Jesus está sempre passando por nós, os batizados, e nos convidando a um engajamento com a espiritualidade verdadeira que dimana do amor do Deus Trinitário. O Mestre é “aquele que vem em nome do Senhor”. Ele é o logos, o “verbo encarnado” que vem aos que se abrem ao projeto salvífico do Pai. Deus tem uma linguagem paradoxal, que às vezes parece contraditória, sob a ótica de nossa limitada visão. Ele nos vê como criaturas em particular, com a nossa individualidade e na comunidade com os dons que devem ser partilhados. A Jerusalém de hoje é o nosso coração que precisa ser restaurado, tornando-se aberto para recebê-lo com alegria.
Nós costumamos afirmar que a Santíssima Trindade é o grande mistério da revelação cristã, pois toda a criação passa pelo poder de sua obra. Jesus ao se tornar homem, revela ao mundo o mistério central da nossa fé: ele se encarnou para dizer quem é o Pai, quem é o Filho e quem é o Espírito Santo que o Pai envia em seu nome. Maria, a mãe de Jesus, fez a síntese trinitária em sua vida. Ela é a pessoa humana por excelência que mais soube se colocar a serviço do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ela viveu em plenitude a fé, a esperança e o amor. Diante do abissal mistério do Deus-Trindade-Amor, que amando conclama a amar, ela realiza a resposta do seguidor do Ressuscitado, que só pode ser aquela de celebrar a glória desse amor incomparável. Essa celebração é a forma mais pura e eloqüente de viver a espiritualidade-comunhão com o Uno e o Trino. Como afirma Bruno Forte, pregador de retiros da Casa Vaticana, É este o sentido da confissão de unidade e unicidade do Deus da tradição bíblica. Tal profissão de fé é um ato de adoração, bem como um compromisso de vida: “Escuta (Sh’ma!) Israel: o Senhor é nosso Deus e é Uno. Amarás o Senhor teu Deus com todo a teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças!” (Dt 6,4). Quem crê em Deus penetra no seu mistério, e se empenha que todos os homens entrem nessa dinâmica, na justiça e na paz.
Deus se apresenta na história como um só
A Igreja afirma que a Trindade é um mistério de fé no sentido estrito. Trata-se de um dos muitos mistérios escondidos em Deus, que não podem ser conhecidos se não forem revelados do Alto (DS 3015 – Vat. I; CIC 237).
É interessante salientar que a Igreja, ao contrário do que acusam alguns segmentos adversários, não professa uma fé em “três deuses”, mas em UM só e único Deus em TRÊS pessoas. Cada uma das pessoas da Trindade Santa é Deus pela consubstancialidade, e tem sua forma própria e característica de orientar nossa espiritualidade. Este mistério é o centro axial da fé cristã onde o Pai cria, o Filho se encarna e o Espírito Santo procede do amor de ambos. Como disse Santo Tomás de Aquino, cada Pessoa, embora atue junto com as outras, age de seu jeito na criação do Universo (STh I que 27-43).
Batizados em nome da Santíssima Trindade, os cristãos se renovam em um novo nascimento para Deus. Essa regeneração é o mais precioso dom de Deus, pois conduz o homem – e orienta sua espiritualidade – para a amizade com ele. Essa amizade, mistério da graça – como veremos adiante – conduz a humanidade à salvação. Ao afirmar, por exemplo, tudo o que pertence ao Pai é meu também. Por isso é que eu disse: o Espírito vai receber daquilo que é meu, e o interpretará para vocês (Jo 16,15). Jesus evidencia com muita clareza a sincronia entre os Três divinos.
Crer no Deus Trino não deve se limitar apenas a um pragmático e superficial acreditar. Crer é muito mais que isto, é ter fé, ir além... Crer é amar como Jesus amou e continuar, na dimensão sócio-fraterna, sua obra. A Santíssima Trindade não pode ser compreendida fora de um contexto de amor e salvação. Ela é uma realidade de participação nos conduz à comunhão final, nos redime, liberta e salva, tornando nossa humanidade mais espiritualizada, plena e enriquecida.
A Trindade, definida dogmaticamente como Um só Deus e Três Pessoas, é a mola propulsora da autêntica espiritualidade cristã. Antes que o mundo existisse, Deus já existia na interioridade do amor dos Três Divinos e no projeto de criar o homem e fazê-lo feliz. A virtude criadora do Universo é, portanto, toda ela Trinitária. Na verdade, a expressão utilizada aqui “Deus já existia” é incorreta. Quando tratamos das coisas de Deus, devemos empregar as palavras e os verbos adequadamente. Como digo em meu livro Kairós, teologia do tempo do Senhor (Ed. Vozes, 1998). O tempo adequado para Deus é sempre o presente, pois sendo Criador e incriado, ele não tem passado. Assim, ele ama, cria, salvam existe e perdoa. Os atos de Deus estão sempre acontecendo no presente, num kairós, pois nele, que é eterno, não há cronologia.
O fato é que o Deus Triúno está presente em toda a história da humanidade, desde a Criação do mundo, na inspiração dos profetas, na encarnação, na instauração da Igreja e na expectação da parusia. Muitos teólogos e biblistas vêem nos três homens que visitam Abraão, em Mambré (cf. Gn 18), retratados no famoso ícone de Rublev (séc. XV), o deus Trino que anuncia ao patriarca a boa notícia, resultando para o clã e todo o povo em uma bênção de fecundidade, que a partir daí irá se tornar “povo de Deus”, santo e escolhido. No linguajar rebuscado dos Livros Sapienciais, o Espírito Santo é chamado de “a sabedoria de Deus”. Essa sabedoria está ao lado do Pai no evento criacional.
[...] antes que fossem feitos a terra, os campos e os primeiros elementos da poeira do mundo... quando ele preparava os céus, ali estava eu, quando traçou o horizonte na superfície do abismo, quando firmou as nuvens no alto, quando dominou as fontes do abismo, quando impôs regras ao mar, para que suas águas não transpusessem os limites, quando assentou os fundamentos da terra, junto a ele estava eu como artífice, brincando todo o tempo diante dele... (Pv 8,26-30).
Deus ressuscitou a este Jesus. E nós todos somos testemunhas disso. Ele foi exaltado à direita de Deus, recebeu do Pai o Espírito prometido e o derramou: é o que vocês estão vendo e ouvindo (At 2,32s).
- Deus Pai é incriado (primeiro artigo de fé);
- Jesus Cristo, o logos de Deus, reúne o homem e Deus (segundo artigo);
- O Espírito Santo (“ele que falou pelos profetas”) foi derramado sobre a humanidade para renová-la (terceiro artigo).
O fato de contemplar e adorar a Trindade pode nos levar, não só à revisão da forma como conduzimos nossa espiritualidade, como também à crítica do modelo social e familiar de nosso tempo. É comum se observar a existência de um individualismo egoísta no lugar da partilha de bens afetos, sentimentos e atitudes. Se a pessoa é humana é imagem e semelhança daquele que as criou, conforme cremos, e essa imagem é solidária e associativa, por que desenvolvemos uma cultura egoísta capaz de privilegiar o individualismo?
Se olharmos atentamente, veremos que os nossos modelos sociais, no regime sociopolítico que for, se confrontados com o modelo trinitário da pedagogia divina, ficam abaixo da crítica, com muito a dever, perdendo-se em descaminhos históricos, num caos quase sem volta. Em tempos de inclusão social, vale a pena observar o modelo da Santíssima Trindade, que a ninguém exclui. Como ensina L. Boff,
A sociedade que pode surgir, na inspiração do modelo trinitário, deve ser fraterna, igualitária, rica pelo espaço de expressão que concede às diferenças pessoais e grupais. Só uma sociedade de irmãos e irmãs, cujo tecido social seja urdido de participação e comunhão de todos em tudo é que pode reivindicar ser pálida imagem e semelhança da Trindade, o fundamento e o aconchego derradeiro do universo (in: A Santíssima Trindade é a melhor comunidade. Ed. Vozes, 1988).
Sendo templo da Santíssima Trindade, a pessoa humana é digna de todo o respeito e solidariedade. Atentar contra essa dignidade é, como nos ensina a Teologia Moral, praticar um pecado que clama aos céus. Só dando curso a espiritualidade rica e fecunda é que o cristão é capaz de compreender essa realidade e colocá-la
O Concílio Vaticano II manifesta de forma clara e concisa o acesso trinitário à salvação e à verdadeira espiritualidade, através do Espírito Santo, Senhor que dá a vida: Consumada a obra que o Pai confiara ao Filho para que realizasse na terra, no dia de Pentecostes foi enviado o Espírito Santo para santificar continuamente a Igreja e assim dar acesso ao Pai, por Cristo, num só Espírito (cf. Ef 2,18). Este é o Espírito da Vida, fonte de água que jorra para a vida eterna. Por ele o Pai dá vida aos homens mortos pelo pecado, até que um dia ressuscitem em Cristo os seus corpos mortais (LG 4).
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