Como seus amores são belos,minha irmã, noiva minha. Seus amores são melhores do que o vinho, e mais fino que os outros aromas é o odor dos teus perfumes. Por isso Eu quero consumir meus dias, no seu amor! ══════ ღೋ♡✿♡ღೋ═══════

Ani Ledodi Vedodi Li


Mais do que qualquer outro motivo, esta é a razão pela qual quero fazer deste blog um caminho para amarmos mais a Deus, por isso seu nome: “Ani Ledodi Vedodi Li”

Para você entrar em nossos artigos click nas imagens nas laterais e encontrarás os lincks dos artigos postados.

Deus o Abençõe !

E que possas crescer com nossas postagens.

É algo louvável esconder o segredo dos Reis; mas há glória em publicar as obras de Deus!

A Igreja não tem pressa, porque ela possui a Eternidade. E se todas as outras instituições morrem nesta Terra, a Santa Igreja continua no Céu.

Não existem nem tempos nem lugares sem escolhas.

E eu sei quanto resisto a escolher-te.

"Quando sacralizamos alguém essa pessoa permanece viva para sempre!"

Sacralize cada instante de tua vida amando o Amado e no Amado os amados de Deus !


Pe.Emílio Carlos

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

A TEOLOGIA DA CRIAÇÃO



No princípio Deus criou o céu e a terra.
Há tempos, recebi o convite para assessorar um “curso de teologia popular”, em nível de extensão universitária, sobre Teologia da Criação, em uma comunidade católica de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul.
Meu ímpeto inicial foi dizer não, em função de minha agenda cheia de compromissos. Mas, como o assunto me fascina, dei uma remanejada nos meus programas e lá fui eu. Dali juntei subsídios que me permitiram, hoje, falar a um auditório tão seleto e espiritualizado como o de vocês, que tiveram a gentileza de me convidar para este evento.

O estudo da Criação, em especial a parte bíblico-teológica é apaixonante. Sua visão, de acordo com os avanços dessa ciência, hoje coloca no escaninho dos mitos muitas coisas que aprendemos em nossa longínqua catequese como realidade indiscutível.
Nos cursos de teologia que ministro por aí, eu sempre costumo dizer aos que me escutam que, entre dar aulas de teologia e ensinar na catequese primária tem uma distância comparável como aquela que separa o mingau apresentado ao nenê, da feijoada completa servida ao adulto. Para quem não está preparado não se pode dar “comida” pesada.
Assim funciona com o estudo bíblico e teológico, Tudo tem que ir num crescendo. É tudo como que uma progressão “digestiva”...

A releitura, indispensável ao método do estudo científico, nada mais é que atualizar os antigos textos, aqueles que já se leu tantas vezes, e que cada vez que se retorna à leitura, se descobre coisas novas e surpreendentes.
A esse ler de novo, iluminado por outros enfoques, mais enriquecidos, chama-se releitura. Para organizar o raciocínio, vamos tomar um exemplo bem prosaico.
Quando queremos abrir uma porta, simplesmente apanhamos a chave correspondente, e a tarefa se torna fácil. No estudo teológico e bíblico, a “chave hermenêutica” funciona como uma chave de porta, ou seja, é algo capaz de “abrir” com facilidade os mais intrincados meandros da nossa pesquisa, coisa que julgávamos difícil ou até intransponível.
Esta reflexão pretende fornecer, na medida do possível, e das limitações do autor, algumas chaves hermenêuticas, capazes, quem sabe, de facilitar a “abertura” da porta de algumas dúvidas quanto aos complicados textos de Gn 1-11.
O homem de hoje, adulto, instruído e especulativo, não se contenta com antigos axiomas e “verdades” religiosas, do tipo “é assim, e pronto!”.
As pessoas modernas, instruídas pela escolaridade, pela televisão e pela Internet, não se contentam mais com informações que eram verdades nas décadas passadas. Com o passar do tempo, as respostas foram se tornando insuficientes. Precisávamos de respostas que satisfizessem às especulações de nossa lógica.
O mesmo acontece com certas questões religiosas, de fundo histórico. Sem perder de vista sua fé batismal, o cristão atual busca compreender certos mistérios – entre eles o da Criação –, pelo menos até onde é possível.

Num desses cursos de Teologia Popular, participávamos, um frei capuchinho (doutor em teologia) e eu. Dias depois de encerrado o evento, constatamos que nossos pontos-de-vista, a respeito da visão mitológica de Gn 1–11 não caiu no agrado de algumas pessoas, que afirmaram: “o frei não entende de Bíblia e o teólogo não tem fé”. Às vezes as pessoas não abrem mão daquilo que aprenderam na catequese primária; isto dificulta qualquer tipo de aprendizado.
Mesmo sabendo que transita pelo terreno do mistério, ele procura chaves-de-leitura, alguma coisa que lhe abra as portas do obscuro, para a elaboração de uma exegese mais atualizada.
Nesse terreno, a releitura visa a atualização. Científica, às vezes, mas amparada na fé. Nunca devemos, portanto, perder de vista que, como diz São Paulo, “o projeto de Deus se realiza na fé”. O objetivo do biblista e do teólogo é atualizar a história escrita há milênios, adaptando a mensagem bíblica às buscas do homem moderno, sem perder de vista o foco dos artigos da fé cristã, nem o mistério maior que é a redenção, que o Pai propicia através de seu Filho.
Nós fomos criados escutando dizer que Deus fez um boneco de barro e, ao soprar em suas narinas, a argila virou carne, sangue, ossos e músculos, e assim surgiu o homem. Também nos disseram que Deus criou o mundo “em seis dias” porque tinha pressa de descansar no sétimo. Isto, para nós, alunos de oito, nove, dez anos, estudantes em colégios religiosos, era “artigo de fé”, e se alguém – nem precisava discordar – fizesse muitas perguntas a respeito, era visto como um “pequeno herege”, anatemizado, ameaçado – se não com a fogueira – pelo menos com uma boa “suspensão” das aulas e do jogo de futebol.

O aprendizado da Ciência Bíblica – na maioria dos círculos “oficiais”, religiosos e eclesiais – não avançou muito até hoje. Se em escolas e casas de formação, bem como entre os biblistas e teólogos independentes (judeus, protestantes e católicos), a pesquisa evoluiu no terreno científico, a catequese formal permaneceu – mesmo a endereçada a adultos – estagnada.

Quando se apresenta novas visões de Gn 1-11, seja da Criação, do paraíso, do dilúvio ou da torre de Babel, por exemplo, ou se fala em mitos mesopotâmicos que contam histórias semelhantes às da Bíblia, tem gente, nos auditórios, que fica chocada, contesta, quer sair, pede para descer, pois tais visões contrariam aquilo que escutaram da catequista Mariazinha ou do Padre Alfredo há sessenta anos (ou mais).
Aqui vamos efetuar o resgate dos aspectos mais profundos da leitura crítica da Criação, numa releitura de Gn 1-11 à luz da teologia moderna, fugindo de alguns clichês meio infantis dos antigos ensinamentos, coisa que para muitos significou mais tropeço que afirmação. Em alguns casos, o ouvinte vai notar que levantamos a questão, deixando pendente a resposta. Em certas ocasiões, a sabedoria do silêncio diz melhor que o açodamento de mil palavras.



O fato é que os textos compreendidos em Gn 1–11 podem ser vistos como uma coletânea mitológica. A Criação – e uma leitura objetiva do texto no-lo revela – não é o ponto central da fé de Israel. Sua fé e esperança repousam na libertação do Egito, núcleo fundante da raça, religião e cidadania dos judeus. O êxodo atinge seu ápice no dom da terra oferecida aos que vieram do Egito.

A história de Gn 1, com sua linguagem rebuscada e rica em centelhas de triunfalismo, foi escrita, sem dúvidas, pelos kōhen, sacerdotes judeus, no período compreendido entre o fim do exílio e a instalação do povo em Israel, quando do retorno da Babilônia. Nas terras do exílio, os dominadores buscavam inculcar nos exilados seus deuses (astros, forças da natureza, etc.) bem como seus costumes e valores morais discutíveis para a cultura religiosa dos judeus, e o povo corria o risco de perder sua identidade.

Em função disto, os kōhen procuravam um jeito de criar uma narrativa espetacular, capaz de reacender o zelo religioso do povo, elevando sua auto-estima sociopolítica, dando-lhe forças e esperança para a sobrevivência.

Enquanto os deuses caldeus eram o sol, a lua, a ventania, as árvores, etc., os sacerdotes hebreus cunharam a expressão “imagem e semelhança”, através da qual o povo trazia consigo, mesmo sem entender bem, a imagem e semelhança do Deus que o criou. Nessa imagem, o homem fica comprometido a criar vida, dar vida e zelar pela vida. Como dizem os mestres biblistas Storniolo e Balancin.

Se não podemos representar adequadamente a Deus, a representação mais próxima é a própria humanidade. Por outro lado, como imagem de Deus, o homem também é chamado à tarefa criadora e ordenadora da natureza, despertando tanto as próprias potencialidades como as da natureza exterior. Deus criou tudo voltado para a vida; a tarefa do homem é também preservar e criar mais vida.


Deste modo, como imagem de Deus, o homem se torna o “representante” do Criador junto à natureza. Ao criar, Deus se revela um verdadeiro poeta. Assim como aquele que faz versos vai agrupando as palavras com suas rimas e métricas, na busca de um sentido e de uma harmonia, ao criar o cosmos, a natureza e os seres vivos, ele demonstra sua arte e sua sabedoria. Aliás, no grego, o verbete poietés, tanto serve para designar um poeta como um criador ou um fabricante de arte. Ainda há outra coisa fantástica: nós dizemos que Deus criou o cosmos, não é assim? Pois sabem o que é cosmos? Tanto pode ser mundo, universo, boa ordem, como adorno, adereço, enfeite, coisa bem arranjada.

Daí, cosmético. Então, quando dizemos que o Criador fez surgir o cosmos, estamos dizendo que o poeta criou a beleza. É assim que se deve enxergar a Criação.


Igualmente a expressão elohim empregada em Gn 1 traz consigo uma conotação nitidamente poética. Nela, o hagiógrafo emprega um plural (o final im no-lo revela), característico das culturas politeístas do Oriente Médio. Ptah (Egito) e Enki (Suméria) são grafados no plural, como a expressar deuses, ou “um deus com o poder de muitos deuses”. Elohim deriva do El semita primitivo, que era o Deus-único, de Abraão, Isaac e Jacó.
Mesmo com a pobreza literária do autor (considerando-se que o texto teve sua redação final na volta do exílio, há mais de 2500 anos) é preciso enxergar a tentativa em relatar uma criação harmônica, equilibrada, aos pares, onde a luz forma um par com as trevas, alternando dia e noite. É assim que o autor explicitou a diferença entre as águas debaixo (mar, rios e lagos) com as de cima (chuvas).

Cria-se, pois, a idéia que a vida, tudo, vem de cima: a luz, a água, a chuva, a semente lançada à terra, a graça, o esperma, etc. Em seu aspecto geral, Gn 1-11 pervade o terreno da pré-história, mostrando as origens do mundo e da vida, conforme a visão – de certa forma limitada – do escritor, bem como se dispõe a desvendar um período da história da humanidade dominada por fragilidade e ambigüidade.
O conteúdo do livro tem o aspecto de uma verdadeira “colcha de retalhos”, formada por lendas, “causos”, historinhas mais ou menos desenvolvidas, genealogias – materiais diferentes, que foram alinhavados. É como se estivéssemos no porão, abrindo um velho baú, onde a família foi pouco a pouco guardando suas fotografias, objetos de estima, roupas antigas, etc.
O importante é sempre se perguntar qual o sentido daquela história e para quem ela fazia sentido. O livro do Gênesis, e em especial o texto compreendido entre 1-11 levou cerca de 1000 anos para adquirir a forma como nós o conhecemos hoje. De fato, Gn 1-11 cobre um extenso lapso de tempo, pois conta fatos desde a Criação do mundo (cerca de 5 bilhões de anos atrás), da vida microscópica (3 bilhões) e do homem (os primeiros vertebrados sugiram 750 mil anos atrás). Descobertas arqueológicas recentes (setembro de 2009) revelam a presença de Ardi, uma anciã peluda de 4,4 milhões de anos, na linha do australopiteco, como o mais antigo elo da misteriosa jornada dos hominídeos sobre a terra.

E certo que há 250.000 anos o homem europeu já vivia nas cavernas, sem que se possua um sistema de escrita que possa basear as pesquisas, desse e de outros eventos contemporâneos. Fica tudo nas mãos da arqueologia, que com seus métodos de inferência de datações é capaz de avaliar a ocorrência de fatos históricos.
Posteriormente, bem mais tarde, há outro registro histórico, comprovado pela arqueologia, há 6000 anos atrás (ou 4000 a.C.), no chamado período que a arqueologia chama de obeidiano, ocorreu uma grande enchente na Mesopotâmia, um provável “dilúvio”, quando muita gente morreu. No entanto, estudos recentes, como o de Ramat Rachel (Tel-Aviv, agosto de 2009), do qual participei, atestam, pela pesquisa arqueológica, que o dilúvio não foi total, mas ocorreu apenas em algumas regiões. O enfoque principal é que os bons são resgatados por Deus e os maus entregues à própria sorte.

Por isso que se chama o texto de Gn 1-11 de pré-história bíblica, por estar compreendido dentro do período ágrafo, numa época histórica sem escrita, onde apenas as tradições orais e algumas tentativas de criar um “banco de memória” através de desenhos no interior de cavernas, cacos de cerâmica, madeira e outros materiais, ajudam na identificação temporal.

A escrita, mais desenho (caracteres pictográficos) que escrita propriamente escrita, existe há 5000 anos.
A moderna arqueologia, como um “estudo sistemático dos restos materiais da vida humana já desaparecida”, se inter-relaciona com outras disciplinas científicas. Deste modo, os arqueólogos, para estabelecer a cronologia, costumam utilizar métodos de datação desenvolvidos por outras ciências: o sistema do carbono 14 (C-14 ou radiocarbono), pelos físicos nucleares; as técnicas de datação geológica, pelos geógrafos; e as técnicas de estudo dos restos da fauna, pelos paleontólogos.
Além disso, para reconstruir antigas formas de vida, os arqueólogos se valem de procedimentos próprios da história, sociologia, demografia, geografia, economia e ciências políticas. No contexto bíblico, ora em estudo, deparamo-nos com a narrativa (final do cap. 11) com nítidos traços míticos, de fulcro mesopotâmico, da descendência de Noé, a dispersão do povo de Babel, as toledoth (genealogias das famílias e dos patriarcas).

Acaba aí a pré-história, toda ela dentro do chamado período ágrafo. Logo após, (Gn 12-50) há uma cronologia, que começa com Abraão (Gn 12,1), entre 2000 e 1800 a.C. e vai até a morte de José, filho de Jacó, no século XIII a.C. O êxodo seria em 1250 a.C. Assim, Gn 1-11 não se refere tão-somente à pré-história de Israel, mas do Oriente Médio e de toda a humanidade.
A cosmogonia (kósmos, mundo + gonós, geração) que aparece em Gn 1, embora esteja presente em outros relatos do Oriente Médio, é a única na Bíblia, e reporta-se a fatos ocorridos a milhões de anos. Quem escreveu não viu, nem conviveu com quem tenha presenciado o início da Criação. A narração J (javista), contrariamente ao que se possa pensar, não é um relato criacional. Seu texto (Gn 2,4b-25) objetiva contar a origem do mal. O capítulo 2 foi, por assim dizer, redigido como uma “preparação” para o 3. Essa narrativa fica, pela peculiaridade do largo período que abrange, sempre dependente – mesmo que se queira insistir num enfoque exclusivamente místico – das descobertas das ciências.

Depois de vencer os babilônios em 538 a.C. Ciro, o persa, autoriza a volta dos judeus à Palestina. Os exilados repatriados têm muita coisa para reconstruir: a capital política (Jerusalém), a muralha (sinal de força) e o templo (sinal de adoração a Javé). Mas, antes disto, eles precisam de uma reforma de base, que lhes possibilite reconstruir sua identidade como povo escolhido.
A árdua tarefa desse šear (um “resto” que voltou) é resgatar sua crença religiosa, em cima, principalmente da Torá (a Lei) que vai organizar a vida da nação.

Para tanto, a tradição tem que estar toda ela assentada nos livros sagrados, cuja redação final começou nos últimos anos do exílio, e agora, pelas razões aludidas, urge completar. De olho nessa perspectiva, muitos biblistas contemporâneos vislumbraram a possibilidade de que essa “redação final” da Torá (o nosso Pentateuco), tenha ocorrido no período de influência de Esdras, entre 405 (séc. V) e 380 (séc. IV a.C.). Em Ne 8-9, lê-se que no século V a.C. durante “a festa dos tabernáculos”, Esdras mandou proclamar “o livro da Lei”.

Ora, se o livro foi proclamado numa cerimônia oficial, é porque se tratava do texto definitivo. A composição da Torá pode ter sido iniciada no tempo de Moisés e do êxodo (especialmente Ex, Lv e Nm), no século XIV-XIII e ter sido concluída 800 anos mais tarde, depois do exílio babilônico. A “bíblia” judaica difere da cristã em suas seções. Enquanto nossas edições têm Pentateuco, Históricos, Sapienciais e Proféticos, o judaísmo adota apenas três divisões: Torá (Lei), Nebiim (profetas) e Ketuvim (Escritos). Às questões do povo, sobre sua identidade judaica, “quem somos?”, “Deus ainda está com a gente?” vão ser respondidas pelos kōhen, os sacerdotes-teólogos, criadores da tradição P (Priest Kodex, Sacerdotal), que predominavam entre os repatriados. Como ensina J. Konings, “Foi nesse período que foi redigida a grande maioria dos livros, quando a religião do antigo Israel se transformou numa “religião do Livro Sagrado”, como é ainda hoje”.

No campo da inculturação, vale lembrar que em Gn 1-11 encontramos diferentes características e gêneros literários, mas em redação final a obra revela-se de um cunho eminentemente sapiencial que, como tal, não se limita à cultura da época, mas projeta o futuro. Ao povo egresso do exílio, cabia, em função da necessidade de uma restauração geral, uma releitura da Torá. Na Babilônia, o povo estivera submetido a um “bombardeio” ideológico e religioso, onde lhe eram impostas as crenças caldéias, como cosmogonias, mitologias, teogonias e teocrasias (fusões das divindades, metamorfoses das imagens, com fins de adaptar ritos e cultos). Alguns se mantiveram fiéis ao Deus-Javé, mas muitos se deixaram seduzir pelas divindades dos opressores.
Deste modo, modernamente se consegue divisar, como tarefa, quem sabe uma delas, da TC (Teologia da Criação) o ato de compreender a natureza como “criação”, mergulhada nos limitadores da finitude e da contingência, sem cair nos exageros maniqueístas, onde as “coisas” só podiam ser divinizadas ou demonizadas. Igualmente, outra tarefa que se nos surge, como característica da TC, é remeter-nos à compreensão da natureza como um “veículo de comunicação”, através do qual o Criador se comunica com as suas criaturas.
Consqüentemente a visão científica a respeito do mundo nos questiona: como foi criado? Quando foi criado? Embora tais perguntas tenham sua relevância particular, de outro lado a teologia indaga: por quem foi criado? Para que foi criado? Para quem foi criado? A tarefa, portanto, da TC é esmiuçar, até onde é possível, o simbolismo criacional, que gira em torno de alguns eixos intrigantes, como: a) o caos; b) o espírito de Deus pairava... c) Deus disse...; d) os seis dias... e) Adão e Eva; f) Caim e Abel; g) o dilúvio; h) a torre de Babel; etc.

Nessa viagem, entrelaçam-se algumas figuras literárias utilizadas nas ciências humanas, filosofia, antropologia, e especialmente na teologia, que precisam ser como que traduzidas, para uma compreensão adequada do texto em todas as suas nuanças.
a) o sim-bólico na língua grega, symbolikós, possui o mesmo sentido do português, ou seja, algo que opera por meio de símbolos; metafórico, alegórico; refere-se a uma idéia que agrega;
b) o dia-bólicodiabolikós retrata uma aversão; oposto ao simbólico, é a idéia que dispersa;
c) o mitono grego, mythos é “algo que dá o que pensar”; narrativa capaz de transmitir um sentido;
d) a metáforaé a faculdade de dizer uma coisa para significar algo diferente, mas com algum parentesco entre si; assemelha-se à parábola; meta + forá, no grego, quer dizer mudança de um sentido real para um figurado;
e) o pathostrata-se de toda a idéia, semelhante à dia-bólica, que distorce um raciocínio, refletindo uma realidade de forma sofista; sua finalidade é mais o complicatio que o explicatio; relata um estado agitado (patológico) da alma.

Mesmo que a maioria das novas teorias da exegese sobre Gn 1-11 estabeleça uma compatibilidade entre fé e Criação, é preciso nunca perder de vista que, à frente de todos os panos-de-fundo dos relatos tradicionais, há uma essência, na qual devemos crer.
Com a expansão da modernidade na exegese, corre-se o risco de infiltrações racionalistas no enunciado bíblico. Como ensina Ruiz de La Peña, “A criação é um artigo da fé cristã (ou seja, um mistério e não a ‘conclusão’ de um raciocínio metafísico, isto é pro-fano). Conseqüentemente, é preciso resistir à tentação de comprometer esse mistério de fé com uma determinada cosmovisão” Nessa forma de ver as coisas, há a necessidade de firmarmos a visão no fato principal e no fato acessório, como, por exemplo:

a) Deus cria...• fato principal: irrecorrível, indiscutível = matéria de fé;• fato acessório: como cria, quando cria, em quantos dias, tudo é matéria sujeita à interpretação e à crítica científica;
b) Deus salva...• fato principal: Deus salva os seus e deixa os infiéis entregues à própria sorte = matéria de fé;• fato acessório: houve ou não um “dilúvio”? durou 40 dias ou mais? Noé construiu uma “arca”? levou “x” casais de animais para lá?
Tal enfoque privilegia o reconhecimento da tarefa da TC como a de unir o princípio com o depois, este com o ainda, e todos com o futuro. Nesse particular, é imprescindível notar (e anunciar) que a grande tarefa da teologia é unir a Criação com a Redenção e com a Escatologia. É tarefa de TC publicizar essas realidades. No princípio, a criação está aberta para a história da salvação, mas ela não encontra aí seu sentido último. A criação do princípio aponta, para além da história da salvação, para a sua própria perfeição no Reino da glória. A alegria que não pôde ser vivida em plenitude no Éden, Deus irá torná-la realidade no Reino.
Nota-se a existência de um desejo generalizado, no sentido de que a narrativa da Criação (no nosso caso, a Teologia da Criação), assim como atuou junto ao povo que voltava do exílio, provocando um rearmamento da fé e da auto-estima nacional, também em nossas comunidades de hoje, seja capaz de despertar uma nova consciência e sobretudo um novo comprometimento. Corre-se o perigo de muita contemplação e pouca ação, conforme alerta o teólogo latino-americano Jon Sobrino: “Nós, teólogos, temos que afinar o instrumento: método hermenêutico, neste caso a busca de paradigmas. Mas, o importante é ‘o que fazemos com isso?’. O perigo seria, como disse com humor Karl Rahner a respeito de um colega: ‘Passam toda a vida afiando a faca, mas ainda não cortaram nada’”.

É missão do teólogo/biblista esclarecer, mostrar, fazer ver além das simples letras. É tarefa dos especialistas, igualmente, extrair o profano do mistério.

No trilhar os caminhos da TC é imperioso fazer ver as maravilhas de Deus, onde é preciso – para usar uma expressão de Santo Anselmo, “crer para compreender”, onde, pela metáfora (o pano-de-fundo) o crente compreende, e pela visão da essência ele crê. A fé faz ver hoje, elevando os olhos para vislumbrar o futuro, bem mais além. Nesse particular, nossa teologia precisa ser ao mesmo tempo, histórica e escatológica.

Ela é histórica à medida que nos revela que algo que acontece no tempo não é coisa fixa, mas vai acontecendo. A história é a Criação em andamento, e por isso – ao invés de certas tendências conservadoras, precisa ser estudada, preservada e debatida. A Teologia da Criação é escatológica à medida em que reflete uma nova criação. É o horizonte, promessa, sentido último das realidades que o Criador preparou e guardou para o ser humano. Essa escatologia é para onde converge a paisagem da Criação: novos céus e nova terra (cf. Ap 21,1); Jerusalém celeste (v.2). É a fé cristã apoiada na páscoa de Jesus Cristo. A metáfora dos “querubins à porta do paraíso” (Gn 3, 24) retrata o projeto de preservar aquelas delícias para o homem usá-las de novo.
A Teologia da Criação, por sua complexidade, revela-nos que somente pela fé é possível ao ser humano escutar nas Escrituras, o ressoar da Palavra viva do Criador, desde nosso primeiro momento humano. Essas “razões de fé” nos remetem a uma idéia de perenidade. Deus criou e continua criando, proporcionando à humanidade como que uma atualização, ou seja, uma nova Criação, sempre renovada.

Dentre tantas bibliografias a esse respeito, cabe destacar a chamada “tese de Gerhard von Rad”, que afirma que essa nova criação repousa em dois eixos:
• Antigo TestamentoO eixo central da Criação está no Êxodo, experiência histórica e fontal da libertação de Israel; essa páscoa retrata a passagem das trevas para a luz; do alagado para o a pé enxuto;

• Novo TestamentoJesus Cristo – a libertação definitiva – instaura (pelo batismo) a nova criação; é o “nascer do Alto” (cf. Jo 3,3) que Jesus menciona a Nicodemos. Nascer de novo, pelas alegorias neotestamentárias, é um dom. O desejo do Criador visa, por todo o sempre, uma “conversão” do coração do homem àquilo que se convencionou chamar de “projeto de Deus”, ou seja, uma estratégia, uma economia capaz de trazer o homem de volta ao estado inicial de inocência e de paraíso. Nesse projeto destacam-se vários fatores positivos, como libertação, resgate, perdão e salvação. A Criação é toda ela, uma obra trinitária, onde ocorre o concurso eterno dos Três Divinos. Nesse contexto, pode-se afirmar sem receio de erro, que o ato criador de Deus é dom, um fruto espontâneo de sua misericórdia. Tudo foi, como dizem, creatio causa sui, criado porque ele quis. Não foi induzido a nada. Criou porque quis. Podia não ter criado.
A tarefa, portanto, da TC é revelar a grandeza de Deus, sua generosidade e a perfeição das coisas/seres que ele criou. No tocante à visão literária de Gn 1, é interessante instrumentalizá-la com um enfoque sociopolítico. Nota-se que o texto final foi composto no século VII a.C. (período do exílio na Babilônia) sob a ótica do desterrado, oprimido e explorado, do sem-terra, vitimado pela truculência do imperialismo caldeu.
A doutrina da Criação do homem e do mundo levanta inúmeros problemas hermenêuticos, se considerada segundo a letra fria das Escrituras. A Igreja ensina que o Livro do Gênesis não tem, de modo algum, a intenção de fazer uma narrativa científica da Criação do cosmos, do homem e da mulher. O autor do livro tomou por empréstimo gêneros e formas literárias que estavam adaptadas à cultura e à mentalidade da época. O modo como Deus teria realizado a criação não faz parte da mensagem da fé. A visão do mundo utilizada pelas narrativas da criação é própria da cultura daquele tempo. Retemos a mensagem da fé e deixamos de lado uma visão do mundo e do homem já superada pela ciência. É de capital importância compreender a mensagem de fé dos textos bíblicos.

Torna-se imperioso enxergar a obra de Deus, na sua essência. O resto é circunstância, com que o autor socorre-se para emoldurar a essência de sua narrativa. O universo criado é um hino ao artista, ao poeta que o criou. Na criação, cenário de sua existência cotidiana, o homem encontra, a cada instante, o sinal revelador de Deus que cria; está seguro de uma atividade divina, mais acessível neste domínio do que em outros, e encontra um motivo permanente de louvor. Como os hebreus no deserto, cabe ao povo fiel de hoje, e é por essa atividade mnemônica que a Igreja postula, recordar o que Deus fez/faz pela Criação. Recordar é viver, dizem; mais que isto: recordar é trazer de volta ao coração, é louvar e agradecer. Recordar aviva a fé. Recordar é “voltar a passar pelo coração”.

Teria Deus, de fato, criado o mundo e os seres vivos, em seis dias e no sétimo descansado? Seis dias é pouco? É muito? Não poderia Deus, num estalar de Deus completar toda a Criação? A ordenação da Criação em seis dias, se nos parece uma preparação para o descanso sabático. A narrativa pode ter seu embasamento numa “questão trabalhista”, onde o direito ao descanso, negado ao povo judeu durante o cativeiro babilônico, iria surgir como uma imposição religiosa: “nosso Deus descansou após seis dias; nós também temos que descansar!”. Pode ter sido um protesto contra a exploração. Hoje são muitos os biblistas e especialistas, que afastando a idéia da Criação em seis dias de vinte e quatro horas, desposa essa teoria.


O hexaemeron, ou “seis dia da Criação”, é uma figura metafórica, aonde tudo vai num crescendo, como o fixar os alicerces, erguer as paredes, colocar o reboco (6 dias) à espera da conclusão, o telhado (o sábado). Tudo fica enfeixado por uma imagem simbólica, como uma grande pirâmide que se vai sedimentando aos poucos. Começa pela base (material mais grosseiro, coisas primárias), até o cume (material mais sofisticado, os grandes animais e o homem).
Nós sabemos que o mundo (primeiro dia), foi criado há cerca de mais ou menos seis bilhões de anos atrás (o primeiro dia da Criação). Há quem fale até em 12 bilhões. As bibliografias não apresentam datas exatas, mas tudo gira em torno dessa cronologia. No primeiro momento, o clima seria inadequado, pela quantidade de gases que envolviam a atmosfera, tornando o ar irrespirável. A vida, segundo os biólogos, surgiu, em forma primária de bactérias, há três bilhões de anos. Nessa seqüência, surgem os vertebrados, os seres primários e o homem, mais ou menos como é hoje, há 4 milhões de anos (o sexto dia).
Ora, cotejando essas duas cronologias, há que se chegar a algumas conclusões, mais ou menos lógicas: a) a terra foi criada há cerca de 12 bilhões de anos; b) o homem foi criado há “apenas” 4 milhões de anos. Logo, chegamos à conclusão que entre a) e b) existe um lapso de tempo um pouco maior que cinco dias. Tal constatação pode chocar certas pessoas, aquelas cuja formação religiosa continua iluminada pela tênue luz da catequese pré-eucarística. Mas é bom que se note que, o que vale na mensagem criacional, é proclamar Deus como “Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis”. Agora, o como e o onde, isso fica por conta do estudo, da interpretação e da pesquisa.

Quantos milênios tem a terra? As ciências, com base nos testes de radiocarbono e na arqueologia tem encontrado evidências que nos levam à acreditar que nosso planeta é antiqüíssimo. Os judeus, por exemplo, festejam a cada ano, seu Rosh Hashanah (princípio do ano). Em 2009, celebraram o ano 5770, ou seja, para a simbologia hebraica o mundo tem apenas aquela idade. Ora, sabendo-se que Abraão saiu de Ur, na Caldéia, em direção à Palestina há 3804 anos (1800 a.C.), se fôssemos buscar cálculos matemáticos exatos, dir-se-ia que quando sua migração ocorreu, o mundo tinha apenas 1966 anos. A Bíblia está errada? Ou há enganos nas descobertas da arqueologia? Como podemos resolver esse conflito? Vamos, pois, à análise do hexaemeron, os seis dia da Criação:
O primeiro dia
1 No princípio, Deus criou o céu e a terra. 2 A terra estava sem forma e vazia; as trevas cobriam o abismo e um vento impetuoso soprava sobre as águas. 3 Deus disse: “Que exista a luz!” E a luz começou a existir. 4 Deus viu que a luz era boa. E Deus separou a luz das trevas: 5 à luz Deus chamou “dia”, e às trevas chamou “noite”. Houve uma tarde e uma manhã: foi o primeiro dia.
O ponto alto do primeiro dia da Criação é o surgimento da luz. A partir de agora, todas as coisas que forem sendo criadas, serão como que uma conseqüência dessa luz inicial. Ao separar a luz das trevas (v. 4), Deus estabelece uma ordem, implanta seu modo de organização dissipando o caos e iluminando o abismo. Ele separa para organizar, para dar formas ao que era tōhu e hê-wabōhu: informe e vazio.
Sem nenhum elemento anterior (ex nihilo), exceto o caos (e dele não seria possível extrair luz), Deus ordena que surja a luz, e a luz imediatamente se fez presente naquele concerto que ora se iniciava. Em trechos posteriores da Escritura, seja nos livros proféticos, sapienciais ou legislativos, há menção dessa luz que foi criada a partir do nada. Sempre que há um reporte a esse primeiro evento, surge, seja em sala de aula, em catequese, retiro ou pregação, a pergunta: “Mas Deus criou a luz antes do sol? Como é possível?”. De fato, se formos observar, o sol como astro maior da luz física, só vai ser criado no quarto dia (cf. vv. 14-18). Depois, que nunca se perca de vista que “para Deus nada é impossível” (cf. Lc 1,37).
O Criador tinha que começar pela luz para dissipar as trevas, que até aquele momento, era o elemento mais ativo e ameaçador. Essa luz, criada naquela circunstância revela a proeminência do bem sobre o mal, uma vez que revela a luz de Deus, cheia de amor, paz, benevolência. O começo da Criação tendo a luz como ponto inicial é para dizer que Elohim criou essa luz, ao invés dos deuses do Egito e da Mesopotâmia., que a luz é criatura e não divindade ou emanação da divindade.
Nesse primeiro contexto já para discernir que a luz de Deus dissipa o medo que o ser humano tem das trevas, razão pela qual, no Apocalipse (21,25) é proclamado que no céu jamais haverá noite. Há outro detalhe importante, que às vezes, pela leitura apressada pode ter passado despercebido: “ ...à luz Deus chamou “dia”, e às trevas chamou “noite” (v. 5)” .
Colocar nome em alguma coisa significa o domínio absoluto sobre essa coisa. As temíveis trevas são como que amansadas, passando a chamar-se simplesmente “noite”. A luz é uma criatura tão importante, que o autor do texto atribui a ela todo o primeiro dia. De fato, Deus contempla sua primeira criatura e atribui-lhe um valor. E fez mais: separou a luz das trevas:
viu o Senhor que a luz [era] boa (v. 4)waiá Elohim het ahôr kitôv
e separou o Senhor (entre) a luz e (entre) as trevas (v. 4b).
vaiabdêl Elohim bein ahôr bein ahôšê
Tudo que Deus cria é bom, proveitoso e perfeito. A ahôr, luz, como o primeiro elemento criado, é kitov, boa, porque bane a escuridão, ao mesmo tempo em que coloca às claras tudo o que Deus faz. É por isto que no IV Evangelho surge uma premissa iniludível, na qual nos é dito que Jesus, como filho do Pai (e Criador como ele), é “luz do mundo” (cf. Jo 8,12). Em outro trecho joanino, vemos que Deus é luz e nele não há trevas (cf. 1Jo 1,5). Os seguidores do Ressuscitado, pelo batismo e pela adesão totalizante a ele, tornam-se igualmente “luz do mundo” (cf. Mt 5,14). A luz para ser boa precisa ser diferente das trevas: tem que superá-las.
No final do bloco relativo ao primeiro dia, a Escritura diz que “houve uma tarde e uma manhã...” (v. 5b). Essa referência, aliás, surge no final de cada etapa da Criação. Trata-se do modo semita de marcar o dia, que para eles não começava à meia-noite, mas à tarde-noite (no crepúsculo). Tanto assim que o shabbath, o sábado dos judeus (e das Igrejas que os acompanham) começa no entardecer da sexta-feira. Para os semitas da Palestina, no tempo em que foi redigido o texto, o dia era composto de tarde/noite/manhã. É por isto que se lê “...houve uma tarde e uma manhã”, pois a contagem dos dias, na Antigüidade judaica era de tarde-a-tarde (cf. Lv 23,32). Esse conjunto, de tarde e manhã, com uma noite no meio, faz referências – diz o Talmude – a um tempo incomensurável, um espaço temporal útil para o desenvolvimento das coisas, elementos e seres criados.

O segundo dia


6 Deus disse: “Que exista um firmamento no meio das águas para separar águas de águas!”. 7 Deus fez o firmamento para separar as águas que estão acima do firmamento das águas que estão abaixo do firmamento. E assim se fez. 8 E Deus chamou ao firmamento “céu”. Houve uma tarde e uma manhã: foi o segundo dia.
Há pouco tempo escutei, em uma conferência universitária, um conceituado biblista e teólogo espanhol (Torres Queiruga) afirmar que a Criação é uma obra de “separação”. De fato, se a gente for observar, verá que o céu é “levantado” sobre a terra, e separado dela; a terra firme é igualmente separada do mar. A terra separada das águas. Mas a situação das águas ainda era indefinida. Havia ainda mais separações a fazer, e elas só iriam acontecer naquele momento que se convencionou chamar de “terceiro dia”. É por essa razão que no segundo dia não tem o “viu que era bom”, porque a obra iniciada não estava acabada; ela só vai ficar completa no dia seguinte.

O terceiro dia

9 Deus disse: “Que as águas que estão debaixo do céu se ajuntem num só lugar, e apareça o chão seco”. E assim se fez. 10 E Deus chamou ao chão seco “terra”, e ao conjunto das águas “mar”. E Deus viu que era bom. 11 Deus disse: “Que a terra produza relva, ervas que produzam semente, e árvores que dêem frutos sobre a terra, frutos que contenham semente, cada uma segundo a sua espécie”. E assim se fez. 12 E a terra produziu relva, ervas que produzem semente, cada uma segundo a sua espécie, e árvores que dão fruto com a semente, cada uma segundo a sua espécie. E Deus viu que era bom. 13 Houve uma tarde e uma manhã: foi o terceiro dia.
Aqui vemos o Criador completando o que havia começado no dia anterior. Encoberta pelas águas, a terra não tinha ainda condições de produzir alimentos para os seres (animais e homens) que seriam criados dali para frente. Por esta razão, Deus resolve estabelecer nova etapa de sua Criação, fazendo surgir, por separação, das águas, a terra firme. As “águas inferiores” ainda inundavam a terra. Sob a voz de Deus, as águas fugiram (cf. Sl 104,6-9). A partir daí, Deus juntou as águas, mayim, em só lugar, a que chamou de mar. À porção seca ele deu o nome de eretz, terra.
Ao dizer que a terra “produziu relva, ervas que produzem semente, cada uma segundo a sua espécie, e árvores que dão fruto com a semente, cada uma segundo a sua espécie...” (v. 12), o autor sagrado está fazendo menção à perfeição da natureza, onde cada elemento deve cumprir seu papel. Não produzir é não-vida, tornando-se uma oposição ao projeto do Criador.
O ato de produzir os alimentos (sementes e frutos), mostra que nesse ciclo é que a vida e a Criação, materialmente se perenizam. No Novo Testamento, Jesus mandar cortar uma figueira, que podia ser muito bonita e ter folhas vistosas, mas não dava frutos (cf. Mt 21, 18-22). Mais adiante, o Mestre refere-se ao grão de trigo. Se ele cair na terra, ficar enterrado e não der fruto, morre (cf. Jo 12, 24).
No contexto do terceiro dia, Deus é o Criador, o soberano que dá ordens e as coisas acontecem como ele preconiza. Ele é o artesão que modela, e modelando contempla, satisfeito, a boa obra que realizou; como poeta, ele realiza a poesia do cosmos, quando pronuncia os nomes primigênios, que significam e trazem vida. O certo é que, nesse terceiro dia, das águas do abismo surge a porção seca. Assim como ocorreu no primeiro dia, entre trevas e luz, aqui ocorre a separação entre a morte e a vida. Coroando essa etapa, no final do terceiro dia, olhando o que havia feito, “... Deus viu que era bom... (v.12)”. Concluído o terceiro dia, resta-nos refletir e louvar a sabedoria de Deus, preparando-nos para o estágio seguinte, o quarto dia, quando a Criação avança para seu final. Os luzeiros celestes vão separar o dia da noite, e indicar meses e anos, estações e períodos cíclicos do plantio e das colheitas.
O quarto dia

14 Deus disse: “Que existam luzeiros no firmamento do céu, para separar o dia da noite e para marcar festas, dias e anos; 15 e sirvam de luzeiros no firmamento do céu para iluminar a terra”. E assim se fez. 16 E Deus fez os dois grandes luzeiros: o luzeiro maior para regular o dia, o luzeiro menor para regular a noite, e as estrelas. 17 Deus os colocou no firmamento do céu para iluminar a terra, 18 para regular o dia e a noite e para separar a luz das trevas. E Deus viu que era bom. 19 Houve uma tarde e uma manhã: foi o quarto dia.
A composição do quarto dia traz consigo um caráter programático: os luzeiros (sol, lua e estrelas) vão marcar os eventos da vida dos seres, suas fases de vida, de reprodução, bem como regular os demais ciclos da natureza. Para não dar mais argumentos aos pagãos, adoradores de corpos celestes, e também não valorizar as divindades babilônicas, de quem Israel era escravo, o autor P suprime os nomes característicos. Nessa missão, sol, lua e estrelas, são chamados apenas de luzeiros. Desta forma revelam-se como coisas criadas pelo Deus de Israel.
A extensão concedida ao relato da origem dos astros é compreensível quando recordamos sobre as qualidades sacras a eles atribuídas pelos cultos pagãos. A função exclusiva dos luzeiros criados por Deus é separar (a noite do dia) e iluminar. Para evitar deslizes religiosos, ou idolatria (que existia, em face da inculturação) o autor não fala em sol (mas em “luzeiro maior”) nem em lua (“luzeiro menor”). Como características dos luzeiros, o autor sagrado emprega três verbos: a) iluminar: determinar quando é dia e quanto é noite; b) regular: servir de sinal, mostrar pela alternativa do dia e da noite, os meses do ano e suas estações; em algumas traduções bíblicas aparece como governar; c) separar: as horas de trabalho, sono e descanso.
No Oriente Médio, da Mesopotâmia ao Egito, bem como na Índia, Anatólia e Grécia, os astros eram vistos como divindades. O sol (Marduk) e a lua (Sin ou Yarih) eram deuses babilônicos. As relatar a Criação levada a efeito por Deus, o autor afirma: o nosso Deus criou os deuses de vocês! Fiel ao estilo e ao gênero narrativo, o autor fecha seu texto do mesmo jeito dos anteriores: “E Deus viu que era bom. Houve uma tarde e uma manhã: foi o quarto dia (vv. 18-19)”.
O quinto dia

20 Deus disse: “Que as águas fiquem cheias de seres vivos e os pássaros voem sobre a terra, sob o firmamento do céu”. 21 E Deus criou as baleias e os seres vivos que deslizam e vivem na água, conforme a espécie de cada um, e as aves de asas conforme a espécie de cada uma. E Deus viu que era bom. 22 E Deus os abençoou e disse: “Sejam fecundos, multipliquem-se e encham as águas do mar; e que as aves se multipliquem sobre a terra”. 23 Houve uma tarde e uma manhã: foi o quinto dia.

Ao ingressar no estudo do quinto dia da Criação, observamos que a obra de Deus vai se estruturando como a construção de uma pirâmide. A base (o primeiro e segundo dia) já está feita, o corpo está igualmente montado e tudo aponta para o ápice, onde no sexto dia o Criador vai chamar à vida o homem e a mulher. Na quinta etapa do projeto de Deus, começa a Criação dos seres vivos.

Por causa dos perigos (físicos e metafísicos), o mar era considerado como “morada dos maus espíritos”. Mesmo depois de escrita a Criação, inclusive no tempo de Jesus, o mar da Antigüidade era visto como “refúgio dos anjos decaídos” (demônios), etc. A finalidade do texto criacional é estabelecer uma harmonia entre pássaros, peixes e os seres humanos, plena de fecundidade e beleza. O ato de exercer domínio sobre os animais, significa cuidar deles. O hábito de matar os animais, alimentando-se de sua carne, seria adotado muito depois, por causa do pecado, após o dilúvio.
A tônica do quinto dia é o povoamento, com peixes e aves, das águas e do ar. No v. 21 reaparece o verbo barah, criar alguma coisa maravilhosa, como só Deus é capaz de fazer. Mesmo dirigindo-se a criaturas primárias (os grandes animais só irão aparecer no sexto dia), Deus recomenda-lhes fecundidade e multiplicação (v. 22). Essa tendência vai infletir diretamente na realidade pós-exílica. Depois da drástica redução populacional de Israel, por causa das guerras e do exílio, a ênfase voltou-se para a fecundidade, para que o povo tivesse mais filhos, contribuindo assim para o povoamento das cidades e dos campos da Palestina.
Chama-nos a atenção a referência feita no v. 21, onde é relatada a criação dos animais (baleias, monstros?) marinhos, vistos pelas culturas míticas como senhores ou encarnações do caos primordial. Lá eles eram divindade, aqui, criaturas como as demais.
Houve uma tarde e uma manhã, e esses dois espaços de tempo foram extremamente importantes para a vida e a sobrevivência da humanidade. Um novo conjunto de seres estava criado. E Deus viu que a forma como haviam sido criados e colocados era boa. E assim ele fez no quinto dia (I. Mazzarolo).
O sexto dia
24 Deus disse: “Que a terra produza seres vivos conforme a espécie de cada um: animais domésticos, répteis e feras, cada um conforme a sua espécie”. E assim se fez. 25 E Deus fez as feras da terra, cada uma conforme a sua espécie; os animais domésticos, cada um conforme a sua espécie; e os répteis do solo, cada um conforme a sua espécie. E Deus viu que era bom. 26 Então Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele domine os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra”. 27 E Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus ele o criou; e os criou homem e mulher. 28 E Deus os abençoou e lhes disse: “Sejam fecundos, multipliquem-se, encham e submetam a terra; dominem os peixes do mar, as aves do céu e todos os seres vivos que rastejam sobre a terra”. 29 E Deus disse: “Vejam! Eu entrego a vocês todas as ervas que produzem semente e estão sobre toda a terra, e todas as árvores em que há frutos que dão semente: tudo isso será alimento para vocês. 30 E para todas as feras, para todas as aves do céu e para todos os seres que rastejam sobre a terra e nos quais há respiração de vida, eu dou a relva como alimento”. E assim se fez. 31 E Deus viu tudo o que havia feito, e tudo era muito bom. Houve uma tarde e uma manhã: foi o sexto dia.
Quando fizemos catequese (há muito tempo atrás) ouvimos falar da humanidade começando através de um casal: Adão e Eva. Depois, um pouco mais esclarecidos, muitas vezes nos perguntamos como seria possível, geneticamente falando, a procriação das gerações a partir da união incestuosa dos filhos daquela “proto-família”. Embutido num contexto maior inegável que é a criação divina, cuja mecânica teremos oportunidade de tecer considerações mais adiante, o aparecimento do homem sobre a terra tem criado perguntas, hipóteses e teses de muitos cientistas, antropólogos, teólogos, ateus, humanistas entre outros menos votados.
Hoje, dentro de uma análise científica gestada dentro da própria Igreja, pode-se identificar algumas correntes sobre a geração e continuidade da raça humana; ou melhor, das raças humanas. Desponta, então a evidência de duas correntes chamadas de monogenismo e poligenismo. A teoria monogenista é aquela que aprendemos no catecismo, fruto de uma análise fundamentalista das Escrituras, em que as afirmações são levadas ao entendimento do pé da letra, sem o desconto da época em que foram escritas, das realidades humanas daquele tempo, dos meios literários e de imagens que possuíam os hagiógrafos. Assim, por exemplo, temos o livro do Gênese rico em antropomorfismos, ou seja, de criações literárias adaptadas às formas humanas que o escritor sagrado conhecia. Neste contexto, podemos notar a atuação de Deus como jardineiro, pedestre que passeava pelas alamedas do paraíso, oleiro, anestesista, cirurgião e alfaiate. È claro que Deus tem poder para fazer tudo isto e muito mais, mas a escrita dessas atividades é que caracteriza o antropomorfismo, que dá formas, atitudes e ações humanas à práxis divina. A teoria monogenista, então, é aquela que nos mostra o gênero humano descendente de um só berço (criação divina) e um só casal (Adão e Eva).
O poligenismo (poli = muito, genés = geração) nos apresenta o homem criado de um só berço (criação divina, criado por Deus), mas a partir de muitos casais. Por conseguinte, quando o autor sagrado diz que Deus criou adam (adam, em hebraico, significa homem de barro, substantivo, e não nome próprio), está dizendo, criou o homem, e não um homem, individualmente. Em Gn 1,27 verifica-se que o substantivo adam não designa um indivíduo, mas a espécie humana criada por Deus e incumbida de crescer, multiplicar-se, encher a terra e dominá-la.
O nome Eva também não é próprio, e significa, no hebraico, hawwa, “mãe de vivos” (Gn 3,20). Esta teoria poligenista, bem mais racional do que a outra, em nada contraria, desmerece ou põe em cheque a nossa fé. (...) Tudo fica no terreno das teorias; não há critérios científicos bem definidos para dirimir estas dúvidas que, embora de curiosidade especulativa, não são essenciais. A ciência até hoje não tocou na estaca zero do homem. Hoje dizem que o homem tem 500 milhões de anos. É possível! A Bíblia estabelece sua primeira cronologia com Abraão, entre 2000/1800 a.C. Estas teorias são desposadas pelos grandes biblistas contemporâneos. Contra o poligenismo insurgiu-se a Igreja, através da Encíclica “Humani Generis” do papa Pio XII (1950), classificando-o de “ameaça contra a doutrina católica”.

É sempre bom se estudar as Escrituras pelo ângulo místico, pelo científico e pelo social. Todos se completam. E não há nenhum mal para a fé. Vamos ao fecho dos seis dias.
Sábado: o descanso de Deus e do homem Gn 2, 1 Assim foram concluídos o céu e a terra com todo o seu exército. 2 No sétimo dia, Deus terminou todo o seu trabalho; e no sétimo dia, ele descansou de todo o seu trabalho. 3 Deus então abençoou e santificou o sétimo dia, porque foi nesse dia que Deus descansou de todo o seu trabalho como criador. 4 Essa é a história da criação do céu e da terra.


O Código P (sacerdotal) faz com que Deus apareça como um trabalhador, que descansa no sábado. E nesse texto nós vemos que há 8 obras em 6 dias. Por que não 8 dias e descanso no 9o.? Porque o autor quer colocar tudo o que conhece no esquema de 6 dias, para firmar a questão do descanso sabático.]
O verbo Shãbat tem o sentido de interromper, ou deixar de... ou ainda descansar. A finalidade do Shabbath era lembrar a humanidade da necessidade de dedicar um dia ao Senhor. O Sábado foi criado por causa do homem, frisou Jesus. O Shabbath nada tem haver com o dia após a sexta-feira, mas sim um dia santificado, reservado ao Criador. Em Israel, hoje, os preceitos do shabbath ainda são rigorosos, como não trabalhar, não acender o fogo, não realizar nenhuma atividade.


À guisa de conclusão vamos ver que a tarefa da Teologia da Criação nos remete a cinco fatores essenciais:
a) compreender a natureza como “criação” – contingência e finitude, sem exageros maniqueístas (divinização x demonização); b) compreender a natureza como “veículo de comunicação” (por ela Deus nos fala); c) ajudar a entender a fé cristã, não só como sentimento interior e subjetivo, mas como fé engajada, no social e no ecológico; d) refazer a interpretação bíblica da criação de forma interdisciplinar (cultural, antropológica e arqueológica); e) compreender a criação em sua plenitude (coisas visíveis e invisíveis). Ressalta-se nessa tarefa uma clara idéia de abertura.
O mundo se torna reconhecido como criatura de Deus, não por si mesmo, mas pela revelação de Deus como seu Criador. A criação aponta para a promessa de Deus a Abraão, Isaac e Jacó e a promessa indica para o messianismo de Jesus que aponta para o Reino vindouro. A criação está direcionada para o Reino de Deus. No princípio, a criação está aberta para a história da salvação, mas ela não encontra aí o seu sentido último. A criação no princípio aponta para além da história da salvação para a sua própria perfeição no Reino da glória. A alegria que não pode ser vivida em plenitude no Éden, Deus irá torná-la realidade no Reino. Através da revelação divina, o mundo é reconhecido como criação de Deus. Reconhecendo o mundo como criação de Deus, sua revelação se torna universal. O universo é compreendido na história de Deus com as pessoas, e esta história se tornará perfeita na nova criação, no Reino de Deus. Para a fé cristã, o tempo do Messias Jesus é o tempo do (re)conhecimento da criação. Pela fé em Jesus Cristo o mundo se manifesta como a criação aberta integralmente ao futuro.

Antonio Mesquita Galvão
é Filósofo, Biblista e Doutor em Teologia Moral. Escritor, com mais de 100 livros publicados no Brasil e exterior, entre eles “Bereshit. No princípio... Teologia da Criação” (a sair). Pregador de retiros espirituais e conferencista internacional, assessora cursos e workshops de teologia e filosofia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário