possuía muitos bens e uma família numerosa… Mas, repentinamente, viu-se privado de todos os seus bens, perdeu a família e foi atingido por uma grave doença.
A história dos dramas de Job serve para introduzir uma reflexão sobre um dogma intocável da fé israelita: o dogma da retribuição. Para a catequese tradicional de Israel, a atitude de Deus em relação aos homens estava perfeitamente definida: Jahwéh recompensava os bons pelas suas boas obras e os maus recebiam sempre um castigo exemplar pelas injustiças e arbitrariedades que praticavam. A justiça de Deus – realizada sempre nesta terra – era linear, previsível, lógica, imutável. Jahwéh é, de acordo com esta catequese, um Deus definido, previsível, que Se limita a fazer a contabilidade das acções boas e das acções más do homem e a pagar-lhe em consequência.
No entanto, a vida punha em causa esta visão “oficial” de Deus e da sua acção na vida do homem. Constatava-se, com alguma frequência, que os maus possuíam bens em abundância e viviam vidas longas e felizes, enquanto que os justos eram pobres e sofriam por causa da injustiça e da violência dos poderosos. O dogma acabava, sobretudo, por ser totalmente posto em causa pelo problema do sofrimento do inocente: se um homem bom, piedoso, que teme o Senhor e que vive na observância dos mandamentos sofre, como explicar esse sofrimento?
O Livro de Job reflecte, precisamente, sobre esta questão. O herói (Job) discorda da teologia tradicional (no livro, apresentada por quatro amigos, que procuram explicar a Job que o seu sofrimento tem de ser o resultado lógico das suas faltas) e, a partir da sua própria experiência, denuncia uma fé instalada em preconceitos e em teorias abstractas que não tem nada a ver com a vida. Ele não aceita as falsas imagens de Deus fabricadas pelos teólogos profissionais, para quem Deus não passa de um comerciante que paga conforme a qualidade da mercadoria que recebe…
Como não pode aceitar esse deus falso, Job parte em busca do verdadeiro rosto de Deus. Numa busca apaixonada, emotiva, dramática, veemente, temperada pelo sofrimento, marcada pela rebeldia e, às vezes, pela revolta, Job chega ao “face a face” com Deus. Descobre um Deus onipotente, desconcertante, incompreensível, que ultrapassa infinitamente as lógicas humanas; mas descobre, também, um Deus que ama com amor de Pai cada uma das suas criaturas. Job reconhece, então, a sua pequenez e finitude, a sua incapacidade para compreender os projectos de Deus. Reconhece que ele não pode julgar Deus, nem entendê-l’O à luz da lógica dos homens. A Job, o homem finito e limitado, só resta uma coisa: entregar-se totalmente nas mãos desse Deus, incompreensível mas cheio de amor, e confiar plenamente n’Ele. E é isso que Job faz, finalmente.
O nosso texto integra o corpo central do livro. Entre 3,1 e 31,40, o autor apresenta, em forma de poesia, um diálogo entre Job (o crente inconformado, polémico, contestatário) e os amigos (os defensores da teologia e da catequese tradicionais). Nesse diálogo, Job vai desfazendo os argumentos da catequese oficial de Israel; e vai, também, derramando a sua insatisfação e revolta, num desafio a esse deus falso que os amigos lhe apresentam e que Job se recusa a aceitar.
O texto que nos é hoje proposto apresenta-se como uma reflexão do próprio Job sobre o sentido da sua vida.
Job começa por tecer considerações de caráter geral sobre a vida do homem na terra. O quadro apresentado é muito negativo… Para mostrar como a vida é dura, triste e dolorosa, ele utiliza três exemplos (vers. 1-2).
O primeiro exemplo é o da vida do soldado, condenado a uma existência de luta, de risco e de sujeição.
O segundo exemplo é o do escravo, condenado a uma vida de trabalho, de tortura e de maus tratos (só os breves momentos de descanso, à sombra, lhe dão algum alívio).
O terceiro exemplo é o do trabalhador assalariado, condenado a trabalhar duramente de sol a sol (embora receba a recompensa de um salário). Estes são, na época, os três “estados” considerados mais penosos e miseráveis da vida do homem.
No entanto, Job considera que a sua situação pessoal ainda é mais terrível. A dor que enche a sua existência fatiga mais do que o trabalho do assalariado; a sua infelicidade é mais dolorosa do que a vida de luta e de risco do soldado; o seu desespero é mais pesado do que a sujeição do escravo. O sofrimento de Job não lhe dá descanso, nem de noite nem de dia, e a sua desilusão não é atenuada (como no caso do trabalhador) com a esperança de uma recompensa (vers. 3-4. 6).
Depois de traçar o quadro da sua triste existência, Job dirige-se directamente a Deus (vers. 7 e seguintes) e pede-lhe que “recorde” (isto é, que tenha em consideração) a triste situação do seu servo.
O texto que a liturgia nos propõe termina aqui… No entanto, na “oração” original, Job continua a expor a Deus a sua triste situação (cf. Job 7,7-21). A oração de Job está carregada de desespero, de amargura e de revolta contra esse Deus incompreensível e prepotente que Se recusa a pôr um fim ao drama do seu amigo Job. O grito de revolta de Job brota de um coração dolorido e sem esperança e é a expressão da angústia de um homem que, na sua miséria, se sente injustiçado e condenado pelo próprio Deus; mas é também o grito do crente que sabe que só em Deus pode encontrar a esperança e o sentido para a sua existência.
ATUALIZAÇÃO
• O sofrimento – sobretudo o sofrimento do inocente – é, talvez, o drama mais inexplicável que atinge o homem ao longo da sua caminhada pela história. Que razões há para o sofrimento de uma criança ou de uma pessoa boa e justa? Porque é que algumas vidas estão marcadas por um sofrimento atroz e sem esperança? Como é que um Deus bom, cheio de amor, preocupado com a felicidade dos seus filhos, Se situa face ao drama do sofrimento humano? A única resposta honesta é dizer que não temos uma resposta clara e definitiva para esta questão. O “sábio” autor do livro de Job lembra-nos, contudo, a nossa pequenez, os nossos limites, a nossa finitude, a nossa incapacidade para entender os mistérios de Deus e para compreender os caminhos por onde se desenrolam os projectos de Deus. De uma coisa podemos estar certos: Deus ama-nos com amor de pai e de mãe e quer conduzir-nos ao encontro da vida verdadeira e definitiva, da felicidade sem fim… Talvez nem sempre sejamos capazes de entender os caminhos de Deus e a sua lógica… Mas, mesmo quando as coisas não fazem sentido do ponto de vista da nossa humana lógica, resta-nos confiar no amor e na bondade do nosso Deus e entregarmo-nos confiadamente nas suas mãos.
• Ao longo do livro de Job, multiplicam-se os desabafos magoados de um homem a quem o sofrimento tornou duro, exigente, amargo, agressivo, inconformado, revoltado até. No entanto, Deus nunca condena o seu amigo Job pela violência das suas palavras e das suas exigências… Deus sabe que as vicissitudes da vida podem levar o homem ao desespero; por isso, entende o seu drama e não leva demasiado a sério as suas expressões menos próprias e menos respeitosas. A atitude compreensiva e tolerante de Deus convida-nos a uma atitude semelhante face aos lamentos de revolta e de incompreensão vindos do coração daqueles irmãos que a vida maltratou… Que ressonância tem no nosso coração o lamento sentido dos nossos irmãos, mesmo quando esse lamento assume expressões mais contundentes e mais chocantes?
• Job é, também, o crente honesto e livre, que não aceita certas imagens pré-fabricadas de Deus, apresentadas pelos profissionais do sagrado. Recusa-se a acreditar num Deus construído à imagem dos esquemas mentais do homem, que funciona de acordo com a lógica humana da recompensa e do castigo, que Se limita a fazer a contabilidade do bem e do mal do homem e a responder com a mesma lógica. Com coragem, correndo o risco de não ser compreendido, Job recusa esse Deus e parte à procura do verdadeiro rosto de Deus – esse rosto que não se descobre nos livros ou nas discussões teológicas abstractas, mas apenas no encontro “face a face”, na aventura da procura arriscada, na novidade infinita do mistério. É esse mesmo percurso que Job, o protótipo do verdadeiro crente, nos convida a percorrer.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 146 (147)
Refrão: Louvai o Senhor, que salva os corações atribulados.
Louvai o Senhor, porque é bom cantar,
é agradável e justo celebrar o seu louvor.
O Senhor edificou Jerusalém,
congregou os dispersos de Israel.
Sarou os corações dilacerados
e ligou as suas feridas.
Fixou o número das estrelas
e deu a cada uma o seu nome.
Grande é o nosso Deus e todo-poderoso,
é sem limites a sua sabedoria.
O Senhor conforta os humildes
e abate os ímpios até ao chão.
LEITURA II – 1 Cor 9,16-19.22-23
Um dos sérios problemas que se punham aos cristãos de Corinto (uma comunidade jovem, viva e entusiasta, mas com as suas dificuldades próprias – dificuldades que resultavam, em parte, de estar inserida num mundo animado por princípios muito diferentes daqueles que estão na origem da mensagem cristã) era o problema de comer ou não comer a carne imolada aos ídolos.
No mundo grego, os templos eram os principais matadouros de gado. Os animais eram oferecidos aos deuses e imolados nos templos. Uma parte do animal era queimada e outra parte pertencia aos sacerdotes. No entanto, havia sempre sobras, que o pessoal do templo comercializava. Essas sobras encontravam-se à venda nas bancas dos mercados, eram compradas pela população e entravam na cadeia alimentar. No entanto, tal situação não deixava de suscitar algumas questões aos cristãos: comprar essas carnes e comê-las – como toda a gente fazia – era, de alguma forma, comprometer-se com os cultos idolátricos. Isso era lícito? É essa questão que inquieta os cristãos de Corinto. A esta questão, Paulo responde em 1 Cor 8-10. Concretamente, a resposta aparece em vinte versículos (cf. 1 Cor 8,1-13 e 10,22-29): dado que os ídolos não são nada, comer dessa carne é indiferente; contudo, deve-se evitar escandalizar os mais débeis: se houver esse perigo, evite-se comer dessa carne, a fim de não faltar à caridade.
Contudo, Paulo vai mais além da questão concreta posta pelos coríntios e enuncia um princípio geral que vale para este caso e vale em qualquer outra situação: o que é fundamental não é o que eu tenho o direito de fazer (aqui, em concreto, comer da carne imolada aos ídolos), mas é que os meus comportamentos sejam guiados pelo amor aos irmãos… Ora, o amor pode, em certas circunstâncias, exigir que eu renuncie aos meus direitos e à minha liberdade, em benefício dos outros (cf. 1 Cor 8,9-13).
Depois do enunciado geral, Paulo desce a exemplos e a considerações concretas… Ele próprio renunciou muitas vezes aos seus direitos, por causa do amor aos irmãos. Ele foi escolhido por Deus para ser apóstolo e, como apóstolo, podia reivindicar certos direitos e viver à custa do Evangelho… Mas nunca exigiu nada porque o que o preocupa, antes de mais, não são os seus próprios direitos, mas o benefício das comunidades e dos irmãos (cf. 1 Cor 9,1-15).
É precisamente aqui que entra o texto que nos é hoje proposto. Nele, Paulo explica que anuncia o Evangelho, não por interesse próprio, mas por interesse dos irmãos.
Paulo começa, precisamente, por declarar que o anúncio do Evangelho não é, para ele, um título de glória, mas uma obrigação que lhe foi imposta (vers. 16). É uma afirmação surpreendente… Então Paulo não anuncia o Evangelho livremente, mas por obrigação? Assim é, de facto. A partir do momento em que encontrou Cristo e escutou o seu desafio, Paulo foi convocado para evangelizar. Ele apaixonou-se por Cristo, pelo seu projecto de libertação em favor de todos os homens; e essa “paixão” obriga-o a dar testemunho da Boa Nova de Jesus. Quando alguém encontra Cristo e se torna discípulo, não pode ficar parado, mas tem de dar testemunho… A expressão “ai de mim se não anunciar o Evangelho” traduz esse imperativo que Paulo sente e que brota do seu amor a Cristo, ao Evangelho e aos homens. Na verdade, se Paulo evangelizasse por iniciativa própria, provavelmente buscaria a sua recompensa; mas uma vez que é o amor que o obriga a evangelizar, a recompensa não lhe parece importante (vers. 17-18).
O princípio fundamental que orienta a vida deste homem, apaixonado por Cristo e pelo Evangelho, não é a própria liberdade, a afirmação dos próprios direitos ou a defesa dos próprios interesses, mas o amor a Cristo e ao Evangelho. Por amor, ele renunciou aos seus direitos e fez-se “servo de todos” (vers. 19); por amor, ele renunciou aos seus próprios interesses e perspectivas pessoais e identificou-se com os fracos, fez-se “tudo para todos” (vers. 22-23). O que é fundamental, o que é decisivo, o que é absoluto na vida de Paulo é o amor. Evidentemente, sugere Paulo, deve ser esse o princípio fundamental que condiciona todas as opções e comportamentos dos cristãos.
ATUALIZAÇÃO
• Em geral, a nossa sociedade é muito sensível aos direitos individuais e valoriza muito a liberdade. Trata-se, sem dúvida, de uma das dimensões mais significativas e mais positivas da cultura do nosso tempo… Contudo, os próprios direitos ou a própria liberdade não são valores absolutos… Aliás, a afirmação intransigente dos próprios direitos e da própria liberdade pode resultar, por vezes, em prejuízo para os outros irmãos… Para o cristão, o valor realmente absoluto e ao qual tudo o resto se deve subordinar é o amor. O cristão sabe que, em certas circunstâncias, pode ser convidado a renunciar aos próprios direitos e à própria liberdade, porque a caridade ou o bem dos irmãos assim o exigem. O amor é, para o cristão, o “bem maior”, em vista do qual ele pode renunciar a “bens menores”. O discípulo de Jesus não pode impor os seus direitos a qualquer preço, sobretudo quando esse preço implica desprezar os irmãos.
• A expressão “ai de mim se não anunciar o Evangelho” traduz a atitude de quem descobriu Jesus Cristo e a sua proposta e sente a responsabilidade por passar essa proposta libertadora aos outros homens. Implica o dom de si, o esquecimento dos seus interesses e esquemas pessoais, para fazer da sua vida um dom a Cristo, ao Reino e aos outros irmãos. Que eco é que esta exigência encontra no nosso coração? O amor a Cristo e aos nossos irmãos sobrepõe-se aos nossos esquemas e programas pessoais e obriga-nos a sentirmo-nos comprometidos com o Evangelho e com o testemunho do Reino proposto por Jesus?
• O serviço do Evangelho e dos irmãos não pode ser, nunca, uma instalação numa vida fácil, descomprometida, cómoda, pouco exigente. Aquele que dedica a sua vida ao serviço do Reino não é um funcionário público, com um horário pouco exigente e um salário agradável, que cumpre as suas horas de serviço, que resolve os problemas “burocráticos” que a “profissão” exige e que se retira comodamente para o seu mundo isolado, em paz com a sua consciência… Mas é alguém que põe o amor aos irmãos e à comunidade acima de tudo, que está sempre disponível para servir, que é capaz de renunciar até aos seus tempos de descanso para acompanhar os irmãos, para os escutar, para os acolher. Para o discípulo de Jesus, o amor deve, sempre, estar acima dos próprios interesses e tornar-se dom, serviço, entrega total.
ALELUIA – Mt 8,17
Aleluia. Aleluia.
Cristo suportou as nossas enfermidades
e tomou sobre Si as nossas dores.
EVANGELHO – Mc 1,29-39
Estamos na primeira parte (cf. Mc 1,14-8,30) do Evangelho de Marcos. Aí, Jesus é apresentado pelo evangelista como o Messias que proclama essa realidade de um mundo novo – uma realidade que o próprio Jesus chama “Reino de Deus”.
Com o chamamento dos primeiros discípulos (cf. Mc 1,16-20), começa a constituir-se a comunidade do “Reino” – isto é, a comunidade dos que escutam a proposta de Jesus e aderem a essa proposta. Em seguida, Marcos mostra a realidade do “Reino” a actuar no mundo como salvação e libertação, nas palavras e nos gestos de Jesus: com a autoridade que Lhe vem do Pai (cf. Mc 1,21-22) e em comunhão total com o Pai, Jesus vence o mal e a dor que escravizam o homem e anuncia um mundo novo de liberdade e de vida plena.
A atuação de Jesus no sentido de fazer aparecer o “Reino” é uma actuação que não se limita ao espaço da sinagoga (cf. Mc 1,21-28); estende-se, também, a outros ambientes e âmbitos, porque o “Reino de Deus” que Jesus veio propor dirige-se ao homem em todas as suas dimensões e situações.
O Evangelho deste domingo situa-nos em Cafarnaum, uma cidade situada na margem norte do Lago de Tiberíades, na Galileia.
O texto que nos é proposto apresenta-nos Jesus a actuar no sentido de tornar o “Reino” uma realidade presente no meio dos homens. O evangelista propõe-nos dois quadros; eles apresentam realidades diversas mas complementares do “ministério de Jesus”.
O primeiro quadro (vers. 29-34) situa-nos na “casa de Pedro”. Na narração de Marcos – com uma forte preocupação catequética – o objectivo fundamental é sugerir que a missão de Jesus consiste em oferecer aos homens a vida nova, a vida definitiva.
No primeiro momento, Jesus cura a sogra de Pedro que “estava de cama com febre” (vers. 30). O episódio é descrito com simplicidade e sobriedade, sem gestos teatrais desnecessários. Três pormenores sobressaem na descrição (vers. 31). O primeiro pormenor significativo é a indicação de que Jesus “aproximou-Se” da sogra de Pedro. Naturalmente, a iniciativa de Se aproximar de quem está prisioneiro do sofrimento, da doença, da opressão, é sempre de Jesus. Jesus toma a iniciativa, pois a missão que recebeu do Pai consiste em realizar a libertação do homem de tudo aquilo que o faz sofrer e lhe rouba a vida. O segundo pormenor importante aparece na indicação de que Jesus tomou a doente pela mão e “levantou-a”. O verbo utilizado pelo evangelista (o verbo grego “egueirô” – “levantar”) aparece frequentemente em contextos de “ressurreição” (cf. Mc 5,41;6,14.16;9,27;12,26;14,28;16,6). A mulher está prostrada pelo sofrimento que lhe rouba a vida; mas o contacto com Jesus devolve-lhe a vida e equivale a uma ressurreição. O terceiro pormenor significativo é a indicação de que a mulher “começou a servi-los”. O efeito imediato do contacto com Jesus e da experiência da vida que brota d’Ele é a actividade que se concretiza no serviço dos irmãos.
Num segundo momento, o quadro apresenta-nos “a cidade inteira” reunida diante da porta da casa de Pedro. “Jesus” – diz Marcos – “curou muitas pessoas que eram atormentadas por várias doenças e expulsou muitos demónios” (vers. 32-34). Os enfermos e os possessos do demónio representam, aqui, todos aqueles que estão privados de vida, que estão prisioneiros do sofrimento, da injustiça, do egoísmo, do pecado. O evangelista convida-nos a ver em Jesus Aquele que tem poder para libertar o homem das suas misérias mais profundas e para lhe oferecer uma vida nova, uma vida livre e feliz.
A “casa de Simão Pedro” (onde Jesus actua e diante da qual se reúne “toda a cidade” à procura da libertação que Jesus veio oferecer) pode ser – nesta catequese que Marcos nos propõe – uma representação da Igreja. É aí que Jesus está oferecendo à “família de Pedro” (isto é, à sua comunidade) vida em abundância. Nesse espaço familiar, Jesus aproxima-Se dos homens, liberta-os do sofrimento que escraviza e aliena, dá-lhes vida definitiva e capacita-os para o serviço dos irmãos. A multidão que se reúne “à porta” da casa de Pedro representa, provavelmente, essa humanidade que busca a libertação e a vida verdadeira e que, dia a dia, olha ansiosamente para a “casa de Pedro” (a Igreja) à procura de Jesus e da sua proposta libertadora.
No segundo quadro (vers. 35-38), Marcos apresenta-nos Jesus retirado num lugar solitário, em oração. A oração faz parte do ministério de Jesus. Está na agenda da sua actividade e dos seus compromissos. É significativo que a actividade de Jesus termine na oração e que a actividade de Jesus em favor das multidões parta, de novo, da oração. A oração é, para Jesus, o cume e a fonte da ação.
Dessa forma, a oração aparece, também, como condição para o surgimento do “Reino”. É na oração que Jesus encontra a motivação para a sua acção em prol do “Reino”; é na oração que Jesus encontra a força para se libertar da tentação da popularidade fácil e para centrar, de novo, a sua atenção em Deus e nos seus projectos. O encontro a sós com Deus não é uma alienação, uma fuga dos problemas do mundo, mas é um momento de encontro com Deus, com os seus projetos e planos para o mundo, e um ponto de partida para o compromisso com a transformação do mundo. O encontro pessoal com Deus significa uma paragem na actividade e um momento de tomada de consciência daquilo que Deus quer e do compromisso que Deus pede aos seus enviados.
O nosso texto termina com uma espécie de resumo, no qual se explicita o sentido do ministério de Jesus: do seu encontro com o Pai, brota uma vontade renovada de concretizar o projecto de Deus e de actuar no meio dos homens a fim de lhes oferecer a libertação e a vida definitiva. Por isso, quando Jesus reencontra os discípulos, dispõe-se a palmilhar “toda a Galileia, pregando nas sinagogas e expulsando os demónios” (vers. 39).
No texto que nos é proposto neste domingo, os “milagres” de Jesus ocupam um espaço significativo. É preciso ver esses gestos de Jesus, não como gestos espectaculares, destinados a impressionar as multidões, mas como “sinais do Reino”. São gestos que anunciam a irrupção, nesta terra, desse mundo novo, sem exclusão, sem sofrimento, sem maldição, onde todos – e de uma forma especial os pobres e marginalizados – têm a possibilidade de ser felizes. Anunciam que Deus quer criar um mundo novo, onde não há impuros, nem proscritos, nem condenados; anunciam uma nova era, de homens novos, vivendo a plenitude da vida e da felicidade. É isso que Jesus veio fazer, e é essa a missão que os discípulos de Jesus devem procurar concretizar na terra.
ATUALIZAÇÃO
• As ações de Jesus em favor dos homens que o Evangelho deste domingo nos apresenta mostram a eterna preocupação de Deus com a vida e a felicidade dos seus filhos. O projeto de Deus para os homens e para o mundo não é um projecto de morte, mas de vida; o objectivo de Deus é conduzir os homens ao encontro desse mundo novo (o “Reino de Deus”) de onde estão ausentes o sofrimento, a maldição e a exclusão, e onde cada pessoa tem acesso à vida verdadeira, à felicidade definitiva, à salvação. Talvez nem sempre entendamos o sentido do sofrimento que nos espera em cada esquina da vida; talvez nem sempre sejam claros, para nós, os caminhos por onde se desenrolam os projectos de Deus… Mas Jesus veio garantir-nos absolutamente o empenho de Deus na felicidade e na libertação do homem. Resta-nos confiar em Deus e entregarmo-nos ao seu amor.
• O encontro com Jesus e com o “Reino” é sempre uma experiência libertadora. Aceitar o convite de Jesus para O seguir e para se tornar “discípulo” significa a ruptura com as cadeias de egoísmo, de orgulho, de comodismo, de auto-suficiência, de injustiça, de pecado que impedem a nossa felicidade e que geram sofrimento, opressão e morte nas nossas vidas e nas vidas dos nossos irmãos. Quem se encontra com Jesus, escuta e acolhe a sua mensagem e adere ao “Reino”, assume o compromisso de conduzir a sua vida pelos valores do Evangelho e passa a viver no amor, no perdão, na tolerância, no serviço aos irmãos. É – na perspectiva da catequese que o Evangelho de hoje nos apresenta – um “levantar-se”, um ressuscitar para a vida nova e eterna. O meu encontro com Jesus constituiu, verdadeiramente, uma experiência de libertação e levou-me a optar pelos valores do Evangelho?
• A história da sogra de Pedro que, depois do encontro com Jesus, “começou a servir” os que estavam na casa, lembra-nos que do encontro libertador com Jesus deve resultar o compromisso com a libertação dos nossos irmãos. Quem encontra Jesus e aceita inserir-se na dinâmica do “Reino”, compromete-se com a transformação do mundo… Compromete-se a realizar, em favor dos irmãos, os mesmos “milagres” de Jesus e a levar vida, paz e esperança aos doentes, aos marginalizados, aos oprimidos, aos injustiçados, aos perseguidos, aos que sofrem. Os meus gestos são sinais da vida de Deus (“milagres”) para os irmãos que caminham ao meu lado?
• Na multidão que se concentra à porta da “casa de Pedro” podemos ver essa humanidade que anseia pela sua libertação e que grita, dia a dia, a sua frustração pela guerra, pela violência, pela injustiça, pela miséria, pela exclusão, pela marginalização, pela falta de amor… A Igreja de Jesus Cristo (a “casa de Pedro”) tem uma proposta libertadora que vem do próprio Jesus e que deve ser oferecida a todos estes irmãos que vivem prisioneiros do sofrimento… O que é que nós, discípulos de Jesus, temos feito no sentido de oferecer a proposta libertadora de Jesus aos nossos irmãos oprimidos? Ao olhar para a Igreja de Jesus, eles encontram solidariedade, ajuda, fraternidade, preocupação real com os seus dramas e misérias, ou apenas discursos teológicos abstractos e virados para o céu? Os nossos irmãos idosos, doentes, marginalizados, esquecidos encontram nos nossos gestos o amor libertador de Jesus que dá esperança e que aponta no sentido de um mundo novo, ou encontram egoísmo, indiferença, marginalização?
• O exemplo de Jesus mostra que o aparecimento do “Reino de Deus” está ligado a uma vida de comunhão e de diálogo com Deus. Rezar não é fugir do mundo ou alienar-se dos problemas do mundo e dos dramas dos homens… Mas é uma tomada de consciência dos projectos de Deus para o mundo e um ponto de partida para o compromisso com o “Reino”. Só na comunhão e no diálogo íntimo com Deus percebemos os seus projectos e recebemos a força de Deus para nos empenharmos na transformação do mundo. É preciso, portanto, que o discípulo encontre espaço, na sua vida, para a oração, para o diálogo com Deus.
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