A misericórdia penetra no nosso coração só se também nós soubermos perdoar, até aos nossos inimigos.

Ora, mesmo que ao homem pareça impossível satisfazer esta exigência, o coração que se oferece ao Espírito Santo pode, como Cristo, amar até ao extremo do amor, mudar a ferida em compaixão, transformar a ofensa em intercessão.

O perdão participa da misericórdia divina e é um vértice da oração cristã.

«Deus não quer que se perca nenhum de seus filhos e transborda de alegria quando um pecador se converte.»

A verdadeira religião consiste agora em entrar em sintonia com esse Coração "rico de misericórdia", que nos pede para amar todos, também os distantes e os inimigos, imitando o Pai celeste que respeita a liberdade de todos e atrai todos a si com a força invencível de sua fidelidade.

«Não julgueis… Não condeneis… Perdoai e vos será perdoado; dai e vos será dado… Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso» (Lc 6, 36-38).

Nestas palavras, «encontramos indicações muito concretas para o nosso comportamento diário de cristãos».

A humanidade necessita que a misericórdia de Deus seja proclamada e testemunhada com vigor.

«Quem intuiu esta urgência pastoral, de modo profético», foi João Paulo II, «grande apóstolo da divina Misericórdia», e por isso foi, durante todo o seu pontificado, um «missionário do amor de Deus a todos os povos».

De toda a orientação ética dada na oração maior da cristandade, deixada por Jesus, a passagem que mais desafia quem a leva a sério talvez seja: “Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”.

Desafia não só nossa disposição moral, em dizer a oração de coração e em verdade, como também a nossa hermenêutica, interpretação crítico-teológica, para bem compreender seus significados. Por que ela teria um conteúdo semântico, um significado, organizado de modo especial?

O “Perdoai-nos” é distinto não partimos do princípio: “Que as ofensas de todos sejam perdoadas por Deus, universalmente, inclusive as minhas”.

A impressão clara de quem reza é de que deve primeiro perdoar os demais para então ser digno de obter perdão.

Nos outros casos há uma tomada de atitude particular “verbalmente implícita” e “logicamente condicionada” à prescrição universal: não se declara que primeiro eu santifique o nome de Deus, primeiro ajude na construção do seu reino, para que tais pedidos sejam feitos e concedidos, ou sim? Já no caso do perdão, ocorre o inverso, a tomada de atitude particular de quem ora é “verbalmente explícita” e “logicamente condicionante”, requisito, da prescrição universal.

Isso nos inquieta: poderia algo particular (a atitude humana de perdoar) ser logicamente anterior a uma prescrição universal (o infinito perdão de Deus)?

Entende-se que as virtudes de Deus sejam superiores às nossas, então pedir que Ele perdoe “assim como nós perdoamos” gera tensão hermenêutica, pois mais devemos buscar seguir atributos de Deus, do que Deus agir assim como nós, imperfeitos por definição. Logo, a oração não diz que Deus só perdoará na exata medida que o homem é capaz de perdoar – o que contradiria a essência da divindade. Como nessa área não cabe contradição, o significado deve ser mais elevado. Para alcançá-lo sou limitado e você retirante pode ajudar-me.

Tentando elevar à universalidade o pedido pessoal, veríamos no plural “Perdoai-nos” um índice dos erros de uma coletividade, uma nação ou, no limite, toda humanidade. Mas dizendo “assim como nós”, na voz de um “eu”, surge um desafio: um só não pode assumir as atitudes de todos, se busca um perdão que dê paz imediata para reiniciar visando não reincidir. Poderia tal paz vir no presente pela certeza de perdão só no futuro? Pela esperança em milênios vindouros, dos quais somos pré-história e nos quais “o mundo já não será mundo e sim algo melhor”? Se “nós” formos “toda a humanidade”, devendo todos perdoar para sermos perdoados, nosso altruísmo, dedicação e paciência não deverão também aumentar? Seria um desafio. Mas a maioria de nós não faz suas orações assim.

O perdão pedido não é sempre para os erros de toda a gente. O “nós” é mais uma forma literária de dizer “eu” do que um compromisso social planetário. Assim, após esta tentativa, a busca por sentidos mais elevados continua.

Seguindo para além do pé da letra da oração, busquemos amparo na interpretação mais geral. Na tradição cristã, o tema dos erros humanos e sua redenção se liga à discussão teológica relativa à morte de Cristo, como símbolo de imolação que redime as culpas históricas da humanidade. Nessa visão da relação homem-divindade, uma “nova aliança” se firma como ética distinta e inédita. Na sua dimensão temporal ela é nomeada como “Tempo da Graça” que incorpora, supera e sucede o “Tempo da Lei” – lembrando um teólogo amigo meu. Nesse tempo novo, já não impera a letra da antiga lei, pois “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado” (Mc 2, 27).

Então, julgar nossos erros pede sensibilidade e entendimento não legalista, ao definirmos “ofensas”. Cabe ponderar, pois há novos conceitos de condenação e salvação, mas ainda nos apegamos a regras arcaicas. Mesmo assim, erramos – seja por não seguir a lei ou por não estar na graça.

Para o cristão, só o exemplo de Cristo é saída para nossa fatal tendência ao erro.

Agostinho resume indicando que “não amar” é o único erro: “Àquele que ama, tudo é permitido”. Quem ama, a Deus sobre tudo e ao próximo como a si, não quebrará mandamento algum. Mas, mesmo quem ama e segue seus ritos religiosos, não o faz sempre e não se livra em definitivo de ofender ao semelhante, a si próprio, a Deus.

Por ser inevitável errar, por nem sempre o amor ser a lei maior, não escaparemos: teremos que pedir perdão. Do geral voltamos ao particular.

Na particularidade da vida concreta, na qual sempre erramos, torna-se tenso pedir perdão, pois arriscamos vir a repetir o mesmo expediente em breve. Há um ditado: “errar é humano, persistir no erro é burrice”. Se tomarmos “erro” como “ofensa”, poderia ser: “errar é humano, persistir no erro é maldade”.

O primeiro tem conotação cognitiva (falta de inteligência), o segundo tem conotação ética (falta de caráter), ambas são humanas, até demais. Sucessivas retratações para um erro recorrente rebaixam nossa estima e credibilidade frente ao outro e a nós próprios, mesmo que ninguém seja irrecuperável. Pode-se até dizer: “Se erro contigo e, em verdade, me perdoares, a dívida não acumulará”. Mas, alguém é tão amoroso ao ponto de não recobrar a violência antes sofrida que retorna por mãos do mesmo agressor?

Só a divindade seria diferente, pois Deus, primeira pessoa, nunca será ferido por qualquer agressor, não ficará magoado ou ressentido por dor de agressão sofrida. É na segunda pessoa, o Filho, que se pode cogitar tal provação, por unir condição humana e divina em paixão incomparável. O perdão do Pai, invulnerável, difere do humano, vulnerável.

Pedimos perdão por antes ofender o próximo, imagem e semelhança d’Ele. Agredindo ou omitindo, machucamos nossos semelhantes, não Deus - cuja integridade de atributos é inabalável, sua fortaleza é inexpugnável. Já o Verbo feito carne se feriu e sangrou, para sobrepujar a morte. Deus só é molestado e chora no corpo de um ser humano.

Nas duas pessoas, o perdão divino é infinitamente superior, não só por Deus não ter mágoa de golpes tomados, mas por apiedar-se dos proferidos contra todo gênero humano, cuja vivência seu próprio filho encarna e eleva à potência mais alta. Por isso é erro tomar o “assim como nós” ao pé da letra. Obviamente, quem deve aprender a perdoar e pedir perdão é o homem, jamais Deus. Ferimos o outro, precisamos pedir perdão. Ferem a nós, precisamos perdoar. O “dente por dente, olho por olho” é superado. Pedindo e concedendo perdão, libertamo-nos.

Não por ser fácil. O pedido envolve dores indesejáveis: arrependimento e culpa. Na ideologia capitalista de sucesso individual a todo custo, dizemos: “não me arrependo de nada”, “podendo faria tudo de novo”.

Arrepender-se é admitir tempo perdido, e não gostamos. A mesma ideologia critica a noção ocidental de culpa que “escraviza”. Mas a psicanálise ensina que um homem sem culpa alguma não preserva sanidade mental.

Pedir sinceramente perdão envolve não ser o centro do mundo (ideologia de só levar vantagem) e não padecer de mal psíquico (patologia de tratar os outros como coisas).

Sendo difícil e necessário, temos por fim duas leituras para “assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”.

Uma seria pedir também “ensina-nos a perdoar assim como vós nos perdoais” (foco no modelo superior).

Outra seria junto meditar: “perdoai as nossas ofensas só quando todos perdoarmos aos que nos têm ofendido” (foco no tempo futuro). É difícil até resumir, mas convido a você retirante a ampliar. E, pela inaptidão em contemplar o tão vasto no mais breve, peço perdão.