Tanto na formulação teresiana como na sanjuanista, a oração aparece claramente desde o princípio como a expressão e o sinal de um encontro interpessoal, relação entre pessoas, Deus e o homem.
Teresa viveu e verteu este encontro na palavra humana mais entranhável: a amizade. "Que não é outra coisa a oração mental senão tratar de amizade, estando muitas vezes tratando a sós com quem sabemos que nos ama" (V 8,5). Quando a santa cunhou esta definição tinha atrás de si uma larga e qualificada história de amizade humana e divina. História de amizade, qualificada com estes adjetivos em atenção à nossa debilidade intelectual e à nossa tendência em romper a harmonia e a integração do divino e do humano, da relação com Deus e com o próximo, entre o amor e o serviço vividos no silêncio da oração e o empenho pela causa do Reino. Falando de amizade divina e humana marco lembramos igualmente os tempos da história de Teresa, ainda que não tanto, pois sabemos que era uma mulher nativamente dotada para a relação amistosa e com uma vocação original para a oração. Uma e outra ela viveu-as com força desde sua pequenez (CC 14,3). Porém esta unidade da relação de amizade, com Deus e com os irmãos, deve presidir desde o princípio a preocupação do orante e o serviço de acompanhamento. A separação será mortal por necessidade.
A eleição da palavra amizade é um acerto genial. Chega a todos, por trata-se do centro vital da pessoa humana. É genial o recurso teresiano ao termo amizade para significar a oração, por muitas razões, para todos os que se detenham um pouco à reflexão. Quero apontar algumas.
A. Deus nos chamou à sua amizade, para compartilhar de sua vida, oferecendo-nos em seu Filho, verdadeiro amigo e amigo verdadeiro, uma proximidade entranhável em sua humanidade que é a nossa, homem de fraquezas e trabalhos. Assim nos é companhia no caminho de nossa vida. Deus, Amigo, nos amou primeiro, elegeu-nos, abrindo-nos as portas de sua amizade. Deus é um amigo que tem desejos de dar-nos e que, como logo adverte Teresa, "de boa vontade está junto a nós" (CV 29,6). Amigo, também, necessitado de nós. Com sensibilidade feminina e agudo sentido de fé no Deus-Homem, Teresa confessa seu truque: "Prcurava representar Cristo dentro de mim, e achava-me melhor nos lugares onde ele se encontra mais só; parecia-me que, estando só e aflito, como pessoa necessitada, haveria de admitir a minha presença" (V 9,4). E quando Teresa ora fala sobre isto com ainda maior segurança: " tão necessitado estais que quereis admitir uma pobre companhia como a minha, e vejo em vosso sempblante que os alegrates" (CV 26,6).
B. A oração-amizade situa-se no centro da vida, não à margem, na periferia. É o valor da vida em todas as suas dimensões. A amizade é que nos define: somos o que é nossa relação com Deus e com os irmãos. A oração-amizade é um valor aberto sempre, necessariamente em caminho, em evolução contínua, num dinamismo crescente de realização. "As Moradas" são os diversos níveis, em profundidade e qualidade, nos quais vivemos nossa relação com Deus e os demais. Podemos dizer que são níveis de ser, pois marcam a vida da pessoa naquilo que lhe é substancial por vocação humana e divina: a relação com os outros e com o Outro, com o "tu" semelhante. Relação definida como acolhida e doação, em unidade que não se pode romper. Ademais esta relação nutre-se da verdade e do respeito sagrado à misteriosidade do outro, assim como de si mesmo. Relação na verdade que nasce, desenvolve-se e culmina no trato pessoal, cara a cara. Nenhuma pessoa pode delegar a ninguém a graça maior recebida com o dom da vida: somos naturalmente tão ricos que podemos conversar com Deus (cf. 1M 1,6).
C. A oração-amizade é vida e exercício de gratuidade, não entra no mercado do útil ou necessário, do para quê. Tem em si mesma sua justificação, seu valor: realizar a vocação de ser-em-relação, ser e viver com, em comunhão de horizontes e de caminhos. A santa fala de ser orantes, e praticar o ato concreto da oração, "para unicamente servir a seu Cristo crucificado" (4M 2,10). A esta gratuidade na relação com Deus se refere constantemente João da Cruz, manifestamente como algo que vai fazendo-se vida, quando fala de alguma etapa mais avançada no processo espiritual: "Todo seu cuidado em como poderá dar algum prazer a Deus, ainda que fosse para ela muito custoso" (2N 19,4). Ainda que não deixe de ver que existem "muitos que andam buscando em ti consolo e gosto e os que a ti pretendem dar gosto e dar-te gosto à sua custa... estes são muito poucos" (2S 7,12). Sua regra de experto em amor é esta: não buscando "sua comodidade e consolo, ou em Deus ou fora dEle" (Carta 18.7.89; 16).
D. Na oração-amizade o amor é a substância. Entre os amigos circula o amor, a acolhida e a doação mútuas. Por isso as pessoas se encontram em um "nós" mais ou menos formado. Isto disse expressamente Teresa: "a substância da perfeita oração não está em pensar muito, senão em amar muito". E reflete: "Nem todas as imaginações são hábeis por sua natureza para isto (a meditação), mas todas as almas o são para amar" (F 5,2; 4M 1,7). Deste modo afirma-se com contundência coisas muito importantes: todas as pessoas são capazes de orar. A oração está aberta a todos, a qualquer pessoa, seja qual for sua psicologia, sua formação, o tempo que dispõe, a situação concreta pela qual passa. A pessoa, por natureza e graça, é capaz para a relação pessoal com Deus. Por ser amizade, a oração abarca a existência da pessoa, não pode encerrar-se em uns tempos, nem identificar-se com o que comumente chamamos de oração, silenciosa ou litúrgica, pessoal ou comunitária: "O verdadeiro amante em toda parte ama e sempre se recorda do amado. Ruim seria se só nos rincões se pudesse orar" (F 5, 16).
E. Com isto surge outro elemento de não menor transcendência: a oração-amizade é, antes de tudo, uma forma de ser. A oração define assim a vida da pessoa antes que ser um ato concreto. O começo do "tratadinho" de oração que Teresa nos entrega no Livro da Vida é especialmente luminoso e decisivo. Basta recolher suas palavras: "Pois falando dos que começam a ser servos do amor (que não me parece outra coisa determinarmos a seguir pelo caminho da oração ao que tanto nos amou" (V 11,1). O caminho da oração é seguimento de Jesus. Aos mesmos que começam se refere mais adiante dizendo que "se determinam a servir a Deus tão deveras" (ib 9). Não podemos esquecer que se ela, tão honesta e veraz em suas colocações, chega um dia a deixar a prática da oração, é porque a vida se lhe escapava. Por isso era-lhe insustentável manter a fidelidade aos tempos de oração (V 7, 11; 8, 3; 19,10). Mais tarde ela julgurá com dureza este comportamento e irá procurar animar a todos a perseverar na prática da oração, ainda que não responda às exigências da amizade, "por males que haja" (V 8,5; 19,4; 8,4). Razão convincente: "Oh! Que bom amigo fazeis, Senhor meu, como lhe vais regalando e sofrendo e esperais a que se faça a vossa condição!" (V 8, 6).
F. Só partindo da oração-amizade podemos falar razoavelmente da necessidade da oração. Supostamente esta necessidade parte de dentro, da chamada de Deus pela qual nos capacita para tratar amistosamente com Ele.
A oração-amizade busca o encontro, a presença explícita, consciente, os momentos nos quais só e a sós se está com o Amigo. Necessidade particularmente sentida por Deus. Assim o percebeu Teresa (cf. 9,9 e V 8,10).
Mas esta necessidade é também sentida pela pessoa na medida da amizade que vive com Deus, ou com os demais. "Estando muitas vezes a sós com quem sabemos que nos ama". Esta consciência é que origina a marcha para o encontro: saber-se amado, ou seja, crescer na consciência do amor que recebe e dinamizar a resposta adequada e própria. Ninguém sabe-se amado por alguém por referências de terceiros. E ninguém ama a ninguém pelo que contam dele: é preciso o encontro pessoal. A notícia recebida provoca o desejo da constatação por si mesmo. O ato de oração é a consciência explícita da amizade que une Deus e a pessoa. A santa fala dos que fazem oração dizendo que estão vendo que Deus as vê (cf. V 8,2).
G. Por último, na oração-amizade, desde os seus primeiros passos, mesmo que não salte à consciência do orante, devemos entender que o protagonismo na oração corresponde a Deus, que Ele está muito mais empenhado que nós por levar adiante a história de amizade. Podemos dizer que toda oração cristã é essencialmente mística desde seus começos. Deus, porque nos ama mais e melhor que nós mesmos a Ele, leva o peso da oração-amizade. Captar esta dimensão mística da oração é vital para entendê-la convenientemente, adotando a atitude oportuna: "ir contente pelo caminho que lhe levar o Senhor" (CV 17 tít.). Pois "tem em tanto este Senhor nosso que lhe queiramos e procuremos sua companhia, que uma vez ou outra não nos deixa de chamar para que nos aproximemos dEle" (2M 1,2). "Deixai fazer o Senhor" (CV 17,7). Atitude, portanto, de amorosos ouvintes, de silêncio contemplativo para ver o que Deus fará em nós. Disposição de abertura e acolhida, pois a parte que nos toca será sempre de responder, secundar, seguir.
Maximiliano Herraiz, ocd
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