Só a fidelidade aos caminhos de Deus gera vida e libertação.
O verdadeiro discípulo é aquele que está sempre preparado.
8 de Agosto de 2010.
A Palavra de Deus que a liturgia de hoje nos propõe convida-nos à vigilância: o verdadeiro discípulo não vive de braços cruzados, numa existência de comodismo e resignação, mas está sempre atento e disponível para acolher o Senhor, para escutar os seus apelos e para construir o “Reino”.
A primeira leitura apresenta-nos as palavras de um “sábio” anônimo, para quem só a atenção aos valores de Deus gera vida e felicidade.
A comunidade israelita – confrontada com um mundo pagão e imoral, que questiona os valores sobre os quais se constrói a comunidade do Povo de Deus – deve, portanto, ser uma comunidade “vigilante”, que consegue discernir entre os valores efémeros e os valores duradouros.
A segunda leitura apresenta Abraão e Sara, modelos de fé para os crentes de todas as épocas.
Atentos aos apelos de Deus, empenhados em responder aos seus desafios, conseguiram descobrir os bens futuros nas limitações e na caducidade da vida presente.
É essa atitude que o autor da Carta aos Hebreus recomenda aos crentes, em geral.
O Evangelho apresenta uma catequese sobre a vigilância.
Propõe aos discípulos de todas as épocas uma atitude de espera serena e atenta do Senhor, que vem ao nosso encontro para nos libertar e para nos inserir numa dinâmica de comunhão com Deus.
O verdadeiro discípulo é aquele que está sempre preparado para acolher os dons de Deus, para responder aos seus apelos e para se empenhar na construção do “Reino”.
LEITURA I – Sab 18,6-9.
O nosso texto refere-se, em concreto, à noite em que foram mortos os primogênitos dos egípcios, à noite do êxodo (cf. Ex 12,29-30).
O autor interpreta essa noite (cf. Sab 18,5) como a “resposta de Deus” ao decreto do faraó que ordenava a matança das crianças hebreias do sexo masculino (cf. Ex 1,22).
Para os egípcios, foi uma noite trágica, de ruína, de pesadelo, de destruição, de morte e de luto; para os judeus, foi uma noite de salvação, de glória e de louvor do Deus libertador.
Na perspectiva do autor deste texto, Deus não só esteve na origem da libertação mas, através de Moisés, fez saber com antecedência aos hebreus os acontecimentos da noite pascal (cf. Ex 12,21-28), a fim de que eles ganhassem ânimo.
Tudo isto foi entendido pelo Povo como ação de Deus.
Confrontado com a atuação de Deus em favor do seu Povo, Israel encontrou forma de responder a Jahwéh e de Lhe manifestar o seu louvor e agradecimento: os sacrifícios (aqui faz-se alusão ao sacrifício do cordeiro pascal, entendido como celebração da libertação operada por Deus), a solidariedade (o autor faz remontar a este momento do Êxodo as leis sobre a participação de todas as tribos na conquista – cf. Nm 32,16-24 – e sobre a partilha igual dos despojos – cf. Nm 31,27; Jos 22,8), o cântico de hinos (alusão ao Hallel – Sal 113-118 – cantados todos os anos durante a ceia pascal) definem a resposta do Povo à ação de Deus.
A conclusão é óbvia: enquanto que os egípcios – que divinizavam a natureza e que corriam atrás dos deuses falsos – se deixaram conduzir por esquemas de opressão e de injustiça e receberam de Jahwéh o justo castigo, os israelitas – fiéis a Jahwéh e à Lei, que sempre louvaram Deus e Lhe agradeceram seus dons e benefícios – viram Deus a atuar em seu favor e encontraram a liberdade e a paz.
ATUALIZAÇÃO
Considerar os seguintes desenvolvimentos:
• A leitura chama a atenção para a diferença que há entre o viver de acordo com os valores da fé e o viver de acordo com propostas quiméricas de felicidade e de bem-estar… O “sábio” que nos fala na primeira leitura assegura que só a fidelidade aos caminhos de Deus gera vida e libertação; e que a cedência aos deuses do egoísmo e da injustiça gera sofrimento e morte.
Hoje, como ontem, nem sempre parece fazer sentido trilhar o caminho do bem, da verdade, do amor, do dom da vida… Na realidade, onde é que está o caminho da verdadeira felicidade?
Na cedência ao mais fácil, à moda, ao “politicamente correto”, ou na fidelidade aos valores duradouros, aos valores do Evangelho, ao projeto de Jesus?
Como é que eu me situo face às pressões que, todos os dias, a opinião pública ou a moda me impõem?
• O tema da liturgia deste domingo gira à volta da “vigilância”.
Não se trata de estar sempre com “a alminha em paz”, “na graça de Deus” para que a morte não me surpreenda e eu não seja atirado, sem querer, para o inferno; trata-se de eu saber o que quero, de ter ideias claras quanto ao sentido da minha vida e de, em cada instante, atuar em conformidade.
É esta “vigilância” serena, de quem sabe o que quer e está atento ao caminho que percorre, que me é pedida. É esse o caminho que eu tenho vindo a percorrer?
A minha vida tem sido uma busca atenta do que Deus quer de mim?
• O autor do “Livro da Sabedoria” descreve a resposta do Povo à ação libertadora de Deus como celebração, solidariedade, louvor e ação de graças.
Diante do Deus libertador, que todos os dias intervém na minha vida e que me aponta caminhos de vida plena e de felicidade, sinto também a vontade de celebrar, de amar, de comungar, de louvar, como resposta ao amor de Deus?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 32 (33)
Refrão: Feliz o povo que o Senhor escolheu para sua herança.Justos, aclamai o Senhor,os corações rectos devem louvá-l’O.
Feliz a nação que tem o Senhor por seu Deus,o povo que Ele escolheu para sua herança.
Os olhos do Senhor estão voltados para os que O temem,para os que esperam na sua bondade, para libertar da morte as suas almase os alimentar no tempo da fome.
A nossa alma espera o Senhor,Ele é o nosso amparo e protetor.
Venha sobre nós a vossa bondade,porque em Vós esperamos, Senhor.
LEITURA II – Heb 11,1-2.8-19
A Carta aos Hebreus é um texto anônimo, escrito nos anos que antecederam a destruição do Templo de Jerusalém (ano 70).
Destina-se a comunidades cristãs (de origem judaica?) em que a generosidade dos inícios dera lugar ao cansaço, ao tédio, ao desinteresse e que, por causa das perseguições e da hostilidade dos não crentes, estavam expostas ao desalento e ao retrocesso na sua caminhada cristã.
Neste contexto, o autor pretende apresentar aos crentes um estímulo, no sentido de aprofundar a vocação cristã, até à identificação total com Cristo.
A carta apresenta – recorrendo à linguagem da teologia judaica – o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência – através de quem os homens têm acesso livre a Deus e são inseridos na comunhão real e definitiva com Deus.
O autor aproveita, na sequência, para refletir nas implicações desse fato: postos em relação com o Pai por Cristo/sacerdote, os crentes são inseridos nesse Povo sacerdotal que é a comunidade cristã e devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Desta forma, o autor oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação da fé primitiva, capaz de revitalizar a experiência de fé, enfraquecida pela acomodação e pela perseguição.
O texto que nos é proposto está incluído na quarta parte da epístola (cf. Heb 11,1-12,13).
Nessa parte, o autor insiste em dois aspectos básicos da vida cristã: a fé e a constância ou perseverança.
No que diz respeito à fé, o autor convida a percorrer o caminho dos “antigos” (cf. Heb 11,1-40); no que diz respeito à constância, exorta a aceitar com paciência os sofrimentos que a vida do cristão comporta, pois esses sofrimentos fazem parte das provas pedagógicas através das quais Deus nos faz chegar à perfeição (cf. Heb 12,1-13).
A exposição começa com a descrição da fé, aqui entendida como a “garantia dos bens que se esperam e a certeza das realidades que não se vêem” (Heb 11,1).
A “fé” é, nesta perspectiva, posta em relação com a esperança; ela dirige-se ao futuro e ao invisível. Alguns autores entendem esta “garantia” (“hypóstasis”) no sentido de “firme confiança” (Lutero, Erasmo e numerosos autores recentes).
A fé seria, nesta perspectiva, a firme confiança na possessão dos bens futuros, invisíveis por agora. É uma perspectiva diferente (embora complementar) da que transparece nos textos paulinos, onde a fé é, sobretudo, a adesão a Jesus – quer dizer, o estabelecimento de uma relação pessoal entre os crentes e o Senhor.
Na sequência, o autor vai apresentar uma autêntica galeria de figuras vétero-testamentárias que, por terem vivido na fé e da fé, são modelo para todos os crentes.
Em concreto, o nosso texto apresenta-nos as figuras de Abraão e de Sara.
Pela fé, Abraão acolheu o chamamento de Deus, deixou a sua casa e partiu ao encontro do desconhecido e do incómodo; pela fé, Abraão aceitou estabelecer-se numa terra estranha e aí habitar; pela fé, Sara pôde conceber e dar à luz Isaac, apesar da sua avançada idade; pela fé, Abraão não duvidou quando Deus o mandou sacrificar, no alto de um monte, o filho Isaac, o herdeiro das promessas e o continuador da descendência… Abraão não viu concretizar-se a promessa da posse da terra, nem a promessa de um povo numeroso; mas, pela fé, ele contemplou antecipadamente a realização das promessas de Deus, “saudando-as de longe”.
Assim, Abraão assumiu a sua condição de peregrino e estrangeiro, ansiando constantemente pela cidade futura, e caminhando ao encontro do céu, a sua pátria definitiva.
É precisamente esse exemplo que o autor da carta quer propor a esses cristãos perseguidos e desanimados: vivam na fé, esperando a concretização dos dons futuros que Deus vos reserva e caminhem pela vida como peregrinos, sem desanimar, de olhos postos na pátria definitiva.
ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão, considerar os seguintes desenvolvimentos:
• O autor deste texto convida o crente a confiar firmemente na possessão dos bens futuros, anunciados por Deus, mas invisíveis para já.
A nossa caminhada nesta terra está marcada pela finitude, pelas nossas limitações, pelo nosso pecado; mas isso não pode fazer-nos desanimar e desistir: viver na fé é, apesar disso, apontar à vida plena que Deus nos prometeu e caminhar ao seu encontro.
É esta esperança que nos anima e que marca a nossa caminhada, sobretudo nos momentos mais difíceis, em que tudo parece desmoronar-se e as coisas deixam de fazer sentido?
• A nossa tendência vai, tantas vezes, do “oito ao oitenta”, da euforia ao desânimo total. Num dia, tudo faz sentido; no outro, a tristeza e a dúvida afogam-nos e deixam-nos mergulhados no mais negro pessimismo… No entanto, o cristão deve ser o homem da serenidade e da paz; ele sabe que a sua existência não se conduz ao sabor das marés, mas que o sentido da vida está para além dos êxitos ou dos fracassos que o dia a dia traz.
Guiado pela fé, ele tem sempre diante dos olhos essas realidades últimas, que dão sentido pleno àquilo que aqui acontece.
ALELUIA – Mt 24, 42a.44
Aleluia. Aleluia.
Vigiai e estai preparados,porque na hora em que não pensaisvirá o Filho do homem.
EVANGELHO – Lc 12,32-48
Continuamos a percorrer o “caminho de Jerusalém”.
Desta vez, Jesus dirige-Se explicitamente ao grupo dos discípulos (designado como “pequeno rebanho” – cf. Lc 12,32).
Nas catequeses anteriores, Jesus falou sobre o desprendimento face aos bens da terra (cf. Lc 12,13-21) e sobre o abandono nas mãos de Deus (cf. Lc 12,22-34); agora, Jesus vai mostrar o que é necessário fazer para que o “Reino” seja sempre uma realidade presente na vida dos discípulos e para que os “tesouros” deste mundo não sejam a prioridade: trata-se de estar sempre vigilante, à espera da vinda do Senhor.
Na realidade, Lucas junta aqui parábolas que devem ter aparecido em contextos diversos; mas todas estão ligadas pelo tema da vigilância.
O nosso texto começa com uma referência ao “verdadeiro tesouro” que os discípulos devem procurar e que não está nos bens deste mundo (vers. 33-34): trata-se do “Reino” e dos seus valores.
A questão fundamental é: como descobrir e guardar esse “tesouro”? A resposta é dada em três quadros ou “parábolas”, que apelam à vigilância.
A primeira parábola (vers. 35-38) convida a ter os rins cingidos e as lâmpadas acesas (o que parece aludir a Ex 12,11 e à noite da primeira Páscoa, celebrada de pé e “com os rins cingidos”, antes da viagem para a liberdade), como homens que esperam o senhor que volta da sua festa de casamento.
Os crentes são, assim, convidados a estarem preparados para acolher a libertação que Jesus veio trazer e que os levará da terra da escravidão para a terra da liberdade; e são também convidados a acolherem “o noivo” (Jesus) que veio propor à “noiva” (os homens) a comunhão plena com Deus (a “nova aliança”, representada na teologia judaica através da imagem do casamento).
A segunda parábola (vers. 39-40) aponta para a incerteza da hora em que o Senhor virá.
A imagem do ladrão que chega a qualquer hora, sem ser esperado, é uma imagem estranha para falar de Deus; mas é uma imagem sugestiva para mostrar que o discípulo fiel é aquele que está sempre preparado, a qualquer hora e em qualquer circunstância, para acolher o Senhor que vem.A terceira parábola (vers. 41-48) parece dirigir-se (é nesse contexto que a pergunta de Pedro nos coloca) aos responsáveis da comunidade.
Nas palavras originais de Jesus, a parábola devia ser uma crítica aos responsáveis do Povo de Israel; mas, na interpretação de Lucas, a parábola dirige-se aos animadores da comunidade cristã, que devem permanecer fiéis às suas tarefas de animação e de serviço: se algum deles descuida as suas responsabilidades no serviço aos irmãos e usa as funções que lhe foram confiadas de forma negligente ou em benefício próprio, será castigado.
Nos dois últimos versículos, o castigo diversifica-se de acordo o tipo de desobediência: os que desobedeceram intencionalmente serão mais castigados; os que desobedeceram não intencionalmente serão menos castigados. A referência às “vergastadas” deve ser entendida no contexto da linguagem dos pregadores da época e manifesta a repulsa de Deus por aqueles que negligenciam a missão que lhes foi confiada.
Provavelmente Lucas tem diante dos olhos o exemplo de alguns animadores cristãos que, pela sua preguiça ou pela sua maldade, perturbavam seriamente a vida das comunidades a que presidiam.
Em qualquer caso, estas linhas sublinham a maior responsabilidade daqueles que, na Igreja, desempenham funções de responsabilidade… A última afirmação (“a quem muito foi dado, muito será exigido, a quem muito foi confiado, mais se lhe pedirá – vers. 48b) é claramente dirigida aos responsáveis da comunidade; mas pode aplicar-se a todos os que receberam dons materiais ou espirituais.
ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão e a partilha da Palavra, considerar os seguintes dados:
• A vida dos discípulos de Jesus tem de ser uma espera vigilante e atenta, pois o Senhor está permanentemente a vir ao nosso encontro e a desafiar-nos para nos despirmos das cadeias que nos escravizam e para percorrermos, com Ele, o caminho da libertação.
O que é que nos distrai, que nos prende, que nos aliena e que nos impede de acolher esse dom contínuo de vida?
• Ser cristão não é um trabalho “das nove às cinco”, ou um “hobby” de fim-de-semana; mas é um compromisso a tempo inteiro, que deve marcar cada pensamento, cada atitude, cada opção, vinte e quatro horas por dia… Estou consciente dessa exigência e suficientemente atento para marcar, com o selo do meu compromisso cristão, todas as minhas acções e palavras?
• Estou suficientemente atento e disponível para acolher e responder aos apelos que Deus me faz e aos desafios que Ele me apresenta através das necessidades dos irmãos? Estou suficientemente atento e disponível para escutar os sinais, através dos quais Deus me apresenta as suas propostas?
• Por vezes, os discípulos de Jesus manifestam a convicção de que tudo vai de mal a pior, que esta “geração rasca” está perdida e que não é possível fazer mais nada para tornar o mundo mais humano e mais feliz… Isso não será, apenas, uma forma de mascararmos o nosso egoísmo e comodismo e de recusarmos ser protagonistas empenhados na construção desse “Reino” que é o tesouro mais valioso?
• A Palavra de Deus que hoje nos é proposta contém uma interpelação especial a todos aqueles que desempenham funções de responsabilidade, quer na Igreja, quer no governo, quer nas autarquias, quer nas empresas, quer nas repartições… Convida cada um a assumir as suas responsabilidades e a desempenhar, com atenção e empenho as funções que lhe foram confiadas.
A todos aqueles a quem foi confiado o serviço da autoridade, a Palavra de Deus pergunta sobre o modo como nos comportamos: como servos que, com humildade e simplicidade cumprem as tarefas que lhes foram confiadas, ou como ditadores que manipulam os outros a seu bel-prazer? Estamos atentos às necessidades – sobretudo dos pobres, dos pequenos e dos débeis – ou instalamo-nos no egoísmo e no comodismo e deixamos que as coisas se arrastem, sem entusiasmo, sem vida, sem desafios, sem esperança?
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