
2. Praza a Deus eu o saiba entender, quanto mais dizer, pois creio que nem sei qual é espiritual, nem quando se lhe mistura o sensível, nem sei como me ponho a falar disto. É como quem ouve falar ao longe e não entende o que dizem; assim sou eu; algumas vezes não devo entender o que digo e o Senhor permite que seja bem dito. Se de outras vezes for disparate, é o mais natural em mim não acertarem nada.
3. Parece-me agora a mim que, quando Deus chega uma pessoa ao claro conhecimento do que é o mundo, e que coisa é o mundo, e que há outro mundo e a diferença que vai de um ao outro, e que um é eterno e o outro sonhado; ou que coisa é amar ao Criador ou à criatura (isto conhecido por experiência, que são coisas bem diferentes o pensar e crer), e ver e experimentar o que se ganha com um e se perde com o outro; e o que é ser Criador e o que é ser criatura, e outras muitas coisas que o Senhor ensina a quem se quer prestar a ser ensinado por Ele na oração, ou a quem ama Sua Majestade, essa pessoa ama muito diferentemente dos que não chegamos ainda aqui.
4. Poderá ser, irmãs, que vos pareça que tratar disto é descabido, e digais que estas coisas que digo já todas as sabeis. Praza a Deus que assim seja e que saibais isto do modo que faz ao caso: impresso nas entranhas; pois, se o sabeis, vereis que não minto ao dizer que, a quem Deus traz a este ponto, tem este amor. Estas pessoas, que Deus faz chegar a este estado, são almas generosas, almas reais; não se contentam com amar coisa tão ruim como estes corpos, por formosos que sejam, por muitas graças que tenham, bem que lhes agrade à vista e louvem o Criador. Mas, para aí se deter, não. Digo "deter-se", de maneira a que, por estes motivos, lhe tenham amor. Parecer-lhes-ia que amam coisa sem substância e que se empregam em querer bem a uma sombra; teriam vergonha de si mesmos e não teriam cara, sem grande confusão sua, para dizer a Deus que O amam.
5. Dir-me-eis: "esses tais não saberão amar nem retribuir a amizade que lhes tiverem". Pelo menos, pouco se lhes dá que lha tenham. E ainda que num repente a natureza os leve, algumas vezes, a se alegrarem por serem amados, em voltando a si, vêem que é disparate, a menos que se trate de pessoas que lhes hão-de aproveitar à alma com sua doutrina e oração. Todas as outras vontades as cansam, pois entendem que nenhum proveito trazem consigo, antes lhes poderia até causar dano, não porque as deixam de agradecer e retribuir, encomendando a Deus aqueles que lhes têm essa amizade. Mas consideram-no como se esses que as estimam deixassem a paga a cargo do Senhor, pois entendem que dEle é que procede isto de serem amadas por outras pessoas. Parece-lhes que em si não têm por que se lhes queira, e assim, logo lhes parece que lhes querem porque Deus lhes quer, e deixam a Sua Majestade o pagar e Lhe suplicam que o faça, e com isto ficam livres, como se isto em nada as tocasse. E, olhando bem as coisas, a não ser com as pessoas que digo que nos podem fazer bem para ganhar virtudes, penso algumas vezes na grande cegueira que traz

6. Agora notem que, quando queremos o amor de alguma pessoa, sempre se pretende algum interesse de proveito ou satisfação nossa, e estas pessoas perfeitas já têm debaixo dos pés todos os bens e regalos que o mundo lhes pode dar; já estão de maneira que contentamentos, ainda mesmo que os queiram, a modo de dizer, não os podem ter, a não ser que seja com Deus ou em tratar de Deus. Que proveito, pois, lhes pode vir de serem amadas?
7. Quando se lhes representa esta verdade, riem-se de si mesmas, da preocupação que algum tempo tiveram, se era ou não paga a sua amizade. Embora a vontade seja boa, logo nos é muito natural querer a paga. Vindo esta a cobrar-se, a paga é em palha; que tudo é ar e sem tomo que o vento leva. Porque, ainda quando muito nos quisessem, que é isto que nos fica? Assim, se não é para proveito da alma com as pessoas que tenho dito, porque vem a ser de tal sorte o nosso natural que, se não há algum amor, logo se cansa, tanto se lhes dá de ser queridas como não.
Parecer-vos-á que estas tais não querem a ninguém nem sabem querer senão a Deus. Querem muito mais, e com verdadeiro amor, e com mais paixão e amor mais proveitoso; enfim, é amor. E estas tais almas são sempre afeiçoadas a dar muito mais do que a receber; até com o mesmo Criador lhes acontece isto. Digo que este merece o nome de amor, pois estas outras afeições baixas têm-lhe usurpado o nome.
8. Parecer-vos-á também que, se não amam pelas coisas que vêem, a que se afeiçoam?
Verdade é que amam o que vêem e afeiçoam-se ao que ouvem; mas estas coisas que vêem são estáveis. Logo estes, se amam, passam além dos corpos, põem os olhos nas almas e olham se há nelas coisas para se amar. Se as não há, mas vêem algum princípio ou disposição para que, se aprofundarem, achem ouro nesta mina, têm-lhe amor, não lhes dói o trabalho; não há coisa custosa que uma alma destas não faça de boa vontade por aquela a quem quer bem, porque deseja continuar a amá-la e sabe muito bem que, se ela não tem bens espirituais e ama muito a Deus, é impossível. E digo que é impossível, por mais que a obrigue e se mate, querendo-lhe, e lhe faça todas as boas obras que puder e possua reunidas em si todas as graças da natureza; a vontade não terá força, não poderá permanecer firme. Já sabe e tem experiência do que é tudo; não lhe farão pagar em moeda falsa. Vê que não são um para o outro e que é impossível perdurar o quererem-se mutuamente, porque é amor que se há-de acabar com a vida. Se a outra não guarda a lei de Deus e entende que não O ama, hão-de ir para lugares diferentes.
9. E este amor, que só aqui dura, uma alma, a quem o Senhor já infundiu verdadeira sabedoria, não o estima em mais do que vale, nem em tanto.
Porque, para os que gostam de gozar coisas do mundo, deleites e honras e riquezas, alguma coisa valerá, se for rica e tiver partes para dar passatempo e recreação; mas, a quem tudo isto aborrece, já pouco ou nada se lhe dará disto.
Ora, pois, aqui, - se tem amor -, é a paixão para fazer com que essa alma ame a Deus, para ser por Ele amada; porque sabe, como digo, que, de outro modo, não pode perdurar em lhe querer. É amor muito à própria custa; não deixa de fazer tudo o que pode para que lhe aproveite. Perderia mil vidas por um pequeno bem seu.
Oh! precioso amor, que vai imitando o Capitão do Amor, Jesus, nosso Bem!
Caminho de Perfeição - CAPÍTULO 6
Santa Teresa de Jesus
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