«Ouçamos de coração tranqüilo a palavra de Deus. Meditemos como Deus, outrora, salvou o seu povo e como, na plenitude dos tempos, enviou Jesus Cristo, nosso Salvador. Oremos para que Deus realize esta obra pascal da nossa salvação, e seja consumada a redenção do mundo» (Admonição da Vigília Pascal).
A Liturgia da Igreja é um rio infinito, que nasce e corre abundante e ininterruptamente dessa fonte eterna, que é Deus. É em suas águas vivas e cristalinas, que o grande peregrino de todos os tempos, o homem, vem matar a sua sede de sentido, de liberdade e de felicidade.
Quem revelou « O mistério escondido desde toda a eternidade» (Ef 3,9), rasgou o silêncio e deu a verdade da Liturgia aos homens foi Deus, ao dar-lhes gratuita e generosamente o dom do seu Filho Unigênito, O seu Verbo eterno: Jesus Cristo. Jesus Cristo e a Liturgia, o Evento, o Sinal, o Dom excelso do Amor de Deus Pai oferecido a toda a humanidade.
A Liturgia é, pois, a celebração dos mistérios de Cristo no tempo. Ela nasce com Cristo gerado pelo Pai antes de todos os séculos; manifesta-se em Cristo, que por nós homens e para nossa salvação desceu dos céus e fez morada entre nós; e por Cristo torna-se perene ate a nossa participação final e gloriosa no Reino, na Casa do Pai.
É a comunhão com Jesus, o Cristo, a maneira mais intensa e profunda de escutar a Palavra viva de Deus. Por isso, é na Liturgia, de modo especial na celebração do mistério eucarístico, memorial perene da Páscoa do Senhor Jesus, o Vivente, que se realiza essa profunda e direta relação entre a Palavra escutada e o próprio Cristo, Palavra eterna do Pai e se da a comunhão com Ele.Toda a Liturgia enquanto culto da Igreja «no espírito e em verdade» é como vivência da fé e encontro com a Palavra de Deus vivo cuja escuta desabrocha sempre numa inten¬sidade de comunhão e de amor.
Nunca se escuta tanto a Palavra como quando nos unimos a Ele, e por Ele e com Ele a família a qual pertencemos e é o seu Corpo: a Igreja.
1. A LITURGIA: CELEBRACÃO DO MISTÉRIO DA SALVAÇÃO
Foi em Cristo que se realizou plena¬mente a nossa reconciliação com Deus Pai e se nos deu a plenitude do culto divino. A «obra da Redenção humana e da perfeita glorificação de Deus, as quais se referiam as maravilhas por Ele operadas em favor do povo da Antiga Aliança, realizou-a Cristo Senhor principalmente pelo mistério pascal da sua bem-aventurada Paixão, Ressurreição de entre os mortos e gloriosa Ascensão, mistério pelo qual "morrendo destruiu a nossa morte e ressuscitando restaurou a vida".Com efeito, do lado de Cristo adormecido na cruz nasceu o sacramento admirável da Igreja inteira» (SC 5).No Novo Testamento, a palavra "Liturgia" é empregada para designar, não somente a celebração do culto divino, mas também o anúncio do Evangelho e a caridade em ação.
Para nós a Liturgia não é o conjunto de ritos edificantes ou de cerimônias solenes e misteriosas de sabor a transcendente; não é a expressão nem o resultado de uma religião indecifrável ou de um culto esotérico; nem pode ser a celebração vaga em nome do divino timbrada de emoções estéticas e individualistas ou subjetivas; não é um mero conjunto de normas e rubricas, leis e orientações da hierarquia para regerem o culto oficial da Igreja.
A Liturgia é, fundamentalmente, a celebração festiva da salvação em Jesus Cristo, realizada em família, no Corpo do Senhor Ressuscitado: a Igreja.
2. A MESA ONDE BRILHA E SE SABOREIA A PALAVRA
O Concílio Vaticano II ensinou-nos que, na Celebração da Liturgia, a Sagrada Escritura tem grande importância. Ela torna-se a mesa por excelência onde brilha e se saboreia a Palavra, que ali se nos comunica de maneira sublime exigindo a verdade da nossa resposta e comunhão (DV 21).
Não há celebração cristã sem proclamação da Palavra de Deus, a qual suscita a fé e motiva a prece e os gestos rituais dos sacramentos.De entre os vários modos de se ler a Palavra de Deus (exegese, estudo crítico, literário, teologia bíblica, meditação pessoal), a sua proclamação na Assembleia litúrgica é a forma própria e o lugar privilegiado onde essa mesma Palavra edifica a Igreja.
Na verdade, Deus não nos ofereceu um Livro para estudar: disse palavras, realizou maravilhas, enviou mensageiros ao seu Povo até Ele mesmo, quando chegou a plenitude dos tempos, se ter feito Palavra e acontecimento salvífico em Cristo.
Relação intrínseca entre Palavra e Liturgia
Para captarmos em profundidade as relações existentes entre a Palavra e a Liturgia devemos aprofundar e compreender a relação entre a Palavra e a História da Salvação/Revelação e como esta se atualiza no mistério litúrgico, conforme nos sugere a Constituição Dogmática Dei Verbum, (Nº. 2.)
Na Liturgia não proclamamos apenas uma Palavra, não fazemos simplesmente uma leitura da História da Salvação, mas a mesma atualiza-se: a Liturgia proclama e realiza os mistérios da salvação na vida dos crentes.
A Revelação não é apenas um discurso ou um dizer de Deus, pois toda a Sagrada Escritura testemunha, do Gênesis ao Apocalipse, que a Palavra de Deus é Evento: Deus diz e realiza.
Escritura e Liturgia nascem do mesmo evento salvífico: a Escritura interpreta-o, a Liturgia celebra-o e proclama-o. Poderíamos perguntar que seria do evento salvífico interpretado e transformado em palavra se não existisse espaço para o dialogo entre Deus e o seu povo; se ele não fosse celebrado pelo povo em Liturgia, tornando-se assim um verdadeiro memorial da ação de Deus na história... Certamente permaneceria apenas como crônica ou apontamento, mas perderia a força de um evento salvífico, celebrado por um povo reunido na fé, capaz de ler a sua história como História de Salvação.
Da Palavra nasce a Liturgia
Na origem de Israel como povo não se encontram as Escrituras, mas o Evento fundador, a experiência radical do Êxodo, através da qual Deus falou e se deu a conhecer a Si mesmo. Ele é o acontecimento da criação do povo de Deus é o acontecimento salvífico da sua libertação da escravidão do Egito.
Em primeiro lugar encontramos um acontecimento histórico vivido por mulheres e homens, que é a saída do Egito, a luta contra o Faraó, da qual o texto é testemunho (Êx 12,37-39).
Mas encontramos depois a interpretação deste acontecimento histórico e a sua colocação na História da Salvação: «Todos os filhos de Israel fizeram assim; fizeram exatamente como o Senhor tinha ordenado a Moisés e a Aarão.
Foi precisamente neste dia que o Senhor fez sair os filhos de Israel da terra do Egito, segundo os seus exércitos» (Ex 12,50-51).
No acontecimento, o povo reconhece a ação de Deus que o liberta e salva: primeiro a escuta da Sua palavra originou a fé em Javé; depois, a interpretação gerou uma palavra, um anúncio, que e o fundamento da fé e da adesão ao Senhor que os libertou do Egito; finalmente, esta Palavra, este testemunho e anúncio obrigam Israel a uma Celebração festiva sobre esse maravilhoso acontecimento, que manifestou a intervenção de Deus na sua história: Moisés e os Israelitas cantaram um canto ao Senhor, fazendo explodir o seu louvor, a confissão da sua fé e o seu agradecimento: «Minha força e o meu canto é o Senhor...» (Ex 15,1 ss.).
«Maria, a profetisa, irmã de Aarão, to¬mou nas mãos uma pandeireta e todas as mulheres saíram atrás dela com pandeiretas a dançar. E Maria entoou para eles: "Cantai ao Senhor, que é verdadeiramente grande: lançou no mar cavalo e cavaleiro"» (Ex 15,20-21).
Neste episódio fundador do povo de Is¬rael, vê-se com clareza os seguintes momen¬tos: 0 EVENTO histórico; A PALAVRA (interpretação do acontecimento);
A LITURGIA (celebração do evento)."Na Liturgia não fazemos simplesmente uma leitura da História da Salvação, mas a mesma atualiza-se na vida dos cristãos.”.
Podemos encontrar este mesmo esquema em muitos outros textos do Antigo e do Novo Testamento. Proponho a leitura do a¬contecimento fundador da fé cristã na Encarnação do Verbo de Deus e na sua Páscoa.
No capítulo 2 do Evangelho de Lucas é narrado o acontecimento histórico do nascimento de uma criança (Lc 2,6-7). A interpretação deste acontecimento, posta na boca do mensageiro divino, torna-se palavra para os pastores (Lc 2, 10-11).
A esta Revelação surge a resposta celebrativa dos coros celestes e dos pastores (Lc 2,3.14.20).No capitulo 24 encontramos o mesmo esquema na apresentação do evento central da Nova Aliança, a Páscoa do Senhor.
O evento é constituído pelo sepulcro vazio (Lc 24, 2); segue-se a interpretação do aconteci mento, que é proferida por dois homens de trajes resplandecentes (Lc 24, 5); por fim a celebração embrional deste acontecimento realizada pela comunidade dos discípulos reunida (Lc 24, 34-35).
Nestes textos, a Palavra de Deus tende por si mesma para a ação litúrgica; e a Li¬turgia, que nasce da Palavra, é ato no qual se revela e manifesta a presença divina. A Li¬turgia não é o fim da Palavra mas é o lugar, o espaço desta passagem misteriosa e profunda de Deus, no qual Ele se revela e dá a conhecer ao seu povo.
Da Liturgia é gerada a Palavra
O evento salvífico fundador conserva sempre o seu primado: a Páscoa para a Antiga Aliança, a Morte e Ressurreição de Jesus Cristo para a Nova Aliança.
É na Celebração que a Palavra é proclamada para criar e realizar a Aliança.Encontramos, por exemplo, a aplicação disto no capitulo 24 do Êxodo: todo o povo de Israel se purifica e reúne em assembleia no deserto diante do monte de Deus.
A este povo Deus concede a sua Lei e realiza-se a Aliança: «Tudo o que o Senhor disse nós o fare¬mos e obedeceremos» (v. 7). Neste episódio não é o acontecimento que gera a Palavra, mas a Palavra que, na celebração, se torna vida e expressão da Aliança: «Moisés tomou o sangue e aspergiu com ele o povo dizendo: "Eis o sangue da nova aliança que o Senhor concluiu convosco, mediante todas estas palavras"» (v. 8).
A Igreja nascente aprendeu no contexto litúrgico a acolher a radicalidade da Palavra do Senhor, a receber o seu "Corpo e Sangue", a tudo realizar em "seu Nome" (ver Lc 24, 27.30). As palavras e os gestos de Jesus aparecem intrinsecamente unidos na Celebração cristã da Nova Aliança.
3. A PALAVRA DE DEUS NO CONTEXTO CELEBRATIVO
Pela Palavra proclamada na celebração litúrgica, a Igreja faz memória dos mistérios de Cristo para a salvação do mundo. Na obediência a Palavra, a Igreja, celebrando os mistérios de Cristo, toma viva consciência de ser na história, sinal e instrumento de salvação para cada homem.
A Liturgia tem um modo próprio de ler e interpretar a Palavra de Deus, como leitura proclamada e interiorizada pela comuni¬dade reunida num ambiente de fé no qual se revive e atualiza a História da Salvação.
Do ponto de vista da dinâmica interna da Leitura, a proclamação da Palavra na Liturgia faz-se segundo as grandes linhas teológicas: é uma leitura efetuada como His¬tória da Salvação, como ação salvífica que tem em Cristo a chave da sua interpretação; cada fragmento, espécie de parcela de um grande mosaico é lido na perspectiva da totalidade da revelação de Deus; a Comunidade escuta a Palavra que se cumpre "hoje" na sua vida e atualiza-a.
Palavra proclamada na caminhada da Igreja
A Igreja é uma Assembleia que ouve religiosamente a Palavra de Deus e a proclama com confiança. Os destinatários desta proclamação não são indivíduos, mas o povo crente de Deus reunido e congregado no amor pelo Espírito Santo; povo de filhos que se converte, mediante a escuta e o acolhimento da Palavra na Liturgia.
Na Liturgia da Palavra, também hoje a assembleia dos fieis cristãos recebe de Deus, pela audição da fé, a palavra da aliança e deve responder a essa palavra com a mesma fé, para se tornar cada vez mais o povo da nova aliança. Aquilo que se deseja é que a liturgia da palavra seja sempre devidamente preparada e vivida.
Para ser bem compreendida, a palavra de Deus deve ser escutada e acolhida com espírito eclesial e cientes da sua unidade com o sacramento eucarístico.
A Palavra que anunciamos e ouvimos é o Verbo feito carne. O estudo da Palavra permite-nos valorizar, celebrar e viver melhor.Para isso é necessário ajudar os fiéis a valorizarem os tesouros da Sagrada Escritura presentes no Lecionário, por meio de iniciativas pastorais, de celebrações da Palavra e da leitura orante (lectio divina).
Além disso, não se esqueça de promover as formas de oração confirmadas pela Tradição: a Liturgia das Horas, as Vigílias, a oração dos salmos» (Bento XVI, Sacramentum Caritatis 45)
CONCLUSÃO
Na conclusão desta reflexão, parece-nos importante avivar as reflexões sugeridas no ultimo Sínodo dos Bispos sobre «A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja»:«os Padres Sinodais reafirmaram que a Liturgia constitui o lugar privilegiado, onde a Palavra de Deus se expressa plenamente, seja na celebração dos sacramentos, seja sobretudo na Eucaristia, na Liturgia das Horas e no Ano Litúrgico.
O mistério da salvação narrado na Sagrada Escritura, encontra na Liturgia o próprio lugar de anúncio, de escuta e de atuação. Por este motivo exige-se, por exemplo, que:
• O livro da Sagrada Escritura ocupe na igreja um lugar visível de honra;
• O Silêncio, depois das leituras e da homilia;
• Celebrações da Palavra centradas nas lei¬turas dominicais;
• As Leituras sejam proclamadas a partir dos Livros litúrgicos;
• Seja valorizado o Evangeliário;
Seja posto em evidência o papel dos servi¬dores da proclamação;
• Sejam formados adequadamente os Leitores; se proclame de forma clara com conhecimento da dinâmica e da comunicação a Palavra;
• Se faça utilização competente e eficaz dos meios acústicos;• Não sejam esquecidos as pessoas com incapacidade visual e auditiva;• nunca se substitua os textos sagrados por outros textos» (Propositio 14).
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