A primeira, fundamental, é que nunca a união total, fim e ideal do matrimônio, pode ser plenamente realizada. Porque nunca um ser humano é exatamente o complemento de um outro; porque nunca dois seres humanos se ajustam perfeitamente; porque é próprio da natureza do homem procurar uma perfeição que na terra se não encontra.
Tudo isto deriva da nossa condição de criaturas, dos nossos limites. E, para começar, nunca dois seres humanos são inteiramente permeáveis um ao outro. Há em cada um de nós uma margem irredutível de incomunicabilidade que nos isola e onde só penetra Deus. Por esse motivo, por melhor que conheçamos a um dos nossos semelhantes, sempre nos pode reservar surpresas: o filho reserva-as aos seus pais, o esposo reserva-as à esposa.
Não é possível um conhecimento mútuo total. Não é possível chegar a compreender-se sem reticências. Cada um de nós possui uma certa qualidade de sentimento, um certo recanto da inteligência que nunca se torna inteligível a outro na sua totalidade. É impossível que dois seres humanos vivam na intimidade do matrimônio sem que um deles tenha esta ou aquela maneira de ver ou de julgar que o outro não compreenda, sem que não haja, ao menos quanto a pormenores, certas diferenças na maneira de apreciar as coisas, sem que se intrometam ligeiros mal entendidos… Os esposos devem aceitar tudo isto, dado que é um fruto da condição humana.
Mais ainda, nenhum de nós é perfeito. Estamos mesmo cheios de defeitos. Não se pode exigir a perfeição do próprio cônjuge, do mesmo modo que não se pode esperar para casar-se ter encontrado um ser perfeito. Os esposos devem tender juntos para a perfeição; devem ajudar-se mutuamente a atingi-la. Se a vida foi dada ao homem para atingir o seu pleno desenvolvimento, isto é, a sua perfeição, e se o matrimônio tem lugar no limiar da vida – para que o homem e a mulher realizem juntos a sua viagem – ele une normalmente dois seres que estão longe de ser perfeitos, que devem tender para a perfeição e tender para ela conjuntamente, que não podem, por conseguinte, pretender ser perfeitos nem exigir do outro que o seja, mas sim empreender generosamente o caminho que têm de percorrer unidos, aceitando-se tal como são.
Há, pois, uma dupla imperfeição no ponto de partida da união: por um lado, os esposos, nem um nem outro, são perfeitos; por outro, as suas personalidades não encaixam exatamente uma na outra. Pode acontecer que, por um acaso feliz, dois jovens se encontrem tão perfeitamente adaptados um ao outro que pareça não terem nenhuma concessão a fazer-se. Mas este caso é absolutamente excepcional. É mais frequente encontrar jovens que se não decidem a casar-se porque os partidos que se lhe oferecem não parecem realizar inteiramente o seu ideal; e o tempo passa; e um dia chega em que passaram já da idade e não realizaram o que devia ter sido a obra da sua vida.
É destino do homem possuir um ideal absoluto, empreender a sua realização, não a conseguir, mas aproximar-se mais ou menos dela. São Paulo comparou a vida a uma corrida em que se tenta alcançar o prêmio. Tentar alcançar o prêmio é atuar o melhor que se pode. Nem sequer isto é absoluto; consegue-se atuar mais ou menos bem; e é preciso que atuemos o melhor possível. O matrimônio não altera a lei do homem.
Os esposos são dois seres imperfeitos que unem as suas fraquezas a fim de serem juntos menos fracos e de realizar o seu destino, apoiando-se mutuamente, melhor do que o fariam sós. A obra que levam a cabo, a grande obra do lar que constituem, participará das suas virtudes e dos seus defeitos. Ficará com a marca das suas fraquezas e, não obstante, devem empreendê-la, sem se deixarem deter por essas insuficiências, porque uma obra imperfeita nem por isso deixa de ser uma obra, e, se bem que imperfeita, é também perfeita enquanto possui valores de existência, valores reais, valores humanos, valores de vida; não realiza uma perfeição total, não realiza toda a perfeição, mas, ainda que incompleta e reduzida, é, em todo o caso, uma obra, uma obra humana, limitada e imperfeita, como tudo o que sai da mão dos homens, mas uma obra, alguma coisa, algo de belo. Vale mais uma obra imperfeita do que obra nenhuma.
O matrimônio não é só uma obra humana e imperfeita, mas também divina e chamada à perfeição, porque instituída pelo próprio Deus para o homem.
Os esposos devem, portanto, aceitar-se. Aceitar que o outro não realize todo o seu sonho, que não tenha exatamente as mesmas tendências e os mesmos gostos. O ser humano é um ser rico; uma personalidade humana tem múltiplos aspectos; e o amor nasce daquilo que se encontra de complementar noutra pessoa em determinado número de pontos; mas não é possível encontrá-lo em todos.
Geralmente, quando o amor desponta, só presta atenção ao que agrada, e, se vê o mais, considera-o de pouca importância. Quando chega, porém, o momento de casarem e viverem juntos, de passarem toda a vida juntos, mil diferenças, de maneira de ver, de educação, de costumes, ameaçam provocar choques ou cisões interiores, se os esposos não estão dispostos a concessões, se o seu amor se não depura, como dissemos já, voltando-se para o bem daquele por cuja felicidade se fizeram fiadores.
Uma rapariga não tem ordem. O seu noivo acha esta desordem encantadora. Mas, uma vez que é marido, irrita-se por encontrar buracos nas peúgas ou por ter de procurar o papel de carta por todos os lados, acabando, afinal, por encontrá-lo junto do açúcar e dos copos, no armário da sala de jantar. Aquele rapaz tem uma rudeza que faz o encanto da sua noiva – porque ela vê nisso o sinal de uma energia viril. Mas quando o marido esvazia os pratos sem se preocupar com o apetite da sua mulher, não pensando em ajudá-la na menor coisa, esta rudeza converte-se em grosseria e perde a sua atração.
E em ambos os casos, os esposos podem possuir o mesmo ideal moral e católico, ter saído de meios muito parecidos, estarem ambos animados das melhores intenções: cada um deve aceitar o outro tal como é, e trabalhar pacientemente por corrigi-lo dos seus defeitos, sem perder de vista que ninguém se corrige totalmente e que a si próprio se tem de corrigir, tanto como ao outro.»
(Jacques Leclercq, “Casamento e família”, páginas 158 e 159)
com minha benção
Pe Emílio Carlos+
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