A purificação do espírito humano (o caminho da espiritualidade) começa com a “reforma” do coração (os afetos) e da vida (as atitudes). Trata-se de reformar com decisão tudo aquilo que nos separa do amor de Deus. Isto deve ocorrer com o intuito de uma avaliação no sentido de ver se nossas escolhas estão em conformidade com os ensinamentos e as opções de Jesus. Para uma conversão eficaz é preciso que cada um descubra o sentido de sua vida. Na abertura de sua vida pública, na exposição temática do Reino, Jesus recomenda a conversão como prioridade para o discipulado:Depois que João Batista foi preso, Jesus voltou para a Galiléia, pregando a Boa Notícia de Deus: “O tempo já se cumpriu, e o Reino de Deus está próximo. Convertam-se e acreditem na Boa Notícia” (Mc 1,14s).
Igualmente, no diálogo com a mulher samaritana (cf. Jo 4,42) junto ao poço de Jacó, Jesus define os verdadeiros adoradores: aqueles que exercitam sua espiritualidade em espírito e verdade (4, 23s). Hoje, em muitos lugares onde se ensina, prega ou assessora meditações, as pessoas têm alguma dúvida quanto a essa adoração. Já escutei dizerem que se tratava de uma autêntica “charada” proposta por Jesus para confundir a leiga samaritana. Teria sido assim? Não creio! A revelação, especialmente no caso da samaritana, é paulatina, crescente e definitiva. Inclusive, ele se manifesta a ela claramente como o Messias, coisas que para outros tantos ele deixou subentendido.
Era o que Jesus queria. A samaritana foi direto ao assunto. Agora ela começava a discutir teologia com ele. Ao mencionar que “nossos pais adoraram...” ela se refere à polêmica existente entre judeus e samaritanos, onde o verdadeiro culto a Deus só podia ser levado a efeito no templo, em Jerusalém, conforme os ditames da reforma deuteronomista de Esdras, no século VII a.C. Nessa diferença existente entre judeus e samaritanos, quanto ao local do culto, começava a grande revelação de Jesus: Mulher, acredite em mim. Está chegando a hora, em que não adorarão o Pai, nem sobre esta montanha nem em Jerusalém. Vocês adoram o que não conhecem, nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos judeus. Mas está chegando a hora, e é agora, em que os verdadeiros adoradores vão adorar o Pai em espírito e verdade. Porque são estes os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito, e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade (vv. 21-24).
Trata-se da grande lição do cristianismo universal, que não mais ficará restrito a lugares de culto, mas a todo o universo, templo onde Deus reina. Nos evangelhos há duas expressões que, para muitos, passam despercebidas: céu e céus, e que não são sinônimos. Por céu entendemos o lugar no Alto, onde Deus mora. Já céus nos dá outra idéia. Trata-se do universo onde encontramos a presença de Deus. A terra está incluída na expressão céus.
O anúncio “está chegando a hora...” coloca toda a situação de iminência de um fato novo (morte e ressurreição de Jesus), real e escatológico, quando serão abolidos os locais fixos de culto, e o Filho de Deus será adorado e glorificado a partir do coração das pessoas. Esta referência tem ênfase no versículo 23.
Mas está chegando a hora, e é agora, em que os verdadeiros adoradores vão adorar o Pai em espírito e verdade. Porque são estes os adoradores que o Pai procura.
Os verdadeiros adoradores são os fiéis de todos os tempos, que reconhecem a presença de Deus nos céus e assim desenvolvem uma espiritualidade consciente, amando o Deus da vida e seguindo o seu Cordeiro. São aqueles que crêem e foram batizados (cf. Mc 16,16) e por essas duas atitudes que se completam obtêm a salvação. Adorar em espírito e verdade é ir além do mero formalismo das práticas dos fariseus, que professavam uma fé superficial, dentro de uma religião alegórica, tradicional, burocrática.
Esse novo tipo de adoração preconizada por Jesus é relacionar-se com Deus sob o influxo do Espírito Santo. Só a iluminação do Espírito de Deus é capaz de proporcionar essa adoração. Nas Escrituras vemos que o Espírito Santo move as pessoas no sentido de uma conversão ao bem e à justiça. Assim, ele, igualmente, move os crentes no sentido de adorar filialmente ao Pai. Os verdadeiros adoradores, os que se deixam conduzir pelo sopro do Espírito, são os renascidos da água e do Espírito (cf. Jo ,5). A verdade é associada à atividade do Espírito: Se vocês me amam, obedecerão aos meus mandamentos. Então, eu pedirei ao Pai, e ele dará a vocês outro Advogado, para que permaneça com vocês para sempre. Ele é o Espírito da Verdade, que o mundo não pode acolher, porque não o vê, nem o conhece. Vocês o conhecem, porque ele mora com vocês, e estará com vocês (Jo 14, 15ss).
O termo adorar em verdade indica o ato de amar a Deus com pureza de espírito, atitude de busca filial e coerência de vida. Adoramos a Deus com o íntimo do nosso espírito, porque ele é espírito. Adoramos amando porque ele é amor. Amando assim, aproximamos nosso espírito do dele. Igualmente amamos em verdade (com sinceridade e compromisso) porque Deus é verdade.
Mas pode a mãe se esquecer do seu nenê, pode ela deixar de ter amor pelo filho de suas entranhas? Ainda que ela se esqueça, eu não me esquecerei de você ( 49,15).
Converter-se, basicamente, é mudar de rota. A gente vai por uma estrada e de repente decide tomar outro caminho, mais à direita ou à esquerda. Diz-se que fizemos uma “conversão” para um lado ou para o outro. No terreno da espiritualidade, converter-se é mudar de vida, é deixar o caminho do pecado ou da indiferença para abraçar o itinerário de Jesus. Converter-se é reconciliar-se com o bem e a justiça, renunciando à mediocridade de uma vida sem sentido, longe de Deus, para uma adesão àquela vida cristã preconizada por Jesus em seu evangelho.
Cristo exige um seguimento radical que abrange o homem todo e todos os homens, que envolve todo o mundo e o cosmo todo. Essa radicalidade faz com que a conversão seja um processo nunca encerrado, tanto em nível pessoal quanto em nível social (P 193).
Deus (espiritual) e o próximo (social) são realidades indissociáveis. O desvelo com as questões sociais precisa ser conseqüência da nossa adesão ao amor e ao plano de Deus. Essa conversão ambivalente é fruto de uma fé elevada a conseqüências evangélicas e evangelizadoras. Convertermo-nos ao Pai convertendo-nos a seus filhos. Uma atitude é decorrente da outra, Não é possível separar.
É preciso então apelar ás capacidades espirituais e morais das pessoas e à exigência permanente de uma conversão interior, a fim de obter mudanças sociais que estejam realmente ao seu serviço. A prioridade reconhecida à conversão do coração não elimina absolutamente, antes impõe a obrigação de trazer às instituições e às condições de vida, quando estas provocam o pecado, o saneamento conveniente, para que sejam conformes às normas da justiça e favoreçam o bem, em vez de pôr-lhe obstáculos (Catecismo 1888). A conversão é exigida da espiritualidade mas também da solidariedade, pois se trata de uma realização da essência do cristianismo, que é a orientação na direção daquele que é Vida. Sob esse prisma, a vida espiritual é eminentemente a vivência concreta da alegria pascal. É a vitória da vida sobre a morte. A ressurreição vem pela cruz. A alegria dos cristãos nasce da vitória sobre o sofrimento. Só uma espiritualidade bem elaborada é capaz de trazer os frutos de conversão como Deus quer.
O ponto de partida é o auto-conhecimento; não podemos sair em busca do conhecimento externo se desconhecemos nosso coração e nossa mente. Vale a dica do filósofo Sócrates († 399), fundador da axiologia (filosofia moral), que recomendou gno,ti sVe,auton (conhece-te a ti mesmo). Jejuar é impor ao corpo e ao espírito, através de uma privação, uma ascese que limpa e dá a conhecer o interior de cada um. Sobre o jejum, feito de qualquer jeito, o oráculo de Isaias advertiu: “O jejum que eu quero é este: acabar com as prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar qualquer jugo; repartir a comida com quem passa fome, hospedar em sua casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu, e não se fechar à sua própria gente. Se você fizer isso, a sua luz brilhará como a aurora, suas feridas vão sarar rapidamente, a justiça que você pratica irá à sua frente e a glória de Javé virá acompanhando você. Então você clamará, e Javé responderá; você chamará por socorro, e Javé responderá: ‘Estou aqui!’ Isso, se você tirar do seu meio o jugo, o gesto que ameaça e a linguagem injuriosa; se você der o seu pão ao faminto e matar a fome do oprimido. Então a sua luz brilhará nas trevas e a escuridão será para você como a claridade do meio-dia; Javé será sempre o seu guia e lhe dará fartura até mesmo em terra deserta; ele fortificará seus ossos e você será como jardim irrigado, qual mina borbulhante, onde nunca falta água; as suas ruínas antigas serão reconstruídas, você levantará paredes em cima dos alicerces de tempos passados. Todos vão chamá-lo reparador de brechas e restaurador de ruínas, onde se possa morar” (58, 6-12). Mais tarde Jesus também recomendou: “Quando vocês jejuarem, não fiquem de rosto triste como os hipócritas. Eles desfiguram o rosto para que os homens vejam que eles estão jejuando. Eu garanto a vocês: eles já receberam a recompensa” (Mt 6,15). O jejum (ato íntimo) indica a solidariedade (ato externo).
O encontro com Deus (a oração e a meditação)
Na oração, o ser humano se volta integralmente para o Deus da Vida, estabelecendo com ele uma relação visceral e um conhecimento íntimo. Reconhecendo-o como Criador, o homem se despe do egoísmo e da auto-suficiência que o esmagam para se tornar um legítimo ser-com-os-outros. Orar, como tudo na vida, também requer coerência: “quando orarem, não sejam como os hipócritas que gostam de rezar de pé, nas sinagogas e nas esquinas, para serem admirados pelos homens. Eu garanto a vocês: eles já receberam a recompensa” (Mt 6.5). A palavra hipócrita é enraizada no grego: hipó (abaixo) e xrites (julgamento). Uma atitude hipócrita é aquela que está abaixo da crítica.
O encontro com o próximo (a esmola, a caridade)
Uma vez encontrado consigo mesmo e com Deus, o homem está apto a se encontrar com o próximo. Estas são as três etapas da conversão. É o amor correndo nas muitas direções das hastes da cruz. Fugindo da concepção irrisória e moderna de esmola, nossa doação deve ser mais no sentido profundo, radical e misericordioso da caridade. É Jesus que nos diz “Quando você der esmola, não mande tocar trombeta na frente, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem elogiados pelos homens” (Mt 6,2).
A estes encontros se poderia somar um quarto: com o cosmo, a natureza, o meio-ambiente, a criação de Deus, que hoje sofre tantas ameaças, e cuja violação tipifica uma ruptura com o projeto original. Quem ama a Deus deve igualmente amar aquilo que ele criou. Quem ama as pessoas deve zelar pela oikía (casa-terra) onde elas vivem. É curioso que Jesus classifica como hipócritas aqueles que praticam uma tentativa de espiritualidade, mais tendente à incoerência, alegoria e inconsistência.
A conversão, baseada numa espiritualidade vigorosa, gira em torno da fé que conduz às boas obras, segundo o apóstolo Tiago (2,17). Quem realmente crê, coloca essa crença a serviço da transformação dos corações (a partir do seu), gerando uma irreversível e incontrolável atitude fraterna. Fé sem obras transformadora tem pouco valor. Na identificação da espiritualidade verdadeira, aparece a meta-noia (metánoia), uma mudança de sentimentos, de forma de pensar, de rumo e de atitudes. Se não mudarmos nosso coração, cheio das coisas do mundo, não conseguiremos suportar a exigência da conversão. Se colocarmos vinho novo (as exigências do evangelho) em vasilhas velhas (corações fechados e corrompidos) tudo irá se perder (cf. Mc 2,22). É preciso mudar os corações: Diga, portanto: Assim diz o Senhor Javé: Eu vou recolher vocês do meio dos povos, vou ajuntá-los de todos os países para os quais foram levados, e lhes darei depois a terra de Israel. Logo que aí chegarem, eles removerão dela todos os seus ídolos e abominações. Darei a eles um coração íntegro, e colocarei no íntimo deles um espírito novo. Tirarei do peito deles o coração de pedra e lhes darei um coração de carne. Tudo isso para que sigam os meus estatutos e ponham em prática as minhas normas. Então eles serão o meu povo, e eu serei o seu Deus (Ez 11,17-20).
Os místicos, especialistas em oração recomendam que, para um encontro eficaz com Deus é necessário que se faça um “deserto interior”, pois Deus não está no barulho. É preciso buscá-lo enquanto ele se deixa encontrar. Clamar seu nome enquanto ele está por perto (cf. Is 55,6). Nessa perspectiva, o deserto é uma etapa normal no itinerário da fé. Há momentos em que o mundo parece vazio, inabitável, e esse buraco parece ser o vazio da ausência de Deus em nossas vidas. Deus não cansa de nos exortar à mudança de rumo.
Que o ímpio deixe o seu caminho e o homem maldoso mude os seus projetos. Cada um volte para Javé e ele terá compaixão; volte para o nosso Deus, pois ele perdoa com generosidade (Is 55, 7).
Certa secura espiritual que às vezes experimentamos, reflete o distanciamento de nossa vida com relação àquele itinerário que Deus projetou para nos resgatar do jugo do pecado. E é justamente por causa de nosso coração seco, duro, inconverso e indiferente, que Deus parece se distanciar de nós, cada vez mais. Em muitas ocasiões chegamos a acusá-lo de omisso, mas fomos nós, pelos mais variados desvios da vida, que nos afastamos dele, fazendo pouco caso de seu amor e rejeitando seu plano de salvação. Num mundo assim, onde Deus não é mais louvado e reverenciado, a única figura visível é a do mal e dos falsos ídolos do mundo. Nesse caos, a única escapatória é aquela engendrada pelo tentador, de nos aproveitarmos do poder e da riqueza para dominarmos os homens e tomar posse do mundo. É a estrutura do pecado, às vezes uma superestrutura, agindo em superveniência ao bem. Jesus Cristo passou por essas tentações. É ele que nos dá o itinerário para vencê-las: a fé.
Há diversas passagens em que a Bíblia (Antigo e Novo Testamento) se refere ao deserto como local de retiro, espaço de fuga ou situação de provação. É a partir do deserto que João Batista se apresenta anunciando a chegada daquele que é mais forte que ele e vai subjugar todo o mal (cf. Mc 1,4-7). A referência ao precursor, vindo do deserto funciona como uma antítese ao Templo e à própria cidade de Jerusalém, até então o centro religioso e político de Israel. No êxodo, o povo hebreu passou quarenta anos no deserto, em preparação a tomada de posse da terra da promessa (cf. Ex 16,35).
No tocante à conversão, especialmente dos leigos, há que se ter um especial cuidado com a laicização do mundo. Embora se requeira dos leigos o desenvolvimento de uma espiritualidade laica, a vida dos cristãos deve observar os limites desse processo. Hoje em dia a mística está dando lugar a uma laicização pragmática, onde tudo é mecânico e funcionalista. As pessoas usam a religião para seu próprio interesse, sem buscar naquele segmento a Palavra, os Sacramentos e a Salvação. Na América Latina o povo ainda conserva alguns elementos da espiritualidade tradicional, o que não sucede na Europa, conforme alerta Frei Betto, em http://www.adital.com.br/
A crescente laicização da sociedade européia reduz drasticamente o número de fiéis católicos e a freqüência à igreja. O catolicismo europeu, atrelado a uma espiritualidade moralista e a uma teologia acadêmica, afastado do mundo dos pobres e imbuído de um saudosismo ultramontano que o faz ignorar o Concilio Vaticano II, perde sempre mais o entusiasmo evangélico e a ousadia profética.
O ser humano ao se converter ao amor de Deus, à graça de Jesus e às luzes do Espírito Santo (cf. 2Cor 13,13), quando faz a experiência do Absoluto, Deus irrompe em sua vida, tornando-se presente na família, na sociedade, no mundo. É salutar que se creia e proclame que Deus está presente no mundo, que faz parte, como já dissemos, dos céus. Se não o encontramos é porque nosso esforço é ineficaz, nossa busca é ilusória e nossos planos limitados. Cristo quando reúne os homens para um deserto, não se distancia deles, mas os faz adentrar nos espaços de Deus. Estar em processo de conversão é aderir ao espírito das bem-aventuranças. Negar-se o recolhimento do deserto significa negar a dimensão vertical da existência, em última análise, a relação com Deus.
Como sabemos, espiritualidade é viver segundo o Espírito. Ora – como diz São Paulo – se vivemos pelo Espírito devemos por ele pautar também nossa conduta (cf. Gl 5,25). Nesse contexto, como ensinam os mestres da mística, nossa conversão precisa ser consciente, crescente e comunicante. Um dos pontos altos dessa metánoia deve será a revelação de que, pela graça, estamos mortos para o pecado, mas vivos para Deus (cf. Rm 6,1).
Seguir a Jesus implica em ter fé em suas propostas. Sob esse aspecto, a fé é sempre um salto no escuro. É dizer sim a um projeto que a gente não vê; é aderir a uma causa que não sabemos como vai terminar. Fé, sobretudo, é confiar. Crer no Filho de Deus é reconhecer a verdade do caminho por ele proposto, para assim termos vida plena. Jesus não quis ser aclamado e aplaudido como uma celebridade, nem consolado ou chorado. Ele quis – e quer – ser seguido e amado. Ele quer ser acolhido nos corações humanos como o sotér (o salvador) e como o kyrios (o Senhor). Ele quer ser seguido, e para isto é preciso conversão por parte dos seguidores. Conversão implica em adesão ao projeto de Deus e solidariedade às dores do irmão.
Jesus – é sabido por todos – nasceu pobre. Ao invés de vir ao mundo em um palácio, ele nasceu numa gruta, numa estrebaria, para adicionar em nosso processo de conversão um ingrediente radical a mais: a nossa opção pelos pobres, pelos abandonados, aos excluídos. Ele encarnou a pobreza que se doa alegremente. Aí reside o mistério da entrega, cuja reflexão sempre nos cabe atualizar, como ensina Bruno Forte: A pobreza de Jesus, junto com sua radical escolha de liberdade, o transforma em homem de alegria, capaz de gratidão e encantamento diante do dom da fidelidade sempre nova ao Pai. Pobre em relação ao passado, ele se abre para o futuro; pobre em relação ao presente, com fantasia e coragem, sente-se capaz de transformá-lo; pobre diante do obscuro e pesaroso futuro que se lhe apresentam, Jesus vence a tentação do medo e se abandona completamente nas mãos do Pai.
Fidelidade é a fé levada às últimas consequências. Você só se torna fiel àquilo que crê. Se crermos no amor de Deus e que Jesus Cristo é o Senhor, assumimos nossa fidelidade à missão e ao discipulado. É aí que repousa a base da mudança (conversão, metánoia) de nossa vida – às vezes medíocre ou cheia de pecados – em vida cristã autêntica. Deus é fiel, sempre! Sobre a fidelidade de Deus às suas promessas, há na antiga profecia judaica um texto deveras significativo: Eis que chegarão dias – oráculo de Javé – em que eu farei uma aliança nova com Israel e Judá: Não será como a aliança que fiz com seus antepassados, quando os peguei pela mão para tirá-los da terra do Egito; aliança que eles quebraram, embora fosse eu o Senhor deles – oráculo de Javé. A aliança que eu farei com Israel depois desses dias é a seguinte – oráculo de Javé: Colocarei minha lei em seu peito e a escreverei em seu coração; eu serei o Deus deles, e eles serão o meu povo. Ninguém mais precisará ensinar seu próximo ou seu irmão, dizendo: “Procure conhecer a Javé”. Porque todos, grandes e pequenos, me conhecerão – oraculo de Javé. Pois eu perdôo suas culpas e esqueço seus erros (Jr 31, 31-34).
Nós, em geral, cuidamos muito mais da parte física do que da espiritual. Quando nos sentimos debilitados ou enfermos, não titubeamos em ir ao médico. Muitas vezes, e isto é comum, nosso espírito está doente, nossos atos parecem estar em descompasso com nossas palavras, dizemos uma coisa e fazemos outra, não oramos mais, não frequentamos os sacramentos, esquecemos de perdoar, partilhar, acolher, amar... Esse espírito doente está a merecer um tratamento de choque, urgente, que pode ser chamado de retomada, revisão de vida ou simplesmente conversão. Converter-se é mudar de vida.
Os graves males do espírito, como orgulho, vaidade, fechamento, egoísmo, luxúria, ódio, ambição, podem nos levar à perda da vida. Da vida eterna. As enfermidades do espírito não são nada que um sacramento da Penitência e da Eucaristia não possam corrigir, e se curam no “hospital de Jesus”. A propósito, transcrevo abaixo, um post da Internet, que um amigo me enviou: Fui ao Hospital do Senhor fazer um check-up de rotina e constatei que estava doente. Quando Jesus mediu minha pressão verificou que ela estava em baixa de ternura. Ao medir a temperatura, registrou quarenta graus de egoísmo. Fiz um eletrocardiograma e foi diagnosticado que eu precisava de uma “ponte de amor”, pois minha veia estava bloqueada e não estava abastecendo meu coração vazio. Passei pela ortopedia, pois estava com dificuldade de andar lado-a-lado com meu irmão, e não conseguia abraçá-lo por ter fraturado o braço, ao tropeçar na minha vaidade. Constatou-se miopia, pois eu não conseguia enxergar além das aparências. Queixei-me de não poder ouvir direito e foi diagnosticado um bloqueio auditivo em decorrência das palavras vazias do cotidiano. Obrigado, Senhor, por não ter me cobrado a consulta, pela sua grande misericórdia. Prometo que ao sair daqui, somente vou usar os remédios naturais que me indicou, e que estão no receituário do seu Evangelho (Texto respigado na Internet, atribuído a Luiz Gentile Filho).
Conversão é, portanto, vida nova vivida pelo “homem novo” (cf. 2Cor 5,17; Ef 4,24; Cl 3,10), ou seja, por aquele ser humano que deixou triunfar em si o poder do Espírito de Deus, capaz de tudo transformar. Onde está o Espírito há liberdade, amor, paz, perdão e mudança de vida. A moral cristã é uma expressão autêntica da vida nova que se vive sob o influxo do Espírito de Deus e moldada de acordo com a vontade de Jesus. Deste modo, o discernimento moral se torna uma exigência tanto para o indivíduo quanto para a comunidade onde ele interage. Muitas vezes o que imaginamos ser conversão, pela falta de alguns (ou muitos) ingredientes da espiritualidade, pode ter o nome que quiserem dar, mas está longe de uma autêntica vida cristã. Converter-se é optar pelo amor. Nenhum sacrifício pode excluir o amor. Não se pode (a exemplo de Abraão, pai de Isaac) sacrificar aquilo que se ama. Sacrificar coisas supérfluas ou o que não se ama é fácil; oferecer ao Pai o amor verdadeiro de nosso coração convertido, isto é difícil. A Deus não se oferta horas vagas, metade de nosso coração ou sentimentos descartáveis: a ele se oferece o amor maior. A respeito de nos entregarmos totalmente a Deus, como sinal de nosso amor e de nossa conversão, cabe ver aqui uma preciosidade de Santa Teresa (In: Castelo Interior):
Deus é amado não por suas consolações, mas simplesmente porque é Deus. Ele exige um amor absoluto. Só ele tem o direito de exigi-lo.
A espiritualidade, isto é, o modo de ser cristão, é desafiada hoje em dia por uma série de questionamentos, de época, de práxis, de conjunturas e ideologias. A chamada espiritualidade das minorias, ricos, poderosos e do laicato engajado em movimentos eclesiais (Cursilhos, MFC, Emaús, ECC, etc.) é como que o oposto, a contradição da espiritualidade do povo, dos pobres, injustiçados, desempregados, sem-terra, sem-teto, etc. É o individual se opondo, às vezes de forma sufocante, ao coletivo.
Atividades externas, aparentemente meritórias (orações, leituras bíblicas, visitas ao sacrário), mas sem a devida interiorização se tornam atividades ocas, despidas do conteúdo da fé que se faz partilha. Falta, nesses casos, uma ação efetiva, cristã, transformadora. Nesse escapismo, cada um estabelece juízos próprios, pensa por suas próprias idéias, alegando que será julgado “por aquilo que pensar”, como se esse pensar fosse o foro suficiente da moralidade, colocando em risco a oitiva à Palavra e o acatamento à lei do Senhor.
Frequentemente – ensina Gustavo Gutiérrez – a busca do caminho espiritual é apresentada por uma cultura de valores individuais, orientada desordenadamente para o aperfeiçoamento espiritual. A vida interior, nesses casos, parece obscurecer a presença dos demais, confinando muitos cristãos à sua própria interioridade (in: Beber no próprio poço).
Se há um casamento que não dá certo é o do individualismo com a espiritualidade. Nessa prática, a espiritualidade individualista, por alienada e medíocre, não está em condições de orientar aqueles que desejam embarcar na atitude comunitária da conversão e da libertação integral. Esse descompasso entre fé e vida, espiritualidade e individualismo pode empobrecer e até deformar aquilo que deveria ser o fundamento para o seguimento do ressuscitado. A conversão precisa ser vista como um fenômeno interior, de conseqüências práticas que brota do coração e se concretiza na vida comunitária axiologicamente ativa, O cristão que vive uma espiritualidade madura e discernida, é aquele que ama o próximo por causa do amor de Deus. Este, no dizer de Bento XVI (in: DCE 33), são aqueles que se deixaram guiar pela fé que atua pelo amor (Gl 5,6). Por isso, devem ser pessoas movidas, antes de tudo, pelo amor de Cristo, pessoas cujo coração Cristo conquistou com seu amor, nele despertando o amor ao próximo.
Quando nossa espiritualidade está apagada, fraca, submersa nas rotinas, ela não nos dá alegria nem desperta em nós desejos missionários ou de apostolado. A conversão consiste em procurarmos reavivar o desejo de comunhão com Deus, uma vez que as experiências mais profundas começam com o desejo. Com o despertar desse desejo se abrem as portas da alma na direção do Absoluto. Para entrar na presença de Deus é preciso desejar ardentemente; é preciso sentir a necessidade dele, de sua luz, do seu amor, da sua glória, da sua paz.
Assim como se sabe que amar, mais que um sentimento é uma decisão, igualmente a fé igualmente se situa nesse patamar. Só se converte quem tem fé e decide por uma espiritualidade consciente e decisiva. Hoje, alguns afirmam que estão perdendo a fé. É como o casal jovem que diz que “o amor acabou”. Amor não acaba, e se acaba nunca foi amor. Assim ocorre com a fé.
Só a manutenção de uma conversão permanente nos mantém na rica embocadura que nos conduz ao Reino do Pai. É salutar para o desenvolvimento de uma espiritualidade rica, perceber a necessidade de estarmos sempre nos convertendo, alimentando nossa fé, e que todo o esplendor do Universo seja a luz que desperta o anseio de entrar em comunhão com Deus, como ensina Santo Agostinho: O que é o universo inteiro, a imensidão do mar ou o exército dos anjos? Eu tenho sede do Criador de tudo; tenho sede e fome dele.
Nenhum comentário:
Postar um comentário