( Testamento de São Francisco de Assis, 4, 14)
Em 1226, em sua última e derradeira enfermidade, São Francisco ditou seu Testamento Espiritual, legando aos seus filhos presentes e futuros o seu Itinerário de Santidade. Neste Testamento, além de traçar sua trajetória de conversão, ilustrando a intuição de seu Movimento Minorítico, Francisco abre para todas as gerações uma possibilidade de reflexões, que soam sempre atuais, revigorando, em todos os tempos, o seguimento de Cristo Pobre e Crucificado.
Uma de suas grandes contribuições em seu Testamento, registradas, principalmente na quarta parte, sem dúvida nenhuma, trata-se da fraternidade formada em torno de sua experiência de conversão: (14)“E depois que o Senhor me deu irmãos ninguém me mostrou o que devia fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu devia viver segundo a forma do santo Evangelho. (15) E eu o fiz escrever com poucas palavras e de modo simples e o Senhor Papa ( Inocêncio III ) mo confirmou. (16) E os que vinham para abraçar este gênero de vida distribuíram aos pobres o que acaso possuíam. E eles se contentavam com uma só túnica remendada por dentro e por fora, com um cíngulo e as calças. (17) E mais não queríamos ter. (18) Nós clérigos recitávamos o ofício divino como os demais clérigos; os leigos diziam os pai-nossos. (19) E gostávamos muito de estar nas igrejas. Éramos iletrados e sujeitávamos a todos” (Test. 4, 14-19).
Francisco tem consciência de não ter escolhido seus irmãos. Simplesmente acolhe a vontade de Deus Pai, diante do qual somos todos irmãos. Para ele, a fraternidade evangélica tem sua base sólida e fundamental no ‘querer de Deus’, que generosamente concede. “ Ter um irmão é um dom, graça de Deus. Através deste dom Deus exprime seu amor e seu cuidado para com o homem. O dom do primeiro irmão dado a Francisco o encheu de extraordinária alegria, que parecia que o Senhor se preocupava com ele, já que lhe mandara um companheiro tão necessário e um amigo tão fiel (1Cel 24).
”A constatação de que os irmãos lhe foram dados pelo Altíssimo encheu o coração de Francisco com a certeza de que Deus tinha um projeto diferente, que não se enquadrava em nenhum tipo de instituição ou Regra já existentes.
O Altíssimo revelou para ele, na formação de sua primitiva fraternidade, o caminho a ser percorrido: “viver segundo a forma do Santo Evangelho.” Do contrário, seu ideal de vida, simples e pobre, não teria atraído tantos irmãos.Se eles existem, é porque foram dados pelo próprio Deus, que os escolheu e chamou.
A presença dos irmãos ao seu redor exige de Francisco zelo, cuidado e responsabilidade. Enquanto esteve só, perseguindo os ideais evangélicos, cuidando dos leprosos, reconstruindo a igrejinha de São Damião, hospedando-se entre os monges beneditinos, recolhendo-se nas grutas para a oração e esmolando o necessário para sua subsistência, sua única preocupação era com a fidelidade ao estilo de vida pobre e simples que acabara de abraçar. Quando os irmãos começam a chegar, a primeira atitude de Francisco torna-se uma atitude materna: “e eu o fiz escrever em poucas palavras e de modo simples e o senhor papa mo confirmou…” Buscou rapidamente um mínimo de infra-estrutura para acolher bem e proteger aqueles que o Senhor enviara.
Fez uma breve regra de vida, completamente edificada nos alicerces do Evangelho e buscou sua aprovação aos pés do Santo Padre, o Papa Inocêncio III. Com a regra, Francisco expressa sua fraternidade nos sinais da pobreza, da obediência e da castidade, genuína expressão da vida, da lealdade, do respeito ecológico e da caridade. Com a bênção papal, Francisco cerca sua frágil fraternidade ( aqui leia-se comunidade) com a proteção da Igreja.“ E os que vinham para abraçar este gênero de vida distribuíram aos pobres o que acaso possuíam.
E eles se contentavam com uma só túnica remendada por dentro e por fora, com um cíngulo e as calças. E mais não queríamos ter.”
Aqui, Francisco demonstra sua receptividade e hospitalidade aos que chegam, deixando bem explícito que o critério do discernimento em saber se o irmão que chegava era, realmente, chamado e escolhido por Deus. Este critério era o despojamento fraterno, a pobreza: “distribuíram aos pobres o que acaso possuíam”.“Quem está na pobreza busca a colaboração dos outros para resolver os próprios problemas. O rico cria barreiras para proteger sua própria riqueza. A pobreza une e a riqueza divide e marginaliza.
"A pobreza cria necessidades e as necessidade nos aproximam"...Quem tem seu coração preso às riquezas não exprime mais afeto pelos irmãos. O rico não se doa, mas procura impor-se; oferece suas próprias riquezas, não para ajudar o seu irmão que está em necessidade, mas para dominá-lo.
A fraternidade é um dom que se oferece e que se aceita na pobreza de todos os filhos de Deus.
Peregrino e viandante neste mundo, o pobre participa com confiança da ‘mesa do Senhor’ preparada pela providência divina e pelo trabalho do povo pobre. Os filhos de Deus se encontram em torno da ‘mesa do Senhor’ para dar e receber afeto e pão.”Os irmãos dados a Francisco estavam revivendo a primeira Comunidade dos Apóstolos: encontravam-se para a oração e a fração do pão. Estavam sempre juntos, estreitando os laços da fraternidade.
O estar juntos dos irmãos tinha como objetivo, antes de tudo, de permitir-lhes que, ajudando-se mutuamente, realizassem sua personalidade espiritual, na celebração da cultualidade de sua vida e, depois, oferecendo ao mundo um serviço de salvação através do anúncio da paz: “Nós clérigos recitávamos o ofício divino como os demais clérigos; os leigos diziam os pai-nossos”.“Respeitando profundamente os vínculos de sangue, a fraternidade franciscana dá o testemunho de uma família que é gerada por Deus.
A família gerada pelo homem é sagrada, porque na família se renova a vida e a vida vem de Deus.
Os vínculos da fraternidade espiritual não são menos sólidos que os vínculos de sangue. Francisco crê firmemente na solidez da fraternidade espiritual dos seus frades e não hesita em encorajá-los à confiança recíproca em suas necessidades, apelando para a imagem de confiança de um filho para com a mãe.”Por fim, a fraternidade que se desenvolveu em torno da figura carismática de Francisco de Assis crescia ainda com dois aspectos muito distintos: era eclesial e minorítica: “E gostávamos muito de estar nas igrejas. Éramos iletrados e sujeitávamos a todos”.
Eclesial porque experimentava a comunhão da Igreja, e por ela se orientava na itinerância do mundo, vivendo e aprofundando os valores evangélicos. Era a Igreja o lugar espacial da expressão da Comunidade Franciscana.
Minorítica porque experimentava a “minoridade”, a sujeição, “ o ser menor” como paradigma contrário aos apelos do tempo, onde o homem buscava ser “maggiore” em tudo o que era, em tudo o que fazia e em tudo o que possuía. Pertencer à Igreja na fidelidade ao Evangelho era para a Comunidade Fraterna de São Francisco, ao mesmo tempo, vocação e missão para o seguimento de Cristo.
“E depois que o Senhor me deu irmãos…” nasceu a fraternidade franciscana, “que se traduz essencialmente pelo testemunho da paternidade universal de Deus e da fraternidade universal do homem”. Assim, a fraternidade franciscana, é antes de tudo, fraternidade cristã, onde o homem é devolvido ao homem como irmão, e nessa relação, experimentar e desenvolver o amor que vem de Deus.Na fraternidade cristã somos chamados a aceitar a Deus como Pai e aceitar o outro como irmão, vivendo a comunhão.
A fraternidade franciscana é também uma consciência da generosidade de Deus que funda e recria a comunhão fraterna: “os irmãos não se escolhem, mas se aceitam. Não há fraternidade se não queremos entrar na vida de nosso irmão e se não consentimos que ele entre na nossa. Sem esta comunhão de vida, a fraternidade seria apenas referência a uma pertença genealógica, sem interesse para ninguém.
A fraternidade franciscana testemunha o amor que vem de Deus e para Deus volta.”A fraternidade franciscana é também uma relação materno-afetiva, onde o cuidado, o zelo, a proteção e a preservação do outro como parte de si mesmo faz crescer a amizade, o respeito mútuo e o testemunho evangélico. Na fraternidade franciscana os valores evangélicos da pobreza, da obediência e da castidade configuram-se como uma resposta humana às seduções mundanas e desumanizadoras do ter, do poder e do prazer.
Desapegados, unidos e transparentes os irmãos experimentam a bondade de Deus na história pessoal e comunitária de cada um que foi dado por Deus a toda comunidade.A fraternidade franciscana, formada por um chamado de Deus, vive o vínculo espiritual deste chamado através da cultualidade, ou seja, do encontro e da oração. Encontro consigo mesmo, com o irmão, com a natureza e com Deus.A fraternidade franciscana vive o sopro do Espírito dentro da Igreja e se faz menor, servidora, e gentilmente amorosa.São essas as características lembradas por São Francisco de Assis, nosso padroeiro, primeiramente aos seus frades, e por extensão a todas as comunidades nascidas a partir de sua intuição.(…)
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